RETRO MANÍA / Outubro 2013
Se um Curtis Mayfield é bom, dois é maravilhoso
· POR Nuno Leal · 24 Out 2013 · 17:16 ·

Though you may not drive a great big Cadillac
Gangsta whitewalls,
TV antennas in the back
You may not have a car at all
But remember brothers and sisters
You can still stand tall
Just be thankful for what you got:
Diamond in the back, sunroof top
Diggin' the scene with a gangsta lean uh-uh
Nasceu “A Cadillac Don’t Come Easy” mas o seu autor e intérprete William DeVaughn mudou o nome para “Be Thankful For What You Got”. Eis um dos maiores clássicos de sempre do R&B, soul e funk, com covers de Arthur Lee, Donovan Carlos, Bunny Clarke, Winston Curtis, Massive Attack, Yo La Tengo. Samplada por N.W.A. em “Gangsta, Gangsta”, Ludacris em “Diamond in the Back” e Ice Cube “Stand Tall”. Também um dos maiores mitos urbanos da história da música que urge desmentir. Parece, mas não é de Curtis Mayfield. OK, não é tão grave como fazer uma confusão entre Curtis e achar que o “Love Will Tear Us Apart” é do Mayfield quando é do Ian. É 99,9% improvável alguém um dia fazer essa confusão. Agora achar que “Be Thankful For What You Got” é do Mayfield é mais que provável, aconteceu e ainda acontece mesmo muitas vezes, o que apesar de imperdoável é algo compreensível: surgiu em 1972, ano do mítico e popular “Super Fly”. A letra é igualmente uma narrativa social, com aquele toque brother-moralista completamente na onda dele, e a voz e a música parecem tiradas a papel-químico do majestoso <i>Curtis<i/>.
Ainda para mais o Youtube não ajuda nada à clarificação, com vários melómanos online a persistirem em ora colocar o tema sob alçada de Curtis, ora comentar em quem põe como de William, criando nos comentários autênticas guerras de clarificação. E depois, a letra é tão boa quanto o título é desconhecido, o que deu origem a renomeações: uns chamam-na “Gangster White Walls”, outros “Diamonds in the Back”, há de tudo. E para ajudar á festa da confusão, há muitos que juram a pés juntos que a cover do Curtis é melhor que a de William. Mas sorry guys não há sequer a cover, apenas o original, soberbo, e uma versão “disco” posterior e mais fraquinha, mais FM. Ambas do William DeVaughn que pertencem a um conjunto de outros clássicos do obliterado artista que urgem serem descobertos para o seu nome DeVaughn conviver finalmente em playlists ao lado do seu sósia vocal Mayfield, mas também Isaac Hayes, Marvin Gaye, Al Green, Terry Callier, Teddy Pendergrass, Barry White, entre tantos outros.
Expressway to your Skullflower
· POR Nuno Leal · 11 Out 2013 · 10:21 ·

Portugal vai ter uma visita do outro mundo. Os Skullflower. Os verdadeiros Flor Caveira (perdoem-me, malta da editora). Os discípulos em terras de Sua Majestade das viagens ao centro da Terra dos Swans do início; os contemporâneos dos Godflesh com quem fizeram uma mítica digressão e cujo Justin Broadrick, além de fã confesso, lhes editou alguns discos no seu selo hEADdIRT; irmãos transantlânticos dos melhores Melvins de sempre, aqueles de fins de oitenta, meados de noventa; o espelho embaciado da ressaca inglesa das experimentações noise dos Nurse With Wound, Whitehouse, Pure, Coil, Hototogisu, Sunroof!, Total, tudo lendas sónicas em que os seus membros participaram.
Esse caldeirão temporal de influências abriu com a chave de ouro (ou será de chumbo?) os portões sonoros a IIIrd Gatekeeper, de 1992, um verdadeiro clássico parte de uma lista imensa de clássicos. Uma demonstração psicadélica de força, antes de fases ainda mais “anoisificadas” no seu caminho trilhado até aos dias de hoje. Em IIIrd Gatekeeper, os portões abriam-se para entrarmos no mundo perdido dos japoneses Les Rallizes Denudés e Fushitsusha, mas a alma estava ainda entre os Black Sabbath e os Swans, versão instrumental, das suas raízes de fins de oitenta. Os Godflesh são claros parentes, mas aqui é tudo mais denso, pesado, visceral-arrastado, o metálico e o industrial são mais cabeça cheia prestes a explodir. Há quem diga que sem os Skullflower não teria havido Earth ou Sunn O))). Compreensível. O ritmo marcial, naquela lentidão que ao mesmo tempo parece o "metal-que-não-é-metal" dos Swans, emprega mais calmantes para a dor. Heavy Metal em câmara lenta. Free drone stoner sem as letras do Gira mas provavelmente mais uma tonelada de noise em cima para compensar.
Três anos mais tarde, em Carved Into Roses, as guitarras Fushitsushizam-se, a percussão tribaliza-se, à procura do ritual quando não é omissa nos décibeis exagerados da fábrica feedback de explosivos. As guitarras cortam como diamantes brutos em atmosferas densas de largos minutos, com o fuzz a ladrar como cães vadios nas nossas cabeças. Como se os esquizohippies orgásmicos dos Cromagnon da ESP se tornassem numa orquestra desorientada pelo maestro Keiji Haino. Já em Infinityland, também de 1995, a música cai carregada de explosivos, com bateria a sério diria um baterista, onde a velocidade muda, torna-se mais perigosa, as guitarras acompanham-na, numa vertigem sónica e psicadélica que faz uns Bardo Pond soarem a meninos de coro. É pós-pós-rock, Godspeed You Black Emperor! sem paragens, um TGV desvairado com Keiji Haino agora a maquinista. Aliás Matthew Bower como maquinista, o atual sobrevivente desta máquina pesada, que agora na companhia da violinista Samantha Davies promete continuar a celebração metalúrgica no local certo: Barreiro, Pavilhão do G. D. Ferroviários, OUT.FEST, sábado, 12 de Outubro.
Águas de colónia para usar e abusar.
· POR Nuno Leal · 04 Out 2013 · 15:22 ·

Nem só de uma catedral gótica, escura, gigantesca e bela, vive a história de Colónia. A cidade alemã trouxe-nos o clássico dos presentes de aniversário, Natal e dia dos Namorados, a solução que faltava ao mundo certamente mal-cheiroso do século XVIII, uma fragrância que imortalizaria o nome da cidade em rostos, pescoços, pulsos e atrás da orelha de milhões de pessoas. Uns séculos mais tarde, deu ainda mais à orelhas, entrou-nos pelos ouvidos, em fragrâncias raras e inesquecíveis. Área de residência de Karlheiz Stockhausen que ali viveu muitos anos, é um local, como não podia ser dada a sua germanidade, pleno de música. Foi aí que nasceu Christa Päffgen, modelo, atriz, a Nico de Warhol, Lou Reed e John Cale, a “& Nico” do über- clássico Velvet Underground & Nico . Mas é depois, a solo, que o seu aroma nos inunda totalmente a casa, fazendo mais jus ao gótico negro da catedral e aos invernos de neve da sua liebestadt, numa discografia gélida e congelada no tempo (embora com Desertshore bem descongelado pelo projeto X-TG), que merece ser toda revista e ouvida de novo, ou pela primeira vez, consoante o seu caso. Álbum inteiro no Youtube? Só um, mas talvez o melhor deles.
A bela Colónia, Cologne para os franceses e ingleses, Köln para os amigos, também é a génese e o habitat de uma das bandas mais incríveis da história da música. Desde já, peço desculpa a quem está a pensar nos Floh de Cologne ou nos Triumvirat, originários de lá também. Falo obviamente dos CAN. Um grupo de músicos alemães carregados de imaginário musical do país, da clássica ao jazz, convertidos ao psicadelismo, em busca de uma linguagem global, que primeiro convidaram um artista plástico afro-americano para vocalista e mais tarde um performer de rua japonês. O seu primeiro concerto foi em 1968, ali nas redondezas, numa exposição de arte contemporânea no castelo de Noervenich. Chamou-se Prehistoric Future. O elo entre "Hunters and Collectors” no verde entrecortado por indústrias pesadas do Reno, e a cabeça lá longe, completamente na Lua. A partir daí, uma música à parte, quase irrepetível. Marcou muitos, de Eno a John Frusciante, John Lydon aos The Fall, Happy Mondays aos Radiohead. Até Kanye West já os samplou. Citando o imortal Fernando Magalhães, que um dia no jornal Público disse “Mestres do ritual e dos ritmos do corpo. (…) inventaram a música do espaço interior. No seu caso não faz sentido falar de música cósmica, mas sim de música microcósmica. O beat, enquanto átomo da hipnose.” Escolher os melhores discos de outra discografia totalmente obrigatória é difícil, como falar tão pouco deles dói no coração (só os CAN merecem 10 retromanias) mas, como quem tem várias águas de colónia sabe que há sempre uma que usa mais, o critério foi “o tal primeiro e raro concerto de 68 (atenção diggers), e outro, um dos muitos discos dos CAN que se encontram inteiros no youtube, talvez o disco que mais vezes ouvi na vida”.
Entretanto de Colónia para o Porto e para o Barreiro. Perdoem-me o pulo geográfico, mas outro seu cidadão essencial, Wolfgang Voigt, estará ou esteve - depende de quando vão ler isto - na Culturgest da cidade invicta e no OUT.FEST na margem sul do Tejo, com o seu kamerad Jörg Burger, juntos outra vez, depois de Burger/Ink, agora como Mohn. Mais um projeto, mais um nome, entre tantos que este espécie de Fernando Pessoa da eletrónica já teve: Auftrieb, Brom, C.K. Decker, Centrifugal Force, Crocker, Dextro NRG, Dieter Gorny, Digital, Dom, Doppel, Filter, Freiland, Fuchsbau, Gelb, Grungerman, Kafkatrax, Love Inc., M:I:5, Mike Ink, Mint, Panthel, Popacid, Riss, RX7, Split Inc., Strass, Studio 1, Tal, Vinyl Countdown, W.V., Wassermann, and X-Lvis. A estes nomes acrescenta-se a editora Kompakt, da qual é co-fundador. Mas o seu Álvaro de Campos é GAS, onde Voigt qual Wagner ou Schoenberg em câmara 800 vezes mais lenta, constrói sinfonias de loop em discos que ficam bem ao lado de Steve Roach, William Basinski e até Luc Ferrari, Penderecki e outros mestres da música contemporânea. Peças fascinantes que geram hipnose mecânica em todos os sentidos, atmosferas densas e enigmáticas de ilusionismo da alma absorvida em influências que Voigt cita nos títulos, como Thomas Mann da Montanha Mágica (Zauerberg em alemão) ou experiências lisérgicas nas florestas da zona na adolescência (Königsforst, uma espécie de Deutsches Pinhal do Rei). No youtube não encontrarão os discos na íntegra, salvo um, mas porque se trata de magia mesmo, procurem a caixinha mágica, uma anti-Pandora que ao abrir não traz nenhum mal, apenas o bem e o bem-estar; uma caixa para ouvir com todo o GAS, Nah und Fern.
The new wave of Manuela Moura Guedes
· POR Nuno Leal · 01 Out 2013 · 23:59 ·

Manuela Moura Guedes - locutora de continuidade, estrela da rádio e TV, jornalista, ex-deputada do CDS-PP, pivot do Jornal da Noite, esposa de José Eduardo Moniz, regressada agora como apresentadora do Quem Quer Ser Milionário? - dispensa apresentações. Já Manuela Moura Guedes, a cantora new wave, antes pelo contrário. É uma faceta obscura e quase desconhecida, sobretudo para as novas gerações, de uma mulher nos seus loucos anos vinte de vida, rodeada de gente ímpar no panorama musical português, que a acompanha como réus na acusação sólida de terem feito esse genial golpe new wave que é Alibi.
Vítor Rua, Tóli Machado e Rui Reininho. Basicamente os grandes GNR de 1982. Músicas e letras em temas inesquecíveis. Crime é não ouvi-los. Por vezes puro GNR como em “Hora do Lobo” ou “Um Óscar”; outras pré-Mler If Dada como “Violetango”, “Homem Bala”; mas sobretudo uma inesperada Lizzie Mercier Descloux lusa, ou qualquer outra diva da ZE Records, como nos deliciosos “Equinócio de Outono”, “Cocktail Party”, “Prova Oral” ou “Procuro um Alibi”. Fosse em inglês ou em francês, encaixava que nem uma luva na mítica editora. Do melhor que já se fez em Portugal.
A versão CD traz também como extra o single com o sensacional hit-disco “Flor Sonhada” (hello ZE Records!) e o clássico urbano-depressivo “Foram Cardos, Foram Prosas”. O relativo sucesso da sua voz a cantar este belíssimo tema de Miguel Esteves Cardoso com música de Ricardo Camacho dos Sétima Legião (nota-se bem), não chegou a ser o trampolim que o seu LP precisava para não se perder nos lugares fundos do top e da memória. O próprio sucesso do single esbateu-se nos anos, apesar de uma cover duvidosa dos Ritual Tejo (para não falar da versão horrível dos Amor Electro) ter acordado alguns ouvidos inquietos para este tesouro inocente e obliterado mas mesmo assim, poucos, como é empiricamente comprovado em grande percentagem sempre que se mostra o tema a alguém: “A sério? Conhecia a dos Ritual Tejo mas não a da Manuela”.
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