RETRO MANÍA / Setembro 2013
O melhor do zamrock: sim, zam de Zâmbia
· POR Nuno Leal · 20 Set 2013 · 16:04 ·

África nunca pára de nos surpreender. Parece que cada cantinho, cada país do continente, nos reserva uma surpresa musical, seja agora no presente, ou vinda do passado. A Zâmbia não é exceção. Esta nação da África Austral, ao lado da igualmente supreendente Angola do já mítico documentário “Death Metal Angola” (investiguem), viveu uma explosão nos anos setenta, de bandas rock mais ocidentalizadas, com pouca influência tradicional africana, ou de certa maneira mais filtrada e reciclada (sim, porque o rock n’roll, os blues, tudo acabou por vir de certa maneira de África).
Nesta longa troca de influências que escreve a história da música contemporânea, eis então que chegamos ao Zamrock. Nos anos setenta, Rikki Ililonga & Musi-O-Tunya, Chrissy Zebby Tempo and Ngozi family, entre outros, criaram um movimento com a cabeça totalmente em Hendrix, a quem os WITCH (We Intend To Create Havoc) misturaram com Animals, Rolling Stones, Sly & The Family Stone e Funkadelic do início e mais inesperadamente os Amanaz, que juntaram ao caldeirão Black Sabbath, Blue Cheer, The Stooges ou Edgar Broughton Band. Os zambianos têm destas coisas, audácia, ambição e “tomates” para experimentar nunca faltaram por ali, houve até quem tivesse nessa época a cabeça na lua. Aliás, em Marte. Para quem não sabe, houve um programa espacial no país. É surfar na net atrás da história louca de Edward Makuka Mkoloso. Chegou a pedir 7 milhões de libras na altura às Nações Unidas para poder competir na conquista do Espaço com a URSS e os Estados Unidos, mas não o ajudaram, para sua tristeza e de um grupo de afronautas de uniforme militar inglês que treinava de forma muito especial perto de Lusaka.
Mas para quê Marte, se podem ouvir Amanaz? O disco dos Amanaz chama-se Africa, tem uma capa totalmente “roots” mas é só para enganar: lá dentro é riffs e muito fuzz em gravação lo-fi. A bateria raramente adquire algum ritmo afro-beat, é minimal, quase punk, stoner. Ou precursora do punk, que o disco é de 1975! Não fosse a capa, podia tratar-se de alguma obscuridade psicadélica DIY de Chicago ou Detroit, ou mais outra pérola krautrock. Quando cantam em inglês às vezes parece que se está a ouvir uma qualquer superbanda de sonho - Hendrix and The Stooges, ou Malcolm Mooney a cantar com os Black Sabbath. Álbum único de 1975, a partir daí pouco ou nada mais se soube deles. Na net li uma entrevista de um elemento dos WITCH que conta que dos Amanaz só sabe do baterista e do guitarrista, que também eram os vocalistas da banda. Um é Pastor da Igreja Pentecostal algures no norte do país, o outro é agricultor. Estejam, onde estiveram, eles, mais do que nós, sabem que a Zâmbia merece ser amplificada por esse mundo fora.
Há absinto no Bar Mitzvah: The Churchills
· POR Nuno Leal · 09 Set 2013 · 11:00 ·

