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Festival Sudoeste 2003
Zambujeira do Mar
7-10/08/2003


A música, diz-se, é um pretexto. Uma porta de entrada num mundo de muitas tribos onde o que interessa é a boa disposição e o contacto com pessoas de outras índoles. Às vezes estranhas, às vezes anónimas, às vezes amigas para uma vida. Não interessa quem veste o quê, se usa ou não o casaco da moda ou o cinto da onda electroclash. O sono raramente anda em dia, mas quando pensamos que a madrugada avançada já não nos dá tréguas, conseguimos arranjar sempre forças para mais uns saltos naquela tenda que provavelmente está quase a fechar. Adormece-se depois ao som de batuques e da música que exala de todos os lados para acordar com os mesmos sons com que se adormeceu. Mas um festival é mesmo assim, um mundo aparte, um espaço onde não há lugar para confrontações materialistas. Uma festa, pois bem. Talvez por isso, a Herdade da Casa Branca, durante aqueles quatro dias (que foram preenchidos por mais de cem mil pessoas), fosse o lugar em Portugal com mais substâncias ilegais por metro quadrado.
O que aborrecia era a semelhança com um comício político, dada a quantidade de merchandising que se oferecia pelo recinto e os muitos produtos publicitários que enchiam o chão quando a multidão era obrigada a debandar por exigência da organização. Ou então, as recorrentes “tens mortalhas?”, “desculpa...” e “com licença, posso passar...?”. Ah!, e já agora, os preços quase proibitivos que se praticavam no recinto.
A música é um pretexto, dizíamos, mas continua a ser parte fundamental do festival. Assim, apresentamos um pequeno guia-reportagem do que foram aqueles quatro dias no plano dos concertos. Para quem esteve lá e queira recordar bons e maus momentos, ou para quem queira descobrir o que perdeu.

07/08

Múm Planícies de gelo em tapete de mar Palco
Quando pequenos átomos de música se desprendem do imaginário gelado da Islândia e tornam incandescentes as hordas festivaleiras. Quando a floresta estéril irrompe da poeira e assiste os pequenos partos inorgânicos. Quando o mundo acontece cá fora, para lá do palco, mas os olhos humanos insistem em testemunhar aquilo. E aquilo é um caleidoscópio de sons e instantes pintado de azul-mar e verde-água. Os Múm são ingénuos delatores do arranjo conceptual de um festival de Verão. As suas inscrições plasmáticas de dores infligidas nos instrumentos, os pequenos rascunhos de cores frouxas foram o substrato de um conto infantil nórdico contado ao anoitecer.
A experimentação pop encontra em Tynes e Smárason e nas gémeas Valtýsdóttir um habitat de sonhos e pinceladas. Fragmentos de melodia e clareiras ocupadas por silêncio. Se a música também decorre de paisagens, esta actuação enviesou a raiz electrónica e construiu um glaciar de emoções, uma fonte de palavras e conceitos que jorra sangue e linfa, seiva e crude. A beleza lapidar dos arranjos não esmoreceu perante uma assistência a espaços composta e disforme. As teclas, as cordas, a percussão frágil e os metais, a voz límpida e húmida, de cristais trabalhados. Tudo evocativo das planícies imensas de gelo em confluência com o aroma oceânico.
Quase no final, floresceu um lótus que rompeu o gelo para se mostrar em ‘Green Grass of Tunnel’. Finalmente os Múm não são ninguém. HG

Arnaldo Antunes Tribalista frouxo Palco
Eminente autor de canções a destacar-se do combo artístico chamado Tribalistas, Arnaldo Antunes significou a celebração primeira da encruzilhada de comunidades e linguagens de estilo. Na sua actuação, convocou-se o reggae e o funk, a música tradicional do Brasil e a África Negra, o continente europeu e a lusofonia na voz. Mas a prestação em palco foi amainada pela indecisão entre o decalque romanesco puro e simples e os jogos de sedimentação desgarrada. O encontro pastoral entre a comédia e a tragédia, os óleos de fachada e o rosário dos temas extraídos a “Paradeiro” saquearam a fluidez do espectáculo e empalideceram o tesouro artístico de que se fazia acompanhar.
Talvez ao lado de Marisa Monte e Carlinhos Brown o mosaico ficasse mais multicolor e apetecível. A atenção decaiu ao longo do concerto e o escriba que abaixo assina já se passeava pelo recinto enquanto escutava, em fundo, as pouco incisivas tomadas de assalto às canções. A ponto de desejar abandonar os tribalismos e ir apanhar morangos... do nordeste. HG

