DIA 1 |
A
música, diz-se, é um pretexto. Uma porta de entrada
num mundo de muitas tribos onde o que interessa é
a boa disposição e o contacto com pessoas de outras
índoles. Às vezes estranhas, às vezes anónimas, às
vezes amigas para uma vida. Não interessa quem veste
o quê, se usa ou não o casaco da moda ou o cinto da
onda electroclash. O sono raramente anda em
dia, mas quando pensamos que a madrugada avançada
já não nos dá tréguas, conseguimos arranjar sempre
forças para mais uns saltos naquela tenda que provavelmente
está quase a fechar. Adormece-se depois ao som de
batuques e da música que exala de todos os lados para
acordar com os mesmos sons com que se adormeceu. Mas
um festival é mesmo assim, um mundo aparte, um espaço
onde não há lugar para confrontações materialistas.
Uma festa, pois bem. Talvez por isso, a Herdade da
Casa Branca, durante aqueles quatro dias (que foram
preenchidos por mais de cem mil pessoas), fosse o
lugar em Portugal com mais substâncias ilegais por
metro quadrado.
O que aborrecia era a semelhança com um comício político,
dada a quantidade de merchandising que se oferecia
pelo recinto e os muitos produtos publicitários que
enchiam o chão quando a multidão era obrigada a debandar
por exigência da organização. Ou então, as recorrentes
“tens mortalhas?”, “desculpa...” e “com licença, posso
passar...?”. Ah!, e já agora, os preços quase proibitivos
que se praticavam no recinto.
A música é um pretexto, dizíamos, mas continua a ser
parte fundamental do festival. Assim, apresentamos
um pequeno guia-reportagem do que foram aqueles quatro
dias no plano dos concertos. Para quem esteve lá e
queira recordar bons e maus momentos, ou para quem
queira descobrir o que perdeu.
07/08
Múm Planícies de gelo em tapete de mar
Palco
Quando pequenos átomos
de música se desprendem do imaginário
gelado da Islândia e tornam incandescentes as
hordas festivaleiras. Quando a floresta estéril
irrompe da poeira e assiste os pequenos partos inorgânicos.
Quando o mundo acontece cá fora, para lá
do palco, mas os olhos humanos insistem em testemunhar
aquilo. E aquilo é um caleidoscópio
de sons e instantes pintado de azul-mar e verde-água.
Os Múm são ingénuos delatores
do arranjo conceptual de um festival de Verão.
As suas inscrições plasmáticas
de dores infligidas nos instrumentos, os pequenos
rascunhos de cores frouxas foram o substrato de um
conto infantil nórdico contado ao anoitecer.
A experimentação pop encontra em Tynes
e Smárason e nas gémeas Valtýsdóttir
um habitat de sonhos e pinceladas. Fragmentos de melodia
e clareiras ocupadas por silêncio. Se a música
também decorre de paisagens, esta actuação
enviesou a raiz electrónica e construiu um
glaciar de emoções, uma fonte de palavras
e conceitos que jorra sangue e linfa, seiva e crude.
A beleza lapidar dos arranjos não esmoreceu
perante uma assistência a espaços composta
e disforme. As teclas, as cordas, a percussão
frágil e os metais, a voz límpida e
húmida, de cristais trabalhados. Tudo evocativo
das planícies imensas de gelo em confluência
com o aroma oceânico.
Quase no final, floresceu um lótus que rompeu
o gelo para se mostrar em ‘Green Grass of Tunnel’.
Finalmente os Múm não são ninguém.
HG
Arnaldo
Antunes Tribalista frouxo Palco
Eminente autor de canções
a destacar-se do combo artístico chamado Tribalistas,
Arnaldo Antunes significou a celebração
primeira da encruzilhada de comunidades e linguagens
de estilo. Na sua actuação, convocou-se
o reggae e o funk, a música tradicional do
Brasil e a África Negra, o continente europeu
e a lusofonia na voz. Mas a prestação
em palco foi amainada pela indecisão entre
o decalque romanesco puro e simples e os jogos de
sedimentação desgarrada. O encontro
pastoral entre a comédia e a tragédia,
os óleos de fachada e o rosário dos
temas extraídos a “Paradeiro” saquearam
a fluidez do espectáculo e empalideceram o
tesouro artístico de que se fazia acompanhar.
Talvez ao lado de Marisa Monte e Carlinhos Brown o
mosaico ficasse mais multicolor e apetecível.
A atenção decaiu ao longo do concerto
e o escriba que abaixo assina já se passeava
pelo recinto enquanto escutava, em fundo, as pouco
incisivas tomadas de assalto às canções.
A ponto de desejar abandonar os tribalismos e ir apanhar
morangos... do nordeste. HG
Terrakota
O
destino não é de uma cor só
Aos Terrakota cabia
a responsabilidade de dar por terminada a primeira
noite de concertos no palco Optimus, e o desafio foi
passado com distinção. É verdade
que num concerto que passou as duas horas nem sempre
foi possível manter o público aceso,
muito por culpa dos acentuados cortes de ritmo, mas
as sonoridades reggae, ska e funk contagiaram e esmagaram
um recinto com a maior enchente da noite.
Pegando numa linha criativa que apela ao tribalismo
Africano para a partir dele percorrer os mais diversificados
e recônditos locais do planeta, os Terrakota
utilizam também uma panóplia diversificada
de instrumentos que muito contribuíram para
o incentivo à dança e aos pulos. Um
concerto deste colectivo é sempre um espectáculo
festivo, uma viagem mais rítmica que melódica
onde o que interessa é a boa onda, os saltos
e os charros de boca em boca. Mas além do cansaço
provocado pelo rodopio do corpo, o que também
fatigava eram as recorrentes e repetitivas mensagens peace and love ao longo de todo o concerto.
Resumindo, um bom espectáculo de ritmos do
mundo menos desenvolvido (os mesmos que ouvia quem
passeasse dias antes pela Zambujeira do Mar) que pecou
pela extensão, o que levou a um esgotamento
precoce da paciência e das forças. TG
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