DIA 1 |
Reportagem
de André Gomes
Fotografias de Carlos Oliveira
17/08
O
ritual é quase invariavelmente o mesmo. Respondendo à chamada, milhares de pessoas
devidamente equipadas sobem ou descem o país na procura da - por uns dias sagrada
- praia fluvial do Tabuão, em Paredes de Coura. Djambés, guitarras, toalhas
de praia, tendas e sacos-cama, arcas, baús de esperança, espírito. Tudo vale
para manter a chama festivaleira acesa. Grita-se “É um dilúvio, é um dilúvio”
de dentro de uma das tendas. Chuva, o convidado que ninguém queria mas que todos
temiam. Nervosa, miudinha, teimosa, chata, molha-tolos: não houve sossego durante
quase todo o festival, e a marca de vinte mil espectadores esperada pela organização
parecia cada vez mais impossível de atingir. Ainda assim, na noite anterior
- a noite de recepção ao campista -, o palco 2 havia recebido os Magnus, o projecto
que une Tom Barman (líder dos belgas DEUS) e CJ Bolland, DJ-produtor e face
visível do techno. Durante mais de duas horas, a dupla brindou a ansiosa
plateia com um set que apenas a espaços largos teve sucesso na difícil
arte de reanimar os molhados e arrefecidos. Na verdade, perante o cenário de
quase tempestade que se instalou em Paredes de Coura, seria preciso bem mais
do que tímidas incursões pelo house, carregadas linhas de baixo e mesmo
o trabalho de MC de Tom Barman para que a actuação tivesse todo o êxito que
se esperava.
Ainda com chuva, seguiram-se os esperados Los de Abajo que, por “problemas
aerodinâmicos” viram a sua actuação servir como fecho de noite. Embora tenha
durado apenas trinta minutos, a actuação dos Los de Abajo teve grande sucesso
em animar a plateia. Incentivado pelos sons do merengue, da salsa,
do reggae e do funk e sequioso pelos primeiros momentos de diversão,
o público aderiu instantaneamente e se não fossem as condições climatéricas
e a falta de segurança dos músicos, talvez o concerto de promoção de Latin
Ska Force, o último disco de originais da banda, tivesse ultrapassado o
sucesso dos últimos concertos em Portugal. O concerto chegou ao fim abruptamente
depois de um dos toldos que cobriam o palco ter caído. A ver pela reacção dos
resistentes espectadores, os Los del Abajo podem muito bem transformar-se em
mais uma daquelas bandas de culto que o nosso país tanto insiste em fomentar
– os Los del Abajo são muitas vezes comparados a Manu Chao ou até mesmo aos
Orishas. Soltando uma graçola ou duas, comparava-se a edição 2004 do Festival
Paredes de Coura com um possível festival de Inverno ou mesmo com um festival
para gente molhada.
CocoRosie |
Voltando
ao primeiro dia de concertos no palco principal – devido à chuva, o delicioso
Jazz na relva passou para o Centro Cultural de Paredes de Coura e o palco songwriters, a grande novidade da edição 2004 do Festival Paredes
de Coura (que, ao que parece, é para manter), para o palco principal –
Paredes de Coura assitia à estreia em palcos nacionais das CocoRosie,
a dupla norte-americana formada pelas irmãs Sierra e Bianca Cassady, um
dos projectos mais excitantes do momento, no que diz respeito ao songwriting.
A chuva intensa fez com que as manas Cassady descessem até ao palco agarradas
a um guarda-chuva. Em palco, um órgão, uma guitarra acústica e um par
de microfones. Em mente, La Maison de Mon Revê, um conjunto de
canções folk e blues de contornos bizarros. A acompanhar
as irmãs Cassady estava um human beatbox, ou seja, alguém que,
com a boca, ia fornecendo batidas hip-hop que serviam de base para quase
todas as canções. Do alinhamento constaram “Madonna” (“Miss madonna
won't you give me a kiss / One of your soft sweet lagrimas”), “Jesus
Loves Me” – (Jesus loves me / But not my wife / Not my nigger friends
/ Or their nigger lives / But Jesus loves me / That's for sure / 'Cause
the bible tells me so”), “By Your Side” (“I'll always be by your side
/ Even when you're down and out / I just wanted to be your housewife /
All i wanted was to be your housewife ”, entre outras. O acompanhamento
musical ia sendo feito com um fio que segurava pequenos sinos, uma pandeireta,
gravadores que encostados a um microfone iam reproduzindo conversas, suaves
murmúrios, e todo o tipo de objectos bizarros pertencentes ao imaginário
infantil. Sierra ia alternando entre a guitarra acústica, o orgão e a
harpa – o tal instrumento que está cada vez mais em voga por estas andanças.
As vozes – as de Sierra e Bianca, de uma cândida brancura e quase tão
bizarra como a de Joanna Newsom, respectivamente – partilham a mesma dor
e entrecruzam-se maravilhosamente como o cor-de-rosa e o branco e direccionam-se
a um céu que, durante toda a actuação, suspendeu a queda de chuva só para
as poder ouvir. Algumas bolas de sabão sopradas directamente da plateia
subiam e direccionavam-se a Sierra e Bianca Cassady, reforçando a imagem
na sua condição etérea – tão cedo não se esquecerá a passagem das CocoRosie
por Portugal, pelo seu carácter único e revelador. A quantidade de publico
ia aumentado cada vez mais e também a curiosidade e a surpresa de alguns.
Para outros é a confirmação: as CocoRosie são ainda mais intensas ao vivo
do que em disco. Houve ainda tempo, na última canção, um instrumental
conduzido pela angelical harpa de Sierra Cassady, para a entrada em palco
de Devendra Banhart (o namorado de Bianca Cassady), que adornou o tema
ao orgão e emprestou a sua voz para ainda mais harmoniosos murmúrios.
