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Festival Paredes de Coura 2004
Paredes de Coura
17-/20/08/2004


Reportagem de André Gomes
Fotografias de Carlos Oliveira

17/08

O ritual é quase invariavelmente o mesmo. Respondendo à chamada, milhares de pessoas devidamente equipadas sobem ou descem o país na procura da - por uns dias sagrada - praia fluvial do Tabuão, em Paredes de Coura. Djambés, guitarras, toalhas de praia, tendas e sacos-cama, arcas, baús de esperança, espírito. Tudo vale para manter a chama festivaleira acesa. Grita-se “É um dilúvio, é um dilúvio” de dentro de uma das tendas. Chuva, o convidado que ninguém queria mas que todos temiam. Nervosa, miudinha, teimosa, chata, molha-tolos: não houve sossego durante quase todo o festival, e a marca de vinte mil espectadores esperada pela organização parecia cada vez mais impossível de atingir. Ainda assim, na noite anterior - a noite de recepção ao campista -, o palco 2 havia recebido os Magnus, o projecto que une Tom Barman (líder dos belgas DEUS) e CJ Bolland, DJ-produtor e face visível do techno. Durante mais de duas horas, a dupla brindou a ansiosa plateia com um set que apenas a espaços largos teve sucesso na difícil arte de reanimar os molhados e arrefecidos. Na verdade, perante o cenário de quase tempestade que se instalou em Paredes de Coura, seria preciso bem mais do que tímidas incursões pelo house, carregadas linhas de baixo e mesmo o trabalho de MC de Tom Barman para que a actuação tivesse todo o êxito que se esperava.

Ainda com chuva, seguiram-se os esperados Los de Abajo que, por “problemas aerodinâmicos” viram a sua actuação servir como fecho de noite. Embora tenha durado apenas trinta minutos, a actuação dos Los de Abajo teve grande sucesso em animar a plateia. Incentivado pelos sons do merengue, da salsa, do reggae e do funk e sequioso pelos primeiros momentos de diversão, o público aderiu instantaneamente e se não fossem as condições climatéricas e a falta de segurança dos músicos, talvez o concerto de promoção de Latin Ska Force, o último disco de originais da banda, tivesse ultrapassado o sucesso dos últimos concertos em Portugal. O concerto chegou ao fim abruptamente depois de um dos toldos que cobriam o palco ter caído. A ver pela reacção dos resistentes espectadores, os Los del Abajo podem muito bem transformar-se em mais uma daquelas bandas de culto que o nosso país tanto insiste em fomentar – os Los del Abajo são muitas vezes comparados a Manu Chao ou até mesmo aos Orishas. Soltando uma graçola ou duas, comparava-se a edição 2004 do Festival Paredes de Coura com um possível festival de Inverno ou mesmo com um festival para gente molhada.

CocoRosie
Voltando ao primeiro dia de concertos no palco principal – devido à chuva, o delicioso Jazz na relva passou para o Centro Cultural de Paredes de Coura e o palco songwriters, a grande novidade da edição 2004 do Festival Paredes de Coura (que, ao que parece, é para manter), para o palco principal – Paredes de Coura assitia à estreia em palcos nacionais das CocoRosie, a dupla norte-americana formada pelas irmãs Sierra e Bianca Cassady, um dos projectos mais excitantes do momento, no que diz respeito ao songwriting. A chuva intensa fez com que as manas Cassady descessem até ao palco agarradas a um guarda-chuva. Em palco, um órgão, uma guitarra acústica e um par de microfones. Em mente, La Maison de Mon Revê, um conjunto de canções folk e blues de contornos bizarros. A acompanhar as irmãs Cassady estava um human beatbox, ou seja, alguém que, com a boca, ia fornecendo batidas hip-hop que serviam de base para quase todas as canções. Do alinhamento constaram “Madonna” (“Miss madonna won't you give me a kiss / One of your soft sweet lagrimas”), “Jesus Loves Me” – (Jesus loves me / But not my wife / Not my nigger friends / Or their nigger lives / But Jesus loves me / That's for sure / 'Cause the bible tells me so”), “By Your Side” (“I'll always be by your side / Even when you're down and out / I just wanted to be your housewife / All i wanted was to be your housewife ”, entre outras. O acompanhamento musical ia sendo feito com um fio que segurava pequenos sinos, uma pandeireta, gravadores que encostados a um microfone iam reproduzindo conversas, suaves murmúrios, e todo o tipo de objectos bizarros pertencentes ao imaginário infantil. Sierra ia alternando entre a guitarra acústica, o orgão e a harpa – o tal instrumento que está cada vez mais em voga por estas andanças. As vozes – as de Sierra e Bianca, de uma cândida brancura e quase tão bizarra como a de Joanna Newsom, respectivamente – partilham a mesma dor e entrecruzam-se maravilhosamente como o cor-de-rosa e o branco e direccionam-se a um céu que, durante toda a actuação, suspendeu a queda de chuva só para as poder ouvir. Algumas bolas de sabão sopradas directamente da plateia subiam e direccionavam-se a Sierra e Bianca Cassady, reforçando a imagem na sua condição etérea – tão cedo não se esquecerá a passagem das CocoRosie por Portugal, pelo seu carácter único e revelador. A quantidade de publico ia aumentado cada vez mais e também a curiosidade e a surpresa de alguns. Para outros é a confirmação: as CocoRosie são ainda mais intensas ao vivo do que em disco. Houve ainda tempo, na última canção, um instrumental conduzido pela angelical harpa de Sierra Cassady, para a entrada em palco de Devendra Banhart (o namorado de Bianca Cassady), que adornou o tema ao orgão e emprestou a sua voz para ainda mais harmoniosos murmúrios. Resumindo, espera-se um regresso muito em breve, de preferência em nome próprio.

