A
música, diz-se, é um pretexto. Uma porta de entrada
num mundo de muitas tribos onde o que interessa é
a boa disposição e o contacto com pessoas de outras
índoles. Às vezes estranhas, às vezes anónimas, às
vezes amigas para uma vida. Não interessa quem veste
o quê, se usa ou não o casaco da moda ou o cinto da
onda electroclash. O sono raramente anda em
dia, mas quando pensamos que a madrugada avançada
já não nos dá tréguas, conseguimos arranjar sempre
forças para mais uns saltos naquela tenda que provavelmente
está quase a fechar. Adormece-se depois ao som de
batuques e da música que exala de todos os lados para
acordar com os mesmos sons com que se adormeceu. Mas
um festival é mesmo assim, um mundo aparte, um espaço
onde não há lugar para confrontações materialistas.
Uma festa, pois bem. Talvez por isso, a Herdade da
Casa Branca, durante aqueles quatro dias (que foram
preenchidos por mais de cem mil pessoas), fosse o
lugar em Portugal com mais substâncias ilegais por
metro quadrado.
O que aborrecia era a semelhança com um comício político,
dada a quantidade de merchandising que se oferecia
pelo recinto e os muitos produtos publicitários que
enchiam o chão quando a multidão era obrigada a debandar
por exigência da organização. Ou então, as recorrentes
“tens mortalhas?”, “desculpa...” e “com licença, posso
passar...?”. Ah!, e já agora, os preços quase proibitivos
que se praticavam no recinto.
A música é um pretexto, dizíamos, mas continua a ser
parte fundamental do festival. Assim, apresentamos
um pequeno guia-reportagem do que foram aqueles quatro
dias no plano dos concertos. Para quem esteve lá e
queira recordar bons e maus momentos, ou para quem
queira descobrir o que perdeu.
07/08
Múm Planícies de gelo em tapete de mar
Palco
Quando pequenos átomos
de música se desprendem do imaginário
gelado da Islândia e tornam incandescentes as
hordas festivaleiras. Quando a floresta estéril
irrompe da poeira e assiste os pequenos partos inorgânicos.
Quando o mundo acontece cá fora, para lá
do palco, mas os olhos humanos insistem em testemunhar
aquilo. E aquilo é um caleidoscópio
de sons e instantes pintado de azul-mar e verde-água.
Os Múm são ingénuos delatores
do arranjo conceptual de um festival de Verão.
As suas inscrições plasmáticas
de dores infligidas nos instrumentos, os pequenos
rascunhos de cores frouxas foram o substrato de um
conto infantil nórdico contado ao anoitecer.
A experimentação pop encontra em Tynes
e Smárason e nas gémeas Valtýsdóttir
um habitat de sonhos e pinceladas. Fragmentos de melodia
e clareiras ocupadas por silêncio. Se a música
também decorre de paisagens, esta actuação
enviesou a raiz electrónica e construiu um
glaciar de emoções, uma fonte de palavras
e conceitos que jorra sangue e linfa, seiva e crude.
A beleza lapidar dos arranjos não esmoreceu
perante uma assistência a espaços composta
e disforme. As teclas, as cordas, a percussão
frágil e os metais, a voz límpida e
húmida, de cristais trabalhados. Tudo evocativo
das planícies imensas de gelo em confluência
com o aroma oceânico.
Quase no final, floresceu um lótus que rompeu
o gelo para se mostrar em ‘Green Grass of Tunnel’.
Finalmente os Múm não são ninguém.
HG
Arnaldo
Antunes Tribalista frouxo Palco
Eminente autor de canções
a destacar-se do combo artístico chamado Tribalistas,
Arnaldo Antunes significou a celebração
primeira da encruzilhada de comunidades e linguagens
de estilo. Na sua actuação, convocou-se
o reggae e o funk, a música tradicional do
Brasil e a África Negra, o continente europeu
e a lusofonia na voz. Mas a prestação
em palco foi amainada pela indecisão entre
o decalque romanesco puro e simples e os jogos de
sedimentação desgarrada. O encontro
pastoral entre a comédia e a tragédia,
os óleos de fachada e o rosário dos
temas extraídos a “Paradeiro” saquearam
a fluidez do espectáculo e empalideceram o
tesouro artístico de que se fazia acompanhar.