Resumindo, espera-se um regresso muito em breve, de preferência em nome
próprio. De seguida entrariam em palco os Arrested Development para aquilo que Speech, o guia da banda, anunciava: “Esta digressão vai ser uma mistura excitante de música com dança, percussão, DJs e claro, com todas as canções que se tornaram famosas por este mundo fora”. Motivo principal: o hip-hop servido por batidas fortes, guitarras plenas de groove e linhas de baixo saltitantes e irrequietas. Mas se é complicado animar toda uma multidão ao sol, ainda mais difícil será reanimar escassas centenas de pessoas ameaçadas por mais um ataque de pluviosidade. A banda pedia: “Put your hands up in the air”, “Jump, jump”. As palmas à chuva tornaram as coisas ainda mais tragicamente enternecedoras. “Tennessee" ou "People Everyday” foram temas obrigatórios num alinhamento que passou curiosamente por “Raining Revolution”, “Nightmare Demons” e “ Ease My Mind”. À frente, duas bailarinas mostravam o caminho para o festejo à chuva, mas a carga de água impossibilitava mesmo a celebração do hip hop, como se esperava. |
Bunnyranch |
Ao contrário daquilo que era esperado, os Snow Patrol, autores do mais recente Final Straw, não puderam estar presentes devido à doença do vocalista, uma infecção viral, que o obrigou a cancelar grande parte da digressão. É verdade que a noticia deve ter deixado algumas pessoas tristes, mas para tal cenário de dilúvio o que se pedia era mesmo rock. Na sua vez actuaram os sempre surpreendentes Bunnyranch, de Kaló (voz, bateria), Filipe Costa (orgão, piano, voz), André Ferrão (guitarra) e Pedro Calhau (baixo). Na mala, ou no alinhamento, o novo álbum de originais intitulado Trying to Loose. Para quem anda distraído, os Bunnyranch – ao lado dos Wray Gunn – são a banda de rock n’ roll mais excitante de Portugal. Kaló é um animal de palco: nasceu para ele, vive nele, e nele morrerá. Toca bateria em pé, roda em volta dela, parece fugir de alguma coisa ou de alguém. É tão endiabrado quanto a sua música o sugere. O merecido lugar no palco principal não foi em vão: com ou sem chuva, não houve quase ninguém que não tivesse dançado com as enérgicas e confrontadoras canções rock imbuídas em blues - rockabilly também é rei. Os refrões são catchy, as guitarras são barulhentas, o baixo é corpulento, os teclados são coloridos e festivos e a pose é rock - exageradamente rock, como se quer. Injustiça ou prémio, não deixa de ser curioso que os Bunnyranch tenham actuado mesmo antes dos Blues Explosion de Jon Spencer, banda a que muitas das vezes são comparados. A verdade é que – vendo as coisas à luz da razão e da chuva – os Blues Explosion raramente conseguiram provocar mais loucura na plateia do que os Bunnyranch haviam conseguido. Jon Spencer, Judah Bauer e Russell Simmins têm novo disco e este não seria com certeza o melhor concerto para mostrar as novas canções. Apesar de terem passado por alguns clássicos, os Jon Spencer nunca tiveram o público na mão. Apesar disso e da chuva, Jon Spencer parecia estar a ter uma grande noite, pois saltava e mexia-se efusivamente. Não fosse a chuva e as coisas teriam sido bem diferentes. Talvez seja o sinal de aviso para os Jon Spencer virem tocar a Portugal, mas em nome próprio. Este ano, Paredes de Coura mostrou apostar verdadeiramente nas guitarras, e para esse efeito, os Blues Explosions preencheram e transbordaram os requisitos mínimos. |
Scissor
Sisters |
Para
fechar a noite, uma fenómeno com quase tanto sucesso como os O-Zone do
famoso “Dragostea din tei”: os Scissor Sisters. Duas vozes em palco: o
vocalista, magro e excêntrico, pavoneava-se e roçava-se no microfone;
a vocalista dançava e tentava animar o público. Das colunas saíam os sons electro-redneck de “Take Your Mama”, o tema que até podia muito
bem ter tido a voz de Elton John quando se canta: “Do it / Take your
mama out all night / So she'll have no doubt that we're doing oh the best
we can / We're gonna do it / Take your mama out all night / You can stay
up late 'cause baby you're a full grown man ”. “Take Your Mama” é
um convite à excentricidade, uma alusão à noite e ao que nela se vive.
O concerto continua com guitarras funk, linhas de baixo fortes
e sexo espremido como se de uma laranja se tratasse. Há solos de guitarra,
há solos de orgão, há solos. A certa altura, a vocalista, com um palavreado
encantador, informa que se já eramos heróis do mar, agora eramos heróis
da chuva. Do céu, mais algumas descargas mas o público não abandona a
causa. Do palco, disco sound e quase ninguém parecia incomodado
com isso. “Mary” é um trama baladeiro conduzido por teclados que termina
em destemido solo de guitarra. “Comfortably Numb”, um tema original dos
Pink Floyd, ganha cor, brilho, glamour, teclados lascivos e falsetos
pré-histéricos. Com tanto cortar, tanto cortar, os Scissor Sisters ficam
apenas com uma colecção de canções balofas e inconsequentes de disco
sound. Um hype tão-somente e com menos piada que os Electric
6. No fim não restavam dúvidas: as CocoRosie e os Bunnyranch haviam sido
os heróis da noite. |
andregomes@bodyspace.net
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