De seguida entrariam em palco os Arrested Development para aquilo que Speech, o guia da banda, anunciava: “Esta digressão vai ser uma mistura excitante de música com dança, percussão, DJs e claro, com todas as canções que se tornaram famosas por este mundo fora”. Motivo principal: o hip-hop servido por batidas fortes, guitarras plenas de groove e linhas de baixo saltitantes e irrequietas. Mas se é complicado animar toda uma multidão ao sol, ainda mais difícil será reanimar escassas centenas de pessoas ameaçadas por mais um ataque de pluviosidade. A banda pedia: “Put your hands up in the air”, “Jump, jump”. As palmas à chuva tornaram as coisas ainda mais tragicamente enternecedoras. “Tennessee" ou "People Everyday” foram temas obrigatórios num alinhamento que passou curiosamente por “Raining Revolution”, “Nightmare Demons” e “ Ease My Mind”. À frente, duas bailarinas mostravam o caminho para o festejo à chuva, mas a carga de água impossibilitava mesmo a celebração do hip hop, como se esperava.

Bunnyranch

Ao contrário daquilo que era esperado, os Snow Patrol, autores do mais recente Final Straw, não puderam estar presentes devido à doença do vocalista, uma infecção viral, que o obrigou a cancelar grande parte da digressão. É verdade que a noticia deve ter deixado algumas pessoas tristes, mas para tal cenário de dilúvio o que se pedia era mesmo rock. Na sua vez actuaram os sempre surpreendentes Bunnyranch, de Kaló (voz, bateria), Filipe Costa (orgão, piano, voz), André Ferrão (guitarra) e Pedro Calhau (baixo). Na mala, ou no alinhamento, o novo álbum de originais intitulado Trying to Loose. Para quem anda distraído, os Bunnyranch – ao lado dos Wray Gunn – são a banda de rock n’ roll mais excitante de Portugal. Kaló é um animal de palco: nasceu para ele, vive nele, e nele morrerá. Toca bateria em pé, roda em volta dela, parece fugir de alguma coisa ou de alguém. É tão endiabrado quanto a sua música o sugere. O merecido lugar no palco principal não foi em vão: com ou sem chuva, não houve quase ninguém que não tivesse dançado com as enérgicas e confrontadoras canções rock imbuídas em blues - rockabilly também é rei. Os refrões são catchy, as guitarras são barulhentas, o baixo é corpulento, os teclados são coloridos e festivos e a pose é rock - exageradamente rock, como se quer.

Injustiça ou prémio, não deixa de ser curioso que os Bunnyranch tenham actuado mesmo antes dos Blues Explosion de Jon Spencer, banda a que muitas das vezes são comparados. A verdade é que – vendo as coisas à luz da razão e da chuva – os Blues Explosion raramente conseguiram provocar mais loucura na plateia do que os Bunnyranch haviam conseguido. Jon Spencer, Judah Bauer e Russell Simmins têm novo disco e este não seria com certeza o melhor concerto para mostrar as novas canções. Apesar de terem passado por alguns clássicos, os Jon Spencer nunca tiveram o público na mão. Apesar disso e da chuva, Jon Spencer parecia estar a ter uma grande noite, pois saltava e mexia-se efusivamente. Não fosse a chuva e as coisas teriam sido bem diferentes. Talvez seja o sinal de aviso para os Jon Spencer virem tocar a Portugal, mas em nome próprio. Este ano, Paredes de Coura mostrou apostar verdadeiramente nas guitarras, e para esse efeito, os Blues Explosions preencheram e transbordaram os requisitos mínimos.