Talvez ao lado de Marisa Monte e Carlinhos Brown o
mosaico ficasse mais multicolor e apetecível.
A atenção decaiu ao longo do concerto
e o escriba que abaixo assina já se passeava
pelo recinto enquanto escutava, em fundo, as pouco
incisivas tomadas de assalto às canções.
A ponto de desejar abandonar os tribalismos e ir apanhar
morangos... do nordeste. HG
Terrakota
O
destino não é de uma cor só
Aos Terrakota cabia
a responsabilidade de dar por terminada a primeira
noite de concertos no palco Optimus, e o desafio foi
passado com distinção. É verdade
que num concerto que passou as duas horas nem sempre
foi possível manter o público aceso,
muito por culpa dos acentuados cortes de ritmo, mas
as sonoridades reggae, ska e funk contagiaram e esmagaram
um recinto com a maior enchente da noite.
Pegando numa linha criativa que apela ao tribalismo
Africano para a partir dele percorrer os mais diversificados
e recônditos locais do planeta, os Terrakota
utilizam também uma panóplia diversificada
de instrumentos que muito contribuíram para
o incentivo à dança e aos pulos. Um
concerto deste colectivo é sempre um espectáculo
festivo, uma viagem mais rítmica que melódica
onde o que interessa é a boa onda, os saltos
e os charros de boca em boca. Mas além do cansaço
provocado pelo rodopio do corpo, o que também
fatigava eram as recorrentes e repetitivas mensagens peace and love ao longo de todo o concerto.
Resumindo, um bom espectáculo de ritmos do
mundo menos desenvolvido (os mesmos que ouvia quem
passeasse dias antes pela Zambujeira do Mar) que pecou
pela extensão, o que levou a um esgotamento
precoce da paciência e das forças. TG
08/08
Toranja
Gomos
a menos
A
difícil tarefa de quem, como os Toranja, abre
as hostilidades do palco principal com os últimos
feixes de luz solar ainda a cair sobre a Herdade da
Casa Branca deve ser tida em conta como sinal de brio.
Como se sabe, com um público ainda a meio gás
e sem o aproveitamento das potencialidades dos jogos
de luz, um concerto não tem a mesma capacidade
de adesão da audiência. Mesmo assim,
as pessoas aderiram, ainda que em pequena escala.
Com um início algo atribulado (o som exterior
estava cortado e só se ouviam - bastante mal,
diga-se de passagem - as colunas de palco), os Toranja
conseguiram demonstrar, ainda que não numa
dose categórica, porque são considerados
uma das promessas da música cantada em Português
e devedora dos cantautores nacionais. É verdade
que continuam para muitos presos ao fantasma Jorge
Palma, mas, convenhamos, Tiago Bettencourt mostra
uma boa capacidade na feitura de canções
com letras que são certeiras no que dizem.
O concerto foi extremamente pequeno (não chegou
aos trinta minutos), com os maiores picos energéticos
a penderem sobre o single de avanço “Cenário”
e também sobre o tema que finalizou, “Bola
de Futebol”. Pelo meio, o momento mais intimista
ocorreu quando Bettencourt se sentou ao piano para,
quase sozinho, cantar “Carta”. TG
Blind
Zero "Com Palma e talento chegamos lá"
Surpreendente
para muitos daqueles que, ao início da noite, já ocupavam
o seu lugar fronte ao palco, o concerto dos portugueses
Blind Zero revelou-se indubitavelmente como o concerto
rock’n’roll desta edição do festival do Sudoeste
(se tomarmos em conta que os Primal Scream não são
apenas feitos de rock). Com uma noção certeira de
espectáculo e de efervescência musical, Miguel Guedes
e companhia mostraram, ali, que um concerto – na sua
perspectivada significação – pode ser uma perfeita
combinação entre teatro, entretenimento e energia
rock inesgotável. Durante a quase hora que o espectáculo
permaneceu em pé, a banda portuense soube conquistar
um público que teria certas dúvidas sobre o estado
actual dos Blind Zero, precisamente por os ter deixado
por alturas de Trigger, álbum que hoje já
pouco diz do que a banda é em álbum e ao vivo. A
Way To Bleed Your Lover parece ter colocado os
Blind Zero numa posição cobiçável no parco panorama
rock de origem nacional e isso reflecte-se, claramente,
em cima do palco. Miguel Guedes é hoje um dos melhores performers (nacionalmente falando) a par de
Adolfo Luxúria Canibal e Manuela Azevedo. E quem esteve
presente perceberá facilmente do que falo. Por sua
vez, Miguel Ferreira – também dos Clã – veio trazer
ao universo dos Blind Zero, por meio dos seus teclados,
ambientes alucinantes que permitiram imprimir novas
sensações aos temas já por si ásperos dos Blind Zero.