Ironicamente, um esquecido das listagens-bíblias do psicadelismo veio diretamente de terras bíblicas: The Churchills. Resquícios de Beatlemania, jams e Zombies yiddish, que muito fez abanar o quipá no ano em que saiu: 1969. A relativamente vizinha Turquia já nos tinha dado exemplos de como o Médio Oriente curtiu bem os sessentas, por isso até nem é assim tão surpreendente que o ocidentalizado Israel, ainda por cima, hoje uma nação de fãs do trance, tenha curtido as delícias da música tóxica. E este disco era para ser um clássico mundial, tinha tudo para o ser. Trocava o hebreu pelo inglês, e contou com o guitarrista dos The Tornados (!) de 1966 a 67: Robb Huxley. Convidado pelo outro estrangeiro da banda, o vocalista canadiano Craig Solomon, que chamou Robb quando dois outros membros da banda foram para a tropa.
De certa forma ficou esquecido nos confins do Médio Oriente, apesar de cheio de ecos de gente sua contemporânea, longínqua e com relativo sucesso, como Pink Floyd, Love, Doors, Zombies. Ter um discípulo de Joe Meek na guitarra explica muita coisa. The Churchill’s, esse homónimo fruto é um fiel seguidor dos Dez Mandamentos do rock psicadélico, assim de cabeça — fuzz, reverb, eco, delay, theremin, jam, groove, wah-wah, tribalismo e letras lisérgicas (podem ser outros, aceitam-se críticas) — por vezes com um toque judaico explosivo. Serem de Israel confere um certo mau gosto ao adjetivo da analogia, mas quando ouvirem o disco, vão entender e perdoar-me certamente.
Esse toque é que lhe dá um extra-Nuggets "feel" incomparável. “Subsequent Finale”, por exemplo, é mesmo explosiva, bombástica, com arraiais assentes numa melodia tradicional com arranjo pop, que vai crescendo numa groove monstruosa, até se tornar uma jam “kosher” de propulsão imparável, uma espécie de Hebron Duul II. Em “When You’re Gone” e “Debka” temos a mesma veia etnodélica embora mais temperada, já “Pictures In My Mind” sabe a pita shoarma com uma intro entre os 13th Floor Elevators e os primeiros Hawkwind a aterrar nos Love em Jerusalém, ámen. Peace and love, que bem precisa aquela zona do mundo. “So Alone Today” surge carregado de efeitos de estúdio, oscilador, theremin, melodia do avesso, tudo nos conformes, pérola máxima. “Comics/It´s So Hard”, é uma espécie de irmandade dos Spirit californianos, com hard rock capaz de acordar o Mar Morto, ainda mais pesado em “Strangulation”. Se o deserto na Califórnia inspirou tanta gente, o que poderão dizer os israelitas, que crescem rodeados de ares do deserto?
She came from planet Claire
· POR Nuno Leal · 01 Set 2013 · 23:42 ·

A voz. Repetida harmoniosamente em loop. Sobreposta. De melodias iguais e diferentes. Teclas esporádicas a acompanhar a sucessão de camadas em cima de camadas que tornam o “a capella” a coisa mais bela, etérea, mágica e poderosa deste mundo ou até de outros mundos. Esta descrição responde à questão “a Julianna Barwick é fantástica?”. Claro que é. Se a pergunta fosse “com qual das duas – Julianna ou Claire - gostavas de ter um encontro para sair, dançar e talvez...?”, claro que preferia a bem mais novinha e gira Julianna. Se a pergunta fosse “De todos os discos das duas, qual o teu preferido?”, a resposta continuaria na órbita da americana Julianna, com o fenomenal EP Florine no topo, o “disco do ano” The Magic Place a acompanhar e um novo disco em 2013 a arregalar-nos. Mas à questão “Qual delas começou primeiro?”, a resposta é clara. Aqui não há a história do ovo e da galinha, aliás, a piadinha estúpida da “mais novinha e gira Julianna” já deu a resposta: sim, Claire, a inglesa, veio primeiro.
Para responder à questão “Mas quem o raio é Claire?”, saiba que nasceu novinha para a música nos anos setentas britânicos embebidos em folk. Comparam-na logo a Joni Mitchell. Nesse embalo fez discos interessantes a pender progressivamente para o pop, fez primeiras-partes ao de John Martyn ao vivo, andou pela editora de Ray Davies (dos Kinks), cantou com os King Crimson, Rick Wakeman, entrou nos oitentas a cantar para Jon and Vangelis até que de repente, viu a luz do então crescente movimento New Age. Comissariada pela BBC e Channel 4, começou a fazer música que anos mais tarde lhe deram fama televisiva com a série de vídeos “The Art of Landscape” que passariam todas as manhãs na BBC já nos anos noventa. Uma espécie de Myzen.tv para intervalos, umas décadas antes. O maravilhoso Voices, de 1986, foi banda sonora integrante desses vídeos de contemplação relaxante, paisagista e sonora.

Vivia-se na época de Enya, é natural haver quem as compare. Em alguns discos dessa fase é compreensível, mas neste em particular, Claire Hamill conseguiu algo à parte. Muito mais profundo, misterioso, mágico e minimal, muito mais New Wave do que New Age, muito mais Barwick em linha descendente de Joan La Barbara, Meredith Monk ou Laurie Anderson, no fundo, as verdadeiras pioneiras. Em Voices Claire deixa as letras, as palavras, para se assumir como instrumento ela própria. Na companhia de umas teclas e de uns ritmos digitais ocasionais, faz onamatopeicamente todas as vozes, usando um clássico sampler Prophet 2000 em jogos idênticos na técnica mas oponentes no minimalismo vs maximalismo dos seus contemporâneos Cocteau Twins. É engraçado Julianna nunca ter referido Claire como inspiração, as semelhanças, por vezes, são mesmo óbvias. Inesperadamente ou até não, a referência e reconhecimento veio da canadiana Claire Boucher (Grimes), que já se confessou fã deste disco de outro planeta. Não era de admirar se Julia Holter se juntasse ao clube.
ARQUIVO
2019
2018
2017
2016
2015
2014
2013