Scissor Sisters
Para fechar a noite, uma fenómeno com quase tanto sucesso como os O-Zone do famoso “Dragostea din tei”: os Scissor Sisters. Duas vozes em palco: o vocalista, magro e excêntrico, pavoneava-se e roçava-se no microfone; a vocalista dançava e tentava animar o público. Das colunas saíam os sons electro-redneck de “Take Your Mama”, o tema que até podia muito bem ter tido a voz de Elton John quando se canta: “Do it / Take your mama out all night / So she'll have no doubt that we're doing oh the best we can / We're gonna do it / Take your mama out all night / You can stay up late 'cause baby you're a full grown man ”. “Take Your Mama” é um convite à excentricidade, uma alusão à noite e ao que nela se vive. O concerto continua com guitarras funk, linhas de baixo fortes e sexo espremido como se de uma laranja se tratasse. Há solos de guitarra, há solos de orgão, há solos. A certa altura, a vocalista, com um palavreado encantador, informa que se já eramos heróis do mar, agora eramos heróis da chuva. Do céu, mais algumas descargas mas o público não abandona a causa. Do palco, disco sound e quase ninguém parecia incomodado com isso. “Mary” é um trama baladeiro conduzido por teclados que termina em destemido solo de guitarra. “Comfortably Numb”, um tema original dos Pink Floyd, ganha cor, brilho, glamour, teclados lascivos e falsetos pré-histéricos. Com tanto cortar, tanto cortar, os Scissor Sisters ficam apenas com uma colecção de canções balofas e inconsequentes de disco sound. Um hype tão-somente e com menos piada que os Electric 6. No fim não restavam dúvidas: as CocoRosie e os Bunnyranch haviam sido os heróis da noite.

18/08

E finalmente o sol. Ou o quase sol. Ou a não chuva, porque isto de optimismo exagerado não costuma ter bons resultados. Depois de alguns dias de teimosia, a chuva abriu espaço para algum bom tempo. Mesmo assim o Jazz na relva continuava a acontecer no Centro Cultural da vila que de ano para ano mostra estar mais desenvolvida e animada. Enquanto se esperava pelo concerto no palco Jazz, uma flauta e um batuque recreavam, perto de umas escadarias, a música de Michael Knight (a personagem do canastrão David Hasselhoff) numa versão ska. Numa visão mais optimista, pensava-se em Van Morrison e no seu colorido Astral Weeks. Ainda na espera pelo concerto, montava-se uma espécie de atelier construído com alguns bidões azuis que serviria durante toda a semana para um workshop de percussão. Uma vez chegados à sala, na falta do rio havia paredes, na falta de relva havia um enorme tapete verde que cobria quase todo o espaço. Pouco depois das cinco horas da tarde, o Bernardo Sassetti Trio entrava em palco. Bernardo Sassetti no piano acompanhado de Carlos Barreto no contrabaixo e Alexandre Frazão na bateria. Muitos olhares curiosos, ansiosos pelo início do espectáculo – o público do Jazz na relva vai-se repetindo aqui e ali. O trio, em palco, é assombroso. O piano de Sassetti evoca a aurora boreal em toda a sua beleza ou uma manhã trágica e teatral de orvalho. O contrabaixo, com ou sem arco, é uma força da natureza. O trabalho de bateria de Alexandre Frazão é espantoso. Dedicaram uma canção a Carlos Paredes, recriaram Miles Davis e um ou outro standard e debruçaram-se em temas mais ou menos uptempo. “Quando volta o encanto” foi um dos momentos mais altos da actuação: silencioso, belo, e nocturno.

Josh Rouse
De volta ao recinto, um concerto que reunia bastantes expectativas. Josh Rouse, acompanhado por um teclista/guitarrista trazia o colorido e açucarado 1972. Apesar de despidas, as canções que Josh Rouse apresentou foram sempre capazes de distribuir sorrisos pela plateia. ”1972”, “Sunshine (Come On Lady)”, “Come Back (Light Therapy)” e “Love Vibration” foram disparadas logo ao início em versões simples, desprovidas de grandes ornamentos soul escutáveis no disco. A mui cantarolável “Love Vibration” solta palavras de esperança: “Now everbody's scared / Scared of being lonely and abandoned / Find someone who cares / Find someone to love and understand you”. “Under Cold Blue Stars”, editado em 2002, foi passagem obrigatória em temas como “Miracle” e “Under Cold Blue Stars”. Houve também passagens por Home, por “Directions” - o tema que surge na banda sonora de Vanilla Sky -, e ainda por versões para canções de Tom Waits e Neil Young. Josh Rouse é o capitão dos refrões chorudos e a plateia mostrava-o bem ao cantá-los alegremente. Espera-se ver repetida a actuação e de preferência com full band, até porque Josh Rouse tem disco novo, Nashville, que vai estar disponível na Primavera de 2005.