Resumindo, a adolescência passou-se-lhes para trás
das costas.
Sangue, punk e cólera, em motim rock, percorreram
uma actuação fugaz mas histórica na vida do Sudoeste.
O momento mais alto terá sido, porventura, a subida
ao palco de Jorge Palma – aplaudido carinhosamente
pelo público - para, com a banda, interpretar «The
Down Set Is Tonight», um raro momento calmo dentro
de uma actuação com escassas pausas, e o seu «Bairro
do Amor», ali transformado num rock amargo e cru,
território já parente à banda de Miguel Guedes. Engane-se,
no entanto, quem ousou pensar que o espectáculo ficou-se
por estes dois momentos mágicos. Temas como «Trashing
The Beauty», «Wish Tonight», «About Now» ou os mais
expostos «Big Brother», «You Owe Us Blood» e «Another
One» trouxeram àquele espaço de tempo quilos imensos
de energia e rendição e colocaram, de forma invejável,
corpos em chamas. O que, aliás, jamais poderá ser
coisa má. TC
Suede A obsessiva obsessão pelo passado
Longe vão os tempos
em que os Suede eram peça fundamental na galáxia pop
europeia e em que espalhavam glamour por onde passavam.
Em 2003, a banda de Brett Anderson é meramente uma
extensão pouco ousada do seu (digno) passado. Deste
modo, a segunda passagem dos Suede pelo palco do Festival
Sudoeste [na primeira edição foram cabeça-de-cartaz
de uma das noites] feita de muito glam rock, suor
e passado veio apenas provar esta infeliz situação.
Não foi de modo inocente que a banda optou por apresentar
um alinhamento pouco arriscado, centrado essencialmente
nos singles que elevaram o seu estatuto em meados
da década de 90 e, em menor número, nos singles dos
últimos dois álbuns que passaram, aliás, ao lado da
crítica e do público. Os Suede propuseram-se, assim,
a agarrar um público que maioritariamente não era
o seu e venceram, mesmo que sem grandes alaridos.
Como solução para uma possível inércia relativamente
à actual fase, a banda encontrou a transposição para
palco de um best of da sua carreira. Ironicamente, A New Morning, o último álbum, passou de
rajada naquele palco.
Anderson - energético e comunicativo q.b. - e companhia
não quiseram incomodar muito e, de facto, cumpriram.
A energia pairou pelo ar em explosivos hinos rock
como os mais velhinhos «Animal Nitrate», «Filmstar»,
«Trash» e «Beautiful Ones» - estes dois últimos cantados
em delírio colectivo - ou no novo «I Love The Way
You Love Me». Os mais recentes «Can’t Get Enough»,
«Obsessions» e «Electricity» (este raramente tocado
em Portugal) também comunicaram bem com os milhares
de corpos que os ouviram e lhes reagiram. As coisas
acalmaram – fisicamente - em baladas saturadas como
«Positivity», «She’s In Fashion», «Everything Will
Flow» ou a derradeira «Saturday Night». No final,
ficou a sensação de que este seria um excelente concerto
algures em 1996. O que é um facto é que estamos em
2003 e muito pouco mudou no interior criativo dos
Suede. TC
Jamiroquai
Teste:
Até onde vai a tua paciência?
Algumas
horas antes da sua entrada em palco, Jay Kay já circulava,
de boca em boca, um pouco por todo o lado. Ele era
Jamiro na praia, no campismo, nos chuveiros, nos restaurantes...