Terrakota O destino não é de uma cor só
Aos Terrakota cabia a responsabilidade de dar por terminada a primeira noite de concertos no palco Optimus, e o desafio foi passado com distinção. É verdade que num concerto que passou as duas horas nem sempre foi possível manter o público aceso, muito por culpa dos acentuados cortes de ritmo, mas as sonoridades reggae, ska e funk contagiaram e esmagaram um recinto com a maior enchente da noite.
Pegando numa linha criativa que apela ao tribalismo Africano para a partir dele percorrer os mais diversificados e recônditos locais do planeta, os Terrakota utilizam também uma panóplia diversificada de instrumentos que muito contribuíram para o incentivo à dança e aos pulos. Um concerto deste colectivo é sempre um espectáculo festivo, uma viagem mais rítmica que melódica onde o que interessa é a boa onda, os saltos e os charros de boca em boca. Mas além do cansaço provocado pelo rodopio do corpo, o que também fatigava eram as recorrentes e repetitivas mensagens peace and love ao longo de todo o concerto.
Resumindo, um bom espectáculo de ritmos do mundo menos desenvolvido (os mesmos que ouvia quem passeasse dias antes pela Zambujeira do Mar) que pecou pela extensão, o que levou a um esgotamento precoce da paciência e das forças. TG

08/08

Toranja Gomos a menos
A difícil tarefa de quem, como os Toranja, abre as hostilidades do palco principal com os últimos feixes de luz solar ainda a cair sobre a Herdade da Casa Branca deve ser tida em conta como sinal de brio. Como se sabe, com um público ainda a meio gás e sem o aproveitamento das potencialidades dos jogos de luz, um concerto não tem a mesma capacidade de adesão da audiência. Mesmo assim, as pessoas aderiram, ainda que em pequena escala.
Com um início algo atribulado (o som exterior estava cortado e só se ouviam - bastante mal, diga-se de passagem - as colunas de palco), os Toranja conseguiram demonstrar, ainda que não numa dose categórica, porque são considerados uma das promessas da música cantada em Português e devedora dos cantautores nacionais. É verdade que continuam para muitos presos ao fantasma Jorge Palma, mas, convenhamos, Tiago Bettencourt mostra uma boa capacidade na feitura de canções com letras que são certeiras no que dizem.
O concerto foi extremamente pequeno (não chegou aos trinta minutos), com os maiores picos energéticos a penderem sobre o single de avanço “Cenário” e também sobre o tema que finalizou, “Bola de Futebol”. Pelo meio, o momento mais intimista ocorreu quando Bettencourt se sentou ao piano para, quase sozinho, cantar “Carta”. TG

Blind Zero "Com Palma e talento chegamos lá"
Surpreendente para muitos daqueles que, ao início da noite, já ocupavam o seu lugar fronte ao palco, o concerto dos portugueses Blind Zero revelou-se indubitavelmente como o concerto rock’n’roll desta edição do festival do Sudoeste (se tomarmos em conta que os Primal Scream não são apenas feitos de rock). Com uma noção certeira de espectáculo e de efervescência musical, Miguel Guedes e companhia mostraram, ali, que um concerto – na sua perspectivada significação – pode ser uma perfeita combinação entre teatro, entretenimento e energia rock inesgotável. Durante a quase hora que o espectáculo permaneceu em pé, a banda portuense soube conquistar um público que teria certas dúvidas sobre o estado actual dos Blind Zero, precisamente por os ter deixado por alturas de Trigger, álbum que hoje já pouco diz do que a banda é em álbum e ao vivo. A Way To Bleed Your Lover parece ter colocado os Blind Zero numa posição cobiçável no parco panorama rock de origem nacional e isso reflecte-se, claramente, em cima do palco. Miguel Guedes é hoje um dos melhores performers (nacionalmente falando) a par de Adolfo Luxúria Canibal e Manuela Azevedo. E quem esteve presente perceberá facilmente do que falo. Por sua vez, Miguel Ferreira – também dos Clã – veio trazer ao universo dos Blind Zero, por meio dos seus teclados, ambientes alucinantes que permitiram imprimir novas sensações aos temas já por si ásperos dos Blind Zero. Resumindo, a adolescência passou-se-lhes para trás das costas.
Sangue, punk e cólera, em motim rock, percorreram uma actuação fugaz mas histórica na vida do Sudoeste. O momento mais alto terá sido, porventura, a subida ao palco de Jorge Palma – aplaudido carinhosamente pelo público - para, com a banda, interpretar «The Down Set Is Tonight», um raro momento calmo dentro de uma actuação com escassas pausas, e o seu «Bairro do Amor», ali transformado num rock amargo e cru, território já parente à banda de Miguel Guedes. Engane-se, no entanto, quem ousou pensar que o espectáculo ficou-se por estes dois momentos mágicos. Temas como «Trashing The Beauty», «Wish Tonight», «About Now» ou os mais expostos «Big Brother», «You Owe Us Blood» e «Another One» trouxeram àquele espaço de tempo quilos imensos de energia e rendição e colocaram, de forma invejável, corpos em chamas. O que, aliás, jamais poderá ser coisa má. TC

Suede A obsessiva obsessão pelo passado
Longe vão os tempos em que os Suede eram peça fundamental na galáxia pop europeia e em que espalhavam glamour por onde passavam. Em 2003, a banda de Brett Anderson é meramente uma extensão pouco ousada do seu (digno) passado. Deste modo, a segunda passagem dos Suede pelo palco do Festival Sudoeste [na primeira edição foram cabeça-de-cartaz de uma das noites] feita de muito glam rock, suor e passado veio apenas provar esta infeliz situação.
Não foi de modo inocente que a banda optou por apresentar um alinhamento pouco arriscado, centrado essencialmente nos singles que elevaram o seu estatuto em meados da década de 90 e, em menor número, nos singles dos últimos dois álbuns que passaram, aliás, ao lado da crítica e do público. Os Suede propuseram-se, assim, a agarrar um público que maioritariamente não era o seu e venceram, mesmo que sem grandes alaridos. Como solução para uma possível inércia relativamente à actual fase, a banda encontrou a transposição para palco de um best of da sua carreira. Ironicamente, A New Morning, o último álbum, passou de rajada naquele palco.
Anderson - energético e comunicativo q.b. - e companhia não quiseram incomodar muito e, de facto, cumpriram. A energia pairou pelo ar em explosivos hinos rock como os mais velhinhos «Animal Nitrate», «Filmstar», «Trash» e «Beautiful Ones» - estes dois últimos cantados em delírio colectivo - ou no novo «I Love The Way You Love Me». Os mais recentes «Can’t Get Enough», «Obsessions» e «Electricity» (este raramente tocado em Portugal) também comunicaram bem com os milhares de corpos que os ouviram e lhes reagiram. As coisas acalmaram – fisicamente - em baladas saturadas como «Positivity», «She’s In Fashion», «Everything Will Flow» ou a derradeira «Saturday Night». No final, ficou a sensação de que este seria um excelente concerto algures em 1996. O que é um facto é que estamos em 2003 e muito pouco mudou no interior criativo dos Suede. TC

Jamiroquai Teste: Até onde vai a tua paciência?
Algumas horas antes da sua entrada em palco, Jay Kay já circulava, de boca em boca, um pouco por todo o lado. Ele era Jamiro na praia, no campismo, nos chuveiros, nos restaurantes... Na noite mais concorrida de todo o festival, uma multidão assombrosa e dissemelhante esperava, com grandes expectativas, o novo rei do funk. Mesmo quem estava de pé atrás, debruçava-se para ver o que se iria suceder em palco quando Jay Kay e os Jamiroquai o pisassem. Prometia-se festim.
O concerto começou do melhor modo imaginável. "Canned Heat" e "Cosmic Girl" serviram de mote às primeiras danças e ondas de pó. As temperaturas tinham indubitavelmente subido. Aparentemente a noite estava ganha. Pelo menos para muitos esteve. Para outros como eu, a partir deste momento o espectáculo foi-se perdendo em excessivas e repetitivas extensões de alguns temas do senhor de "Virtual Insanity", o qual, para decepção de muitos, não foi tocado. Seria tudo diferente se as longas interpretações fossem dotadas de insanos improvisos ou desvarios mas o que tivemos oportunidade de assistir foi a uma mera repetição inconsequente da linha-base de cada tema tocado. A paciência começava a ser testada.
A banda esteve competente e Jay Kay - vestido de branco - não esteve mal nas suas danças e intervenções (brilhante a tirada da auto-aclamação de bom rapaz que leva todas as noites leite com chocolate à mãe e que nunca fumou um charro), mas faltou alguma loucura. Os "high times" que se esperavam ficaram-se pelo caminho e, apesar do profissionalismo demonstrado, Jay Kay sabia que podia fazer melhor. Ainda esboçou pedaços de loucura no final mas a festa ficou-se por aí, por um "Deeper Underground" muito rock groovesco e selvagem que soube a pouco. Pelo meio "Love Foolosophy", "Alright" e mais meia dúzia de alguns dos temas mais obscuros da sua carreira encheram as medidas a uma maioria rendida aos encantos do baixinho-gigante do funk. Outros como eu esperavam algo mais. A palavra semi-desilusão nunca se aplicou tão bem. TC

Primal Scream Vivos e em forma...
Aos Primal Scream coube a árdua tarefa de actuar após a maior enchente do festival. E perante uma debandada considerável do público optaram por um inicio menos arrojado, numa toada coesa, em que a electrónica foi esquecida por momentos, como que tentando fixar um público.
Talvez tenha sido "Shoot Speed/Kill Light", que manteve muita da audiência para o resto do concerto, mas foi a partir daí que tudo aqueceu… Em "Autobahn 66", do último Evil Heat, os atributos dos Primal Scream encantaram. Os excessos, a dança, o rock e as distorções marcaram o início de uma série arrasadora de músicas - "Rocks", "Medication" e "City", entre outras - nas quais já foi visível a procura do disforme e de vários caminhos por cada elemento do grupo, quase que tocando independentemente, para depois surgir a coesão.
Um concerto em que a excentricidade, a potência e a criatividade marcaram presença, acabando por ser um dos momentos mais altos do festival. Contrariam o início do concerto ("I Wanna Die"). Estão vivos! MM

2 Many Dj's Com um pé na dança, outro no rock e outro no whatever
Estavam os Primal Scream a animar «os resistentes» no palco principal com «Miss Lucifer» quando me dirigi ao Planeta Sudoeste. Dentro e para além deste, milhares de festivaleiros esperavam celebração mesmo depois de um suado exercício de ginástica que a comparência num concerto dos Jamiroquai exige. Parece ser esta a tendência do futuro do Sudoeste: cada vez mais e melhores alternativas ao palco principal. A actuação dos 2 Many DJ’s neste espaço alternativo é prova cabal desta nova realidade.
A julgar pela longa duração do set, pelas danças em modo «non stop» e pela cada vez maior afluência ao espaço, a prestação dos 2 Many DJ’s terá constituído, para os que a presenciaram, um dos momentos mais entusiásticos de todo o festival, muito provavelmente porque a fórmula encontrada pela dupla - os irmãos David and Stephen Dewaele - para atrair públicos de campos tão diferentes como o r’n’b, o hip hop, o electro, o techno, o rock, o house ou funk esteja próxima da composição da demência colectiva. Ou porque nos encontramos, hoje, mais próximos de um eclectismo há poucos anos inconcebível. Ter direito a pedaços de delírio, dança e alienação numa arena repleta de corpos ultramóveis só pode ser um senhor privilégio ou uma dádiva. Não é todos os dias (noites ou madrugadas) que temos acesso a endiabradas misturas de um qualquer tema de Nirvana, Chemical Brothers, Beastie Boys, Beyoncé, Garbage, Royksöpp, The White Stripes ou Blur, jamais embrulhadas entre si e entre muitas outras deambulações tecno, house ou electro. E o nosso corpo, mesmo exausto, só pode mesmo agradecer...
Os sorrisos na cara, no durante e no pós-set, são esclarecedores de que a vida com as «músicas emprestadas» dos 2 Many DJ’s seria bem menos cinzenta. TC

09/08

David Fonseca David FonSECA?
O português que cantou no maior número de festivais deste 2003 chegou à Zambujeira do Mar com um concerto maçador que começa a precisar de nova cara. Num concerto que teve o momento mais alto a pender, naturalmente, sobre “Someone That Cannot Love” mas onde também se destacou o novo single “The 80’s”, foi um vê-se-te-avias de temas chatos, que aborreceram uma audiência que estava ali para ouvir... “Someone That Cannot Love”… e pouco mais. Além disso, David Fonseca apresentou duas versões para temas dos Pixies e The Cars num palco que ele bem conhece. Foi ali que os Silence 4 atingiram um dos seus maiores momentos rumo aos mais de 200 000 discos vendidos.
Apesar de tudo isto, a actuação do ponto de vista técnico foi consistente, mostrando um bom rol de músicos de suporte onde se destaca Rita Pereira (ex-Atomic Bees) ao piano. A escolha e ordenação do alinhamento permitiu um encadeamento bem trabalhado e consequentemente uma estrutura de concerto (do ponto de vista dos picos energéticos) mais ou menos conseguida, mesmo que pouco ambiciosa. TG

Beth Orton "Desculpem lá, mas o álcool está-me a descer à alma"
A noite estava estranha. Arrefecera e tudo à minha volta era nevoeiro e faces desfocadas. Porém, a de Beth Orton estava bem acessível aos meus sentidos. Figura franzina, meio maria-rapaz de voz única e guitarra em punho, Beth movimenta-se no palco de forma impressionante. Por trás, a acompanhá-la, alguns amigos tocam cordas (um contrabaixo, um violino, um violoncelo e uma guitarra) e uma bateria, procurando engrandecer os simples e singelos temas da cantautora folk britânica.
Coube, assim, a Beth Orton a difícil tarefa de enfrentar um público que mal a conhecia, a meio do cartaz de uma noite que pedia movimento e cor. Podia ter descambado o acto quando, depois de executar um tema, lançou um efusivo «gracias» à assistência. Pediu desculpa e explicou que estava um bocado confusa. A cerveja consumida durante a prestação terá contribuído certamente para este pequeno equívoco. O momento infeliz foi, de imediato, esquecido. Afinal as coisas não lhe estavam a correr nada mal. Cada vez mais público ia abanando a anca e entoando os refrões dos temas mais emblemáticos da carreira da cantora como o descontraído «She Cries Your name», o derradeiro e mágico «Central Reservation» ou o magnífico «Stolen Car». No entanto, terá sido «Mount Washington» - do último álbum, Daybreaker - o momento mais poderoso e intenso da actuação, quando Beth e companhia, em delírio, arriscaram terminar o tema em distorção rock. Momentos menos interessantes também os houve. A música de Beth Orton não é para todos e nem sempre funciona da melhor forma. «Galaxy Of Emptiness » soou algo enfadonha, é certo, mas, apercebendo-se de que esta não era a direcção acertada para aquele momento e espaço, Beth atacou os temas mais descontraídos de Central Reservation. Pena que pérolas como «Stars All Seem To Weep» e «This One’s Gonna Bruise» não tenham tido espaço ali. Algo seria diferente. Possivelmente uma Aula Magna lhes desse espaço e tempo para respirarem.
Assim sendo, e apesar daquele palco ser demasiado grande para Beth, a progressão da actuação fez constatar que, paulatinamente, o público se foi deixando levar, descontraidamente, pelos sons balsâmicos vindos do palco. No final também Orton estaria mais solta. Foi, no entanto, apenas um concerto simpático. TC

Morcheeba Competentes mas não descarados
Os Morcheeba foram os segundos Jamiroquai, na medida que tinham o público já conquistado, conhecedor do repertório e ansioso por entoar os sucessos da banda. Sem surpreenderem (em Paredes de Coura estiveram a melhor nível), mostraram-se uma banda profissional, bem rodada, seguríssima, com Skye Edwards mostrando toda a sua sensualidade e simpatia. Cada vez mais próximo do universo pop, a actuação primou mais pela empatia com o público do que propriamente pela qualidade musical. Houve tempo para uma versão de Neil Young, e também houve o inevitável “Rome Wasn’t Build In a Day”, já em encore. Um triunfo, mesmo num concerto programado ao milímetro e sem qualquer risco. MM

Skin Besta de palco em performance enraivecida
Faltava ainda libertar o touro em forma de mulher para encerrar mais uma noite de actuações no palco principal. Skin ocupou a arena do Sudoeste para uma apresentação carregada de testosterona em doses mais substanciais do que de estrogénio. Exercício redundante será afirmar que a antiga voz dos Skunk Anansie encheu todos os cantos que havia para ocupar naquele palco, chegando a assediar um assistente que por lá se encontrava. Em pleno direito, revisitou momentos importantes daquela formação como ‘Hedonism’, ‘Brazen’ e ‘You’ll Follow Me Down’, dedicando o resto da performance ao alinhamento da sua estreia em nome próprio “Fleshwounds”. Como se não bastassem a melomania da sua prestação a solo e a fúria que se desprende do corpo e da voz. Que não deixam indiferentes apoiantes nem delatores. Foi uma actuação muito forte, ainda que soe, no conjunto e à distância de uma semana, um pouco a mais do mesmo. HG

Chicks on Speed Electroclash do dia seguinte
O trio feminino alimenta-se da negação do rock pela antítese estilística e desconstrucionista, mas aproxima-se do género sem guitarras mas com atitude. O tema ‘We Don’t Play Guitars’ serve de base de sustentação a um manifesto multimédia contra o conservadorismo da pop de cifrões. A imagem é quase tudo. Contra a tela colocada por detrás delas eram disparadas imagens caseiras ou videogravadas com alegorias visuais que centrifugavam tudo, desde o mundo da moda à nota de dólar americano. Registavam também aparições em nome próprio e de Peaches, espécie de matriarca do electroclash transcontinental. De resto, era atentar nos adereços que serviam de vestuário, nos instrumentos de cartão, na combinação de veludo e plástico, na imagética vaginal. E deglutir a marcha sónica e os ensurdecedores espectros de voz. Fulgurante a prestação das Chicks on Speed no pequeno palco Planeta Sudoeste. HG

10/08

Badly Drawn Boy “Eu gosto de dar concertos para amigos”
Identificação ao peito. Bebe-se um pouco, pega-se na guitarra. Começa-se a tocar, pára-se: “What fucking sound”. Com o volume mais alto, começa-se a tocar de novo. Pára-se, coça-se o nariz. Damon Gough protagonizou no início de noite/final de tarde de domingo o concerto mais original de todo o Sudoeste. Quase sempre sozinho (à excepção de quando vinha alguém, de surpresa, ao piano ou quando quem o acompanha em digressão veio dançar para o palco) Badly Drawn Boy desfilou pelo palco temas dos três álbuns até agora editados, ao mesmo tempo que revisitou lados-B e adiantou alguns avanços para o novo disco. As versões eram, naturalmente, despojadas do seu lado mais rítmico, e algumas delas chegavam a ser mesmo de difícil reconhecimento por parte de quem conhecia os originais. Não obstante isso, foram sempre certeiras , mesmo que arriscadas, e mostraram que mesmo em versão solitária Badly Drawn Boy é capaz de fazer muita coisa.
O recinto começou quase vazio, mas à medida que as músicas foram avançando a plateia foi-se compondo e os sorrisos de admiração foram mais que muitos. Primando sempre por um estilo invulgar, quase apalhaçado, Badly Drawn Boy soube sempre como cativar o público mesmo quando parecia não o querer fazer. TG

Moloko O passado era mais risonho...
Os Moloko assinaram uma actuação inconstante, em que os momentos altos se sucediam a momentos mais monótonos. “Sing it Back” foi um grande momento, numa autêntica jam session de longa duração, carregada de criatividade e percorrendo caminhos do jazz, soul, funk e música de dança, tudo numa música só. Mas houve momentos em que tivemos saudades de algum do dramatismo que Roisin Murphy tão bem sabe empregar à sua voz. Faltaram as orquestrações mais elaboradas, mas no cômputo geral souberam adaptar a sua música a um festival e apelar a uns passos de dança. É isso que se quer num festival…Certo? MM

Stereophonics Embaixadores de Sua Baixeza, o pop-rock galês
Fracos simulacros dos Manic Street Preachers, a superar os índices de irritabilidade dos Oasis e, ainda assim, francos-atiradores nas tabelas de vendas e no airplay das rádios, os Stereophonics bafejaram os presentes com uma excelsa declamação de rock desnutrido. Se os grandes êxitos radiofónicos foram bem recebidos, a incursão por ‘Ace of Spades’ dos Mötorhead colocou-os alguns furos abaixo daquilo que poderia ter sido uma actuação inofensiva para passar a sofrível. Também poderá ser ingrata a tarefa de suceder a Badly Drawn Boy e aos Moloko e antecipar as actuações de Beth Gibbons & Rustin Man e Beck. Contudo, a prestação, tal qual a conhecemos, não deixaria de ser desinteressante num outro contexto, festivaleiro ou não. A insidiosa tentativa de penetração no indie rock de feira torna ainda mais caricatural o embuste. Mais tarde, a noite prosseguiu lauta em revelações e confirmações e os Stereophonics foram esquecidos. Talvez tenham aprendido qualquer coisa com os nomes que se lhes seguiram. Se tiver sido esse o caso, bem hajam e voltem sempre. HG

Beth Gibbons & Rustin Man Cápsula intemporal em gestação
Entender Beth Gibbons é ousar tocar a berma da vida, decalcar a biografia de um qualquer ser e reproduzi-la em parcos minutos. É tentar compreender que a existência não passa do refrão de uma música que bate fundo na alma. Olhar o luar sobre o Sudoeste e contar as estrelas que vieram assistir à prestação da mais brilhante. “Out of Season”, o primeiro capítulo de um compêndio a solo que se pretende infinito, é um disco intemporal, abstémio em matéria de elaboradas técnicas de estúdio e uma das mais bonitas composições fora de época, algo vintage, porque se eternizou na máquina do tempo. Cheiram já a Outono as recordações mais persistentes daquela subida ao palco no Verão de 2003. Um set que desembainhou os temas do disco com uma pequena inflexão passada, a trazer de volta as memórias da actuação cinco anos antes à frente dos Portishead. Ali mesmo, entre a estrada e o mar. ‘Mysteries’ soou primeiro e mais denso. Depois, foi assistir a um trabalho de performance que tanto tem de desajeitado como de encantador. E sentir o calor que desencarcerou do seu corpo ao descer para cumprimentar a sua assistência, extasiada e aturdida. É destas notas e destas palavras que se arquitectam os mais consistentes casulos, os mais desafogados sopros do coração. Fica a saudade na partida. HG

Beck Quando o pó rima com festim rock-qualquer-coisa
Derradeiro momento de um festival onde predominou o profissionalismo mas raramente a novidade, o concerto de Beck constituía, antes de acontecer, para muitos - menos do que nas outras noites mas maioritariamente fiéis – uma espécie de esperança na surpresa.
A noite já ia longa quando Beck e seus companheiros de estrada, vestidos de negro, invadiam o palco. «Novacane», « New Pollution» e «Mixed Bizness» davam início ao momento, de forma explosiva. O clima era de festa. Sea Change parecia ter sido arrumado pelo Artista a um canto para ocasiões mais intimistas, mas eis que este se revela. Depois de um «Paper Tiger» mais eléctrico do que em álbum, temas como «The Golden Age», «Lonesome Tears» e «Lost Cause» vieram acalmar as hostes. Naquele contexto, ficaram-se a milhas da intensidade atingida em disco. O desfalecimento de um público sedento por dança, mesmo que cansado, provava-o. Contavam-se pelos dedos os que queriam folk introspectivo a horas tão tardias. «Loser», em versão encurtada e tocado em slide , voltou a levantar pó na Zambujeira. A electricidade e o fervor haviam regressado àqueles espaço e momento tornados ilimitados. Beck ameaçara causar estragos, ao afirmar que o Verão habitualmente o incentivava à realização de estúpidas experiências. Um brilhante meddley de temas de gente como Beyoncé, Justin Timberlake, Nelly, TATU ou Queen fez corar cada um dos presentes. A festa tinha regressado à Zambujeira e com ela o pó.
Eis que Badly Drawn Boy é chamado a palco. Com o Artista interpreta um dos temas dos primórdios da carreira de Beck - «Puttin’ It Down» - à guitarra acústica, pois claro. A partir daqui não há sinal de paragem até ao final do festim. «Where It’s At», «Hotwax» e «Beercan» enchem-nos a alma de pó. Já em encore, e de fatos branco-florescentes, Beck e a banda – profissional mas inferior à que passou pelo mesmo palco há três anos - atacam um derradeiro «Devil’s Haircut». Os festivaleiros estão rendidos, com o diabo no corpo e na mente. Mesmo não ultrapassando a surpresa e diversidade de há três anos, este foi, seguramente, um dos melhores concertos do festival. E porquê? Porque Beck não consegue ser mau naquilo que faz. Tem a lição de performance, qualidade e eclectismo musical bem estudada. Quem é que disse mesmo que ele era um perdedor? TC