Mão Morta
Os Mão Morta, ao que se sabe, tinham demonstrado o seu desagrado por continuarem a ser tratados como uma banda de garagem, por isso apresentaram-se vestidos de forma peculiar – cabeleiras, identidades sexuais trocadas, vestidos – e acima de tudo com três guitarras, o que confere à música dos Mão Morta uma dimensão quase absurda. Apresentaram-se como as “bonecas de Braga” e por isso voltaram às raízes – começaram com “Sobe Querida, Desce”. Ao contrário daquilo que costuma acontecer nos últimos concertos – chegaram a apresentar Nus do início ao fim – do último disco de originais, apresentaram apenas “Gnoma” - que na falta de Miguel Guedes, o vocalista dos Blind Zero, contou com três vozes da banda - e “Vertigem”. O alinhamento foi sendo feito com canções dos primeiros discos e direccionou-se claramente aos fãs da banda: “Lisboa”, “Budapeste”, “Barcelona”, “Vamos Fugir”, “E Se Depois” e o clássico “Em Directo (Para a Teelvisão)" com o refrão a ser entoado por muitos: “É guerra sem quartel / De empresas rivais / Na busca do controlo / De mercados locais / Ou então... ou então... / Encena-se um directo / Para a teelvisão”. “Cão da Morte” fechou um concerto enormíssimo, provavelmente um dos melhores dos últimos anos dos Mão Morta – se tivessem tocado entre os Mondo Generator e os Motorhead não seria surpresa para ninguém.

Desconhecidos para muitos – alguns ficavam surpresos ao saber a data de início de actividades – os DKT/MC5, banda lendária de Detroit, subiram ao palco com apenas três dos membros originais. Michael Davis (baixo), Wayne Kramer (guitarra) e Dennis Thompson (bateria). Para ajudar nas vozes e algo mais, subiram também ao palco Mark Arm (Mudhoney,) Nicke Royale (The Hellacopters), Lisa Kekaula (The Bellrays) e, numa das músicas, Lemmy Kilminster. Tudo o que se pedia eram descargas rock – aquelas que influenciam uma grande parte deste novo fenómeno do novo rock de que tanto se fala. Solos ao alto, as guitarras estão no meio de nós – e degladiam-se em despiques. Canções como “Ramblin’ Rose”, “Sister Anne”, “Motor City’s Burning”, “I Can Only Give You Everything” e “Human Being Lawnmower” são ainda inflamadas visões do rock n’ roll, adornadas pela soul ou pelos blues. Lisa Kekaula transformou-se na face mais visível dessa soul devedora aos Deuses. Segurava uma pandeireta e libertava sonoros gritos que chocavam com os riffs que iam saindo cada vez mais fortes e intrincados. É o preço do rock n’ roll e alguém tem de o pagar. Alguém no palco ordenou a plateia em três partes diferentes e sequenciou-as para manifestações distintas – cada um tinha uma frase diferente e o efeito foi deveras interessante. Uma vez posta em marcha, a manobra criava uma espécie de refrão vocal, de belo efeito. Pouco depois, o clássico, manobra rock de teor inflamável – Jeff Buckley que o diga, pois apresentou-a em vários concertos. A verdade é que os MC5 conquistaram finalmente Portugal – ainda se falava sobre o concerto um ou dois dias após de ter acontecido. Pena que tenha sido tantos anos após o primeiro disco.

Mondo Generator
A edição de 2003 do Festival Paredes de Coura trouxe os Queens of The Stone Age naquele que foi um dos melhores concertos do respectivo ano. Desta vez, a representação seria feita pelos Mondo Generator, o projecto de Nick Oliveri. Esta mudança pode parecer uma regressão e não podiam estar mais perto da verdade. Se A Drug Problem That Never Existed, o último disco de originais dos Mondo Generator, já não tinha especiais pontos de interesse, ao vivo a banda de Nick Oliveri torna-se ainda menos apelativa. Algo corre mal quando o melhor momento do concerto foi “I’m Gonna Leave You”, um tema original dos Queens Of The Stone Age. Algumas canções assemelham-se de tal forma aos Queens of The Stone Age que recuperam os riffs sirene de ambulância dos autores de Rated R. Ao mesmo tempo, a quantidade de panamás da Optimus fazia com que a plateia parecesse um laranjal. Indiferentes a isso, os Mondo Generator prosseguiram com algumas músicas novas e com alguns temas de A Drug Problem That Never Existed como “Four Corners”, “So High, So Low” e “Here We Come”. “13th Floor”, do primeiro disco, Cocain Rodeo, fechou um concerto morno e pouco inspirado.

