RETRO MANÍA / Setembro 2014
Uku Kuut e Vision of Estonia
· POR António M. Silva · 23 Set 2014 · 21:23 ·


Com o falhanço do Y2K, falharam também uma série de desejos antigos que tínhamos para os zero-zero: nada de viagens no tempo, nem um carro voador nos céus de Lisboa e tão pouco andróides ou clones que nos tratem da cozinha. Valha-nos ao menos a Internet para conseguir chegar a um tempo que nunca vivemos (nem nunca vamos viver), mas que ainda podemos escutar.

O ano é 1985 e Uku Kuut, então com 19 anos, entrava em estúdio acompanhado de uma miríade demasiado vasta de sintetizadores, órgãos, sequenciadores e outros adereços que o próprio admite serem demasiados, para gravar um delicioso tema de quatro minutos chamado “Vision of Estonia”. Para alguém nascido em plena União Soviética e depois criado na Suécia e nos Estados Unidos, seria de esperar que uma certa nostalgia ou melancolia permeassem o tema, mas o que se ouve aqui é uma composição transfonteiriça e feel good, quase drogada, relaxada e trippy – ouvido daqui, apetece dizer que foi feito tal como deve ser curtido: de olhos fechados e a viajar interiormente.

O ano é 2014 e Panda Bear, prestes a lançar um disco que toda a gente quer mas que ainda ninguém sabe o nome, deita cá para fora uma mixtape onde brilha o ululante Vision of Estonia. Uma pesquisa rápida atira-nos para o colo um disco editado em 2012 que junta não um, mas nove temas gravados por Uku Kuut entre 1984 e 1985, exactamente a mesma altura em que idealizou este tema. À semelhança do devaneio que motivou este texto, todos os outros apontam para aquilo que John Maus, Ariel Pink, Todd Terje e muitos outros haveriam de fazer alguns anos mais tarde. O resultado é uma música sonhadora mas com groove, que parece caminhar sem destino, e desprendida de quaisquer sentimentos que não os que vai provocar em quem a ouve.

Claro que o termo hipnagógico estava longe de ser cunhado, mas é difícil não sorrir perante esta quase futurologia acidental. O que se ouve aqui é uma compilação tremendamente influenciada pelo lado mais soft (e até duvidoso) do jazz e do funk e com uma atenção especial à produção (quase dub), que lhe confere uma espacialidade certeir. Por cima disto tudo, uma chuva de grooves irresistíveis e doces que parecem colar-se à pele como a humidade tropical. Perfeitamente doseado para nos fazer curtir, relaxar e viajar, cabe tão bem num dia soalheiro como num domingo de manta nos pés.

CHARANJIT SINGH E AS SUAS RAGATRONICS
· POR Nuno Leal · 04 Set 2014 · 00:51 ·
© Knelis

Primeiro, a culpa é da Roland. Os seus TR-808 e TB-303 revolucionaram a música, em particular o 303, ícone do acid house de finais de oitentas. Em 1982 tinha sido acabado de lançar e chegou à Índia, pátria da poderosa e prolífica indústria cinematográfica de Bollywood, geradora e empregadora de incontáveis temas e compositores musicais. Charanjit Singh é um deles e um dos poucos, mas bons, que abraçaram o “disco sound” nos seus temas. Eram tempos de clássicos como “Yaad Aa Raha Hai” do soberbo Disco Dancer do mago Bappi Lahari. Comprado em Singapura, o seu novo “brinquedo” fê-lo descobrir as suas possibilidades combinadas com o que já tinha - um Jupiter 8 e um TR-808 - e acrescentado-lhes um absoluto feeling indiano, conseguindo adicionar à toada disco dancing algo mais, algo novo, incaracterístico, estranhamente hipnótico, cujo minimalismo encaixa que nem um sari na mantricidade do música raga.

Synthesizing: Ten Ragas to a Disco Beat nasce assim em 1982, cinco anos do arranque oficial do acid house em Chicago e Detroit, e pela primeira vez, Charanjit não tem sucesso comercial. Talvez razão para não seguir esta via, não lhe dando continuação, voltando mais tarde para outras experiências, incluindo calypso. Tornou-se assim um objecto singular de tão singular. Pudera, é normal acontecer isso a discos à frente do seu tempo. Ouvi-lo é entender toda a uma geração posterior made in Roland que evoluiu em poucos anos até à mistura Goa e trance que agora faz ainda mais sentido, a braços com esta descoberta. Este disco não terá sido ouvido na altura pela maior parte dos cérebros que criaram e desenvolveram o género e seus derivados. A evolução da electrónica pós-TB-303 foi natural. Charanjit apenas se antecipou uns anitos e chegou antes de todos ao enquadramento perfeito entre o exotismo, electrónica e o modo “glissando”, num sentimento de pertença mútua paralelo a quem nasceu realmente um para o outro.

Esquecido então durante décadas, o disco ressurge com algum estrondo em nichos de apreciadores, já este século, em registo de reedição, fomentando contudo várias teorias da conspiração, de que se tratava de algo falso, ainda por cima não sendo inédito casos desses na história da música (alô Jelinek aka Ursula Bogner). Ainda agora há essa nuvem sobre o já lendário Lewis, mas se o obscuro canadiano ainda não apareceu em carne e osso para calar o cepticismo, neste caso, após muitas buscas, o músico de Mumbai foi encontrado, tendo já voltado a tocar este disco no Ocidente, passando por entrevistas, uma delas com os fãs confessos, Modeselektor, com o alto patrocínio de uma bebida energética. E pronto, agora é tempo de ragatronics.









Parceiros