Na noite mais concorrida de todo o festival, uma multidão
assombrosa e dissemelhante esperava, com grandes expectativas,
o novo rei do funk. Mesmo quem estava de pé atrás,
debruçava-se para ver o que se iria suceder em palco
quando Jay Kay e os Jamiroquai o pisassem. Prometia-se
festim.
O concerto começou do melhor modo imaginável. "Canned
Heat" e "Cosmic Girl" serviram de mote às primeiras
danças e ondas de pó. As temperaturas tinham indubitavelmente
subido. Aparentemente a noite estava ganha. Pelo menos
para muitos esteve. Para outros como eu, a partir
deste momento o espectáculo foi-se perdendo em excessivas
e repetitivas extensões de alguns temas do senhor
de "Virtual Insanity", o qual, para decepção de muitos,
não foi tocado. Seria tudo diferente se as longas
interpretações fossem dotadas de insanos improvisos
ou desvarios mas o que tivemos oportunidade de assistir
foi a uma mera repetição inconsequente da linha-base
de cada tema tocado. A paciência começava a ser testada.
A banda esteve competente e Jay Kay - vestido de branco
- não esteve mal nas suas danças e intervenções (brilhante
a tirada da auto-aclamação de bom rapaz que leva todas
as noites leite com chocolate à mãe e que nunca fumou
um charro), mas faltou alguma loucura. Os "high times"
que se esperavam ficaram-se pelo caminho e, apesar
do profissionalismo demonstrado, Jay Kay sabia que
podia fazer melhor. Ainda esboçou pedaços de loucura
no final mas a festa ficou-se por aí, por um "Deeper
Underground" muito rock groovesco e selvagem que soube
a pouco. Pelo meio "Love Foolosophy", "Alright" e
mais meia dúzia de alguns dos temas mais obscuros
da sua carreira encheram as medidas a uma maioria
rendida aos encantos do baixinho-gigante do funk.
Outros como eu esperavam algo mais. A palavra semi-desilusão
nunca se aplicou tão bem. TC
Primal
Scream Vivos
e em forma...
Aos Primal Scream coube
a árdua tarefa de actuar após a maior enchente do
festival. E perante uma debandada considerável do
público optaram por um inicio menos arrojado, numa
toada coesa, em que a electrónica foi esquecida por
momentos, como que tentando fixar um público.
Talvez tenha sido "Shoot Speed/Kill Light", que manteve
muita da audiência para o resto do concerto, mas foi
a partir daí que tudo aqueceu… Em "Autobahn 66", do
último Evil Heat, os atributos dos
Primal Scream encantaram. Os excessos, a dança, o
rock e as distorções marcaram o início de uma série
arrasadora de músicas - "Rocks", "Medication" e "City",
entre outras - nas quais já foi visível a procura
do disforme e de vários caminhos por cada elemento
do grupo, quase que tocando independentemente, para
depois surgir a coesão.
Um concerto em que a excentricidade, a potência e
a criatividade marcaram presença, acabando por ser
um dos momentos mais altos do festival. Contrariam
o início do concerto ("I Wanna Die"). Estão vivos! MM
2
Many Dj's Com
um pé na dança, outro no rock e outro
no whatever
Estavam os Primal Scream a animar «os
resistentes» no palco principal com «Miss
Lucifer» quando me dirigi ao Planeta Sudoeste.
Dentro e para além deste, milhares de festivaleiros
esperavam celebração mesmo depois de
um suado exercício de ginástica que
a comparência num concerto dos Jamiroquai exige.
Parece ser esta a tendência do futuro do Sudoeste:
cada vez mais e melhores alternativas ao palco principal.
A actuação dos 2 Many DJ’s neste
espaço alternativo é prova cabal desta
nova realidade.
A julgar pela longa duração do set,
pelas danças em modo «non stop»
e pela cada vez maior afluência ao espaço,
a prestação dos 2 Many DJ’s terá
constituído, para os que a presenciaram, um
dos momentos mais entusiásticos de todo o festival,
muito provavelmente porque a fórmula encontrada
pela dupla - os irmãos David and Stephen Dewaele
- para atrair públicos de campos tão
diferentes como o r’n’b, o hip hop, o
electro, o techno, o rock, o house ou funk esteja
próxima da composição da demência
colectiva. Ou porque nos encontramos, hoje, mais próximos
de um eclectismo há poucos anos inconcebível.