Motorhead
Quem durante todo o dia percorreu a vila de Paredes de Coura, o recinto e o parque de campismo, sabia que a quantidade de camisolas pretas e brancas com o símbolo dos Motorhead queria dizer apenas uma coisa: o dia seria de incondicional devoção à banda de Lemmy Kilminster. Era certo e sabido que nem com toda a chuva deste mundo algum fã dos Motorhead abandonaria o recinto antes de Lemmy abandonar o palco pela última vez. Depois de entrarem em palco, não houve descanso durante muito tempo. O mosh pit alargou-se e era o local onde todos queriam estar. “Metropolis”, “Brazil” e uma versão de “God Save The Queen”, um original dos Sex Pistols, foram alguns dos mais altos momentos de uma actuação que fez esquecer chuva, a lama, e tudo mais. Lemmy, o carismático vocalista e baixista, conduziu os Motorhead pelo meio de erupções, ataques de fúria, raiva em quantidades suficientes e ainda houve tempo para um solo de bateria daquele que foi apresentado como o melhor baterista do mundo. Desde o início do concerto – talvez do dia – que uma canção pairava nas mentes de todos os fãs dos Motorhead. Essa canção é “Ace Of Spades” que já no encore transformou o anfiteatro natural de Paredes de Coura em zona de guerra, espaço privilegiado para o mosh. O resto da história pertence só a quem lá esteve – e não é de bom tom partilhar aquilo que muita gente vai guardar para o resto de uma vida.

Para o after hours estava reservada a actuação dos estupidamente excitantes LCD Soundsystem, o projecto de James Murphy. Ao contrário daquilo que se podia pensar, o concerto decorreu em forma de full band e não em DJ set, como tudo fazia prever. Agastado pela chuva que tinha atingido Paredes de Coura, o público limitava-se a algumas escassas centenas que se recusavam a ir para as tendas sem mais um pouco de diversão. O público permanecia algo enlameado mas colorido pelas canetas florescentes que a Optimus entretanto tinha distribuindo. E é exactamente de diversão que se tratam os LCD Soundsystem. Por enquanto ainda editaram apenas alguns singles, mas o burburinho já se sente ao longe. Quando apresentaram "Give It Up" já as coisas iam quentes. A mistura de funk e rock com batidas fortes tinha já incendiado o dance floor. Os temas são longos e estimulantes - alguns prolongam-se mesmo para lá dos dez minutos. James Murphy, o front man, com algum humor, anuncia as últimas músicas dizendo que, na verdade, não tem mais disponíveis. Os LCD apresentaram ainda uma cover e terminaram com a excêntrica e excitante “Yeah”. Se não fosse pela chuva e pelo horário do concerto, provavelmente estaríamos a falar aqui de um happening.
19/08

Mark Eitzel
É preciso admitir coragem a quem corre para uma guitarra sempre que alguma coisa de importante acontece. É mais do que necessário realçar o mérito a quem chora por dentro ao contar histórias a quem desconhece os factos. Urge, com toda a força do mundo, engrandecer a humildade de quem sente a mais pequena coisa e a partilha como se de um acontecimento se tratasse. Há que aplaudir Mark Eitzel, o responsável pelo palco songwriters ao terceiro dia de festival. Durante todo o concerto mostrou-se muito bem disposto e determinado a contar alguns pormenores por detrás das histórias que formam as suas músicas. O público, mesmo aquele que nunca tinha ouvido falar em Eitzel, sorriu com as suas histórias, sentiu o peso das suas canções. Mark Eitzel faz crer que não há nada mais para além de uma guitarra e uma voz. Soltou um sonoro e seguro “Fuck you too a quem tentou ser engraçadinho e contou com o apoio do público, que se desfez em gargalhadas. Se ao início o palco principal pareceu demasiado grande para Mark Eitzel, a sua voz e a sua guitarra, a meio do concerto parecia que o mundo não podia nunca abraçá-lo. As suas canções falam de desencontros (amorosos ou não), despedidas, amores perdidos. As suas canções caminham num limbo entre a felicidade e o descontentamento. Mark Eitzel confessou passar muito tempo em bares e até apresentou uma canção de teor político contra as medidas do governo americano; arrancou meia dúzia de sorrisos e uma salva de palmas e prosseguiu com a canção. Em “Nightwatchman”, Eitzel conta-nos: “Is the same lie you gave me before / I don't care anything you say is just fine / I'll just sit and watch the traffic passing by outside / The will in the world it's the prevailing tide / You're supposed to watch the night as it passes by / You're never supposed to need anyone / 'cause once i knew the secret to happiness / I knew it was oh but now it's gone ”. Num momento hilariante, de guitarra erguida acima da cabeça, dedica uma das canções a alguém da plateia. O alinhamento, esse, andou bastante à volta do repertório dos American Music Club, a banda liderada por Mark Eitzel e que agora, ao que parece, vai voltar à carga. Esperemos que sim. E de preferência com concerto de promoção em Portugal.

Wraygunn
Depois de os Bunnyranch e os Mão Morta terem mostrado que as bandas portuguesas estão em peso em Paredes de Coura, os Wraygunn tinham trabalho redobrado. No palco, alguém bate com um machado num troco acompanhado pela percussão. Paulo Furtado entra em palco e a partir daí nada é igual. Distribui riffs a torto e a direito, sem olhar aos seus receptores. Salta, ajoelha-se no chão em grandes solos. O concerto começou com “No More My Lord” e seguiu com “Drunk or Stoned”, a segunda faixa de Eclesiastes 1:11, que conta com os “uivos” de Raquel Ralha (uma das vozes dos Belle Chase Hotel). O coro gospel marca presença em algumas das faixas e confere à música dos Wraygunn uma maior presença e diversidade. É notória a evolução de Soul Jam para este último Eclesiastes 1:11. “Keep on Praying” - reforçada por teclados muito cool e palmas - e “Going Home” antecedem “Lonely”, a faixa que Paulo Furtado dedicou àqueles que ainda não tiveram a oportunidade de acasalar durante o festival. Perguntou primeiro quem estava no festival desde domingo e depois perguntou quem ainda não tinha acasalado e chegou à conclusão que eram cinco. Furtado dispara frases certeiras embora não pareçam fazer grande sentido. Fala do dia e da noite e reafirma “Até porque a vida é mesmo assim”. Diz-se contente ao imaginar toda a gente nua por detrás da roupa e o publico agradece. “How Long, How Long?”, uma das faixas mais fortes do último disco dos Wraygunn, ao vivo ganha uma força especial com os riffs matreiros de Paulo Furtado. Para as duas últimas canções, Furtado anuncia os temas “Sumo” e “Toda a noite”, respectivamente “Juice” e “All Night Long”. Ao aproximar-se o fim do concerto, Paulo Furtado salta do palco e enfia-se no imenso lamaçal que a chuva se encarregou de transformar. Volta ao palco “vestido” de lama da cabeça aos pés e despede-se do público que permanecia ainda atordoado com tudo aquilo a que tinha acabado de assistir - um final rock n’ roll como deve de ser. Provavelmente, todos aqueles que assistiram ao concerto dos Wraygunn vão pensar duas vezes antes de perder mais algum concerto da banda de Paulo Furtado.

Mark Lanegan havia estado em Paredes de Coura aquando da passagem dos Queens of The Stone Age, e por isso o cenário natural não lhe era estranho. Agora, acompanhado da sua banda, a Mark Lanegan Band, traz Bubblegum, o novo disco de originais do ex-Screaming Trees, e mais uma mão cheia de registos a solo. Alto, de gorro na cabeça, Lanegan entrou em palco e ofereceu um concerto que teve alguns bons momentos. Sempre discreto e pouco falador, Mark Lanegan apresentou uma colecção de canções devedoras ao blues e ao rock. Em termos de sonoridade, a Mark Lanegan Band apresenta guitarras sombrias, atmosferas encobertas que confluem em perfeição com o tom de voz rouco e cavernoso do seu líder. Apesar do seu trabalho não ter muita projecção em Portugal, Mark Lanegan sentiu o apoio de alguns fãs que pediam, em alta voz, músicas favoritas.

The Kills
O concerto dos The Kills começou com alguns problemas técnicos. Durante uns minutos, os técnicos tentaram reparar uma caixa de ritmos que nasceu amaldiçoada. Por duas vezes os The Kills tentaram começar o concerto e por duas vezes foram obrigados a parar, por problemas técnicos. À terceira foi de vez e arrancaram com "Cat Claw", um tema incluído no primeiro álbum de originais Keep on Your Mean Side. Aos White Stripes, banda a que muitas das vezes são comparados, só devem a formação. O som da dupla VV a.k.a. Alison Mosshart / Hotel a.k.a. Jamie Hince é agressivo, confrontador e rude. As guitarras são ásperas e fortes, a voz de Alison Mosshart é muitas vezes similar à de PJ Harvey. Os singles funcionam relativamente bem mas ao vivo fica a sensação de que se está a ouvir mais do mesmo e, em alguns casos, as coisas tornam-se verdadeiramente fastidiosas. Os The Kills são um daqueles casos em que seria necessário um Best Of para que se conseguisse reunir um conjunto de canções realmente excitantes, e isso provavelmente nunca vai acontecer. A fechar a actuação, “Drop Out Boogie”, um original de Captain Beefheart, serviu de passagem de testemunho para a próxima actuação.

Black Rebel Motorcycle Club
A actuação dos norte-americanos Black Rebel Motorcycle Club seria talvez a mais esperada e ansiada de todas. Depois do álbum de estreia marcaram presença no Festival Sudoeste, e agora apresentavam-se em Paredes de Coura com álbum novo, Take Them On, On Your Own. O trio composto por Peter Hayes, Robert Turner e Nick Jago reúne já um considerável número de fãs em Portugal e isso foi confirmado durante a actuação. Os Black Rebel Motorcycle Club são outro daqueles casos óbvios de uma banda que vive essencialmente da força dos singles. Enquanto Black Rebel Motorcycle Club, o álbum de estreia reunia um conjunto de boas canções, o seu sucessor não obteve esse mesmo sucesso. Ao vivo, pela força da actuação, todas as canções ganham um equilíbrio e balanço que faz esquecer essa diferença entre os dois registos e os singles ganham especial relevo. “Love Burns”, “Whatever Happened To My Rock And Roll (Punk Song)” e “Spread Your Love” foram alguns dos momentos mais fortes de um concerto que foi feito essencialmente com temas do último disco, como “Stop” e a enérgica “Six Barrel Shotgun – logo a abrir -, “In Like The Rose”, “Há Há High Babe”, “Shade of Blue”, “US Government” e “Heart and Soul” que, aliás, fechou o concerto. A alma dos BRMC é o baixo que conduz a maior parte das canções, mas o trabalho na guitarra e na bateria não são inferiores. A energia é facilmente visível e também o são as semelhanças com os Jesus & Mary Chain – talvez o maior mérito dos BRMC seja o de tornar mais acessível, para alguns ouvidos mais preguiçosos, o tipo de sonoridades produzidas pelos Jesus & Mary Chain. Tivesse o alinhamento contado com mais alguns temas do primeiro registo e estaríamos aqui a falar de um grande sucesso. Mesmo assim, os Black Rebel Motorcycle Club foram responsáveis por uma das melhores actuações da noite. Logo a seguir à dos Wraygunn.
20 AGOSTO

É um charro, é um charro”, afirmavam uns. “É um mega charro", replicavam outros. Pela madrugada dentro discutia-se as aventuras de Cerjevai-me no fumício e avistava-se o sol mesmo na noite cerrada. As madrugadas no parque de campismo iam passando depressa, às vezes de mão em mão, e é aí que nascem os verdadeiros mitos: de comício a fumício é um passo. Algures numa tenda, uma placa informava que estávamos perante a “Capela da Nossa Senhora da Ganza” – e os seus moradores pareciam fazer justiça ao nome. A Paredes de Coura, poucos vêm pelo cartaz ou pelas bandas. É o espírito, o local, o ambiente que faz com que o festival seja um sucesso de ano para ano. E independentemente das bandas que constituam o cartaz, a aposta vai para que para o ano o sucesso continue, e de preferência sem chuva.

Old Jerusalem
Em jeito de despedida, o último dia do palco songwriters recebia Old Jerusalem, ou seja Francisco Silva, responsável por April, o primeiro registo, editado pela Borland. Francisco Silva continua tímido, acanhado, e isso faz-se sentir em toda a actuação. O alinhamento foi alternando entre as canções de April, temas de compilações (“Each One As Lovers”, editada numa compilação da Acuarela Records) e alguns temas do próximo disco de originais que, ao que parece, será intitulado “October” – sim, ao que parece será editado em Outubro mas isso não quer dizer que April tenha sido editado em Abril. Francisco Silva apresentou inclusive uma nova canção que diz ter escrito há apenas uma semana, e com bastante sucesso. Perante alguma insegurança, foi com naturalidade que o público começou a ter atitudes menos dignas: em volume elevado, alguém pedia que Francisco Silva o deixasse tocar com ele em palco. O que parece é que os “cantautores” foram algo prejudicados pelo facto de os concertos não terem acontecido no palco secundário – o teor das suas canções pedia mais intimidade, mais recolhimento mas, infelizmente, a chuva não o permitiu. Mesmo assim, as melodias outonais de Old Jerusalem encheram Paredes de Coura de nostalgia e desassossego.

Dealema
De seguida, os Dealema que, a ver pela entrada em palco, trouxeram a Paredes de Coura uma legião de fãs e seguidores considerável. Maze, Fuse, Mundo, X Pião e DJ Guze começaram com uma pequena introdução e seguiram depois com Fado Vadio. Os b-boys animaram o espectáculo com algumas sessões de breakdance naquilo que constituiu uma verdadeira manifestação de hip-hop. Marta Ren, a vocalista dos Sloppy Joe, subiu a palco para dar voz aos temas “Talento Clandestino”, o primeiro single do álbum de estreia dos Dealema, e “Doa a Quem Doer”, a faixa zero do mesmo álbum. “Delema (Alta Tensão)” e “Tributo” foram alguns dos momentos altos da noite, assim como “Rota de Coalizão”, que contou com os amigos Mind Da Gap nas vozes. Ao contrário daquilo que seria de esperar, os Dealema voltaram para um encore muito pedido. “Ultimato” fechou mais um grande concerto – quem sabe um dos melhores de sempre dos Dealema – que, nas palavras do próprio grupo, foi o primeiro a reunir a malta toda.

Mike Patton
Mike Patton é alvo de uma legião de fãs que, embora aparentemente escondida, marca presença sempre que o líder de mil e um projectos coloca um pé no nosso país. Rahzel, o MC conhecido essencialmente pelo seu trabalho nos The Roots, esteve para estar presente com a sua banda, mas acabou por comparecer em Paredes de Coura noutro formato. Juntos, ofereceram em Paredes de Coura um dos concertos mais peculiares de 2004. Mike Patton escondia-se por trás de alguma parafernália electrónica enquanto Rahzel segurava apenas um microfone. Enquanto Rahzel mostrava os seus dotes no beatboxing, Patton ia mostrando os seus dotes de MC. O resultado foi tão surpreendente quanto positivo. Talvez embalado pelo concerto dos Dealema, o público mostrou-se agradado com o espectáculo. Patton, iniciando um jogo de palavras com a plateia, conseguiu por quase toda a plateia a ladrar, a miar e a reproduzir outras fórmulas impronunciáveis. O baixo era forte, ouviam-se vozes e pianos samplados. A meio, ouve-se um pouco do relato do jogo entre o Porto e o Benfica que estava a decorrer ao mesmo tempo. A imprevisibilidade foi o prato forte do concerto: “Seven Nation Army” dos White Stripes numa versão vocal, Wu-Tang Clan, os parabéns a Kelis, a aniversariante da noite, numa versão hip-hop, scratching vocal e muito mais.

Para o concerto seguinte, o dos Da Weasel, a maior assistência de todo o festival. O culto que rodeia o grupo trouxe até ao anfiteatro natural de Paredes de Coura milhares de fãs ou adeptos da causa, que cantavam em voz alta os refrões dos singles chorudos dos Da Weasel. Os autores do mais recente Re-Definições evocaram ainda Justin Timberlake e NERD num alinhamento feito a pensar nos fãs. Se é verdade que o concerto dos Da Weasel foi bastante baseado no último disco de originais - "GTA", "Loja (Canção do Carocho)", "Força (Uma Página de História) e o muito rodado single "Re-Tratamento" foram alguns dos casos - também não é menos verdade que clássicos como "Todagente", "Tás Na Boa", "Duia", "Outro Nível", "Essência" e "God Bless Johny" - o tema que fechou o concerto, já no encore - não escaparam no alinhamento.

Kelis
Pouco depois de os Da Weasel saírem do palco, já o DJ da banda de Kelis começava uma mini-festa para não deixar arrefecer o público. Algumas batidas depois, Kelis e toda a sua banda entravam em palco. De sapatilha cor-de-rosa e meia amarela, e com um penteado ainda mais afro do que o habitual, Kelis quis tornar o concerto de Paredes de Coura na sua mega festa de aniversário. Falou do Harlem e do hábito dos seus habitantes de fazer sexo em público e, depois de se aperceber que no público alguém segurava um cartaz que dizia “Sex Please”, apresentou uma canção mais antiga, bem mais serena e moody que outras do mesmo alinhamento. A banda que acompanha Kelis é uma máquina perfeita de fazer música: o guitarrista, excêntrico, é uma locomotiva groove; o baixista, o baterista e a menina das segundas vozes são complementos essenciais à voz de Kelis. Como não podia deixar de ser, “Trick Me” e “Mikshake” apareceram para alegria do povo. Mas, quando nada o fazia prever, Kelis abandonou o palco para não mais aparecer, após menos de uma hora de concerto. Ao que se sabe – apesar de ser absolutamente necessária a confirmação do comité do Guinness World Records – esta terá sito a mais curta festa de aniversário de sempre.

Mas Paredes de Coura ainda não havia acabado. Para a última noite de after hours - houve até quem ousasse chamar-lhe aftershave - estava ainda reservada a sempre desejada actuação de João Vieira, mais conhecido por DJ Kitten. A área reservada ao palco 2 enchia-se de pessoas desejosas de acção e João Vieira sabe como resolver isso. Dos mais recentes êxitos do novo rock até alguns clássicos do rock e do punk de outros tempos, tudo serve para prolongar a festa por mais algumas horas. Consta que a festa durou até de manhã e que só não continuou porque não lhe foi permitido. Mas não se pense que a actuação de DJ Kitten tenha encerrado o festival Paredes de Coura, porque este vai continuar presente na mente – e nas pulseiras – de todos os que lá estiveram – Paredes de Coura é mesmo assim. Pelo menos até ao próximo ano. E sempre com uma certeza: nenhuma tenda é impermeável.

André Gomes
andregomes@bodyspace.net
17/08/2004