Ter direito a pedaços de delírio, dança
e alienação numa arena repleta de corpos
ultramóveis só pode ser um senhor privilégio
ou uma dádiva. Não é todos os
dias (noites ou madrugadas) que temos acesso a endiabradas
misturas de um qualquer tema de Nirvana, Chemical
Brothers, Beastie Boys, Beyoncé, Garbage, Royksöpp,
The White Stripes ou Blur, jamais embrulhadas entre
si e entre muitas outras deambulações
tecno, house ou electro. E o nosso corpo, mesmo exausto,
só pode mesmo agradecer...
Os sorrisos na cara, no durante e no pós-set,
são esclarecedores de que a vida com as «músicas
emprestadas» dos 2 Many DJ’s seria bem
menos cinzenta. TC
09/08
David
Fonseca David
FonSECA?
O português que
cantou no maior número de festivais deste 2003
chegou à Zambujeira do Mar com um concerto
maçador que começa a precisar de nova
cara. Num concerto que teve o momento mais alto a
pender, naturalmente, sobre “Someone That Cannot
Love” mas onde também se destacou o novo
single “The 80’s”, foi um vê-se-te-avias
de temas chatos, que aborreceram uma audiência
que estava ali para ouvir... “Someone That Cannot
Love”… e pouco mais. Além disso,
David Fonseca apresentou duas versões para
temas dos Pixies e The Cars num palco que ele bem
conhece. Foi ali que os Silence 4 atingiram um dos
seus maiores momentos rumo aos mais de 200 000 discos
vendidos.
Apesar de tudo isto, a actuação do ponto
de vista técnico foi consistente, mostrando
um bom rol de músicos de suporte onde se destaca
Rita Pereira (ex-Atomic Bees) ao piano. A escolha
e ordenação do alinhamento permitiu
um encadeamento bem trabalhado e consequentemente
uma estrutura de concerto (do ponto de vista dos picos
energéticos) mais ou menos conseguida, mesmo
que pouco ambiciosa. TG
Beth
Orton "Desculpem
lá, mas o álcool está-me a descer
à alma"
A noite estava estranha.
Arrefecera e tudo à minha volta era nevoeiro e faces
desfocadas. Porém, a de Beth Orton estava bem acessível
aos meus sentidos. Figura franzina, meio maria-rapaz
de voz única e guitarra em punho, Beth movimenta-se
no palco de forma impressionante. Por trás, a acompanhá-la,
alguns amigos tocam cordas (um contrabaixo, um violino,
um violoncelo e uma guitarra) e uma bateria, procurando
engrandecer os simples e singelos temas da cantautora
folk britânica.
Coube, assim, a Beth Orton a difícil tarefa de enfrentar
um público que mal a conhecia, a meio do cartaz de
uma noite que pedia movimento e cor. Podia ter descambado
o acto quando, depois de executar um tema, lançou
um efusivo «gracias» à assistência. Pediu desculpa
e explicou que estava um bocado confusa. A cerveja
consumida durante a prestação terá contribuído certamente
para este pequeno equívoco. O momento infeliz foi,
de imediato, esquecido. Afinal as coisas não lhe estavam
a correr nada mal. Cada vez mais público ia abanando
a anca e entoando os refrões dos temas mais emblemáticos
da carreira da cantora como o descontraído «She Cries
Your name», o derradeiro e mágico «Central Reservation»
ou o magnífico «Stolen Car». No entanto, terá sido
«Mount Washington» - do último álbum, Daybreaker - o momento mais poderoso e intenso da actuação, quando
Beth e companhia, em delírio, arriscaram terminar
o tema em distorção rock. Momentos menos interessantes
também os houve. A música de Beth Orton não é para
todos e nem sempre funciona da melhor forma. «Galaxy
Of Emptiness » soou algo enfadonha, é certo, mas,
apercebendo-se de que esta não era a direcção acertada
para aquele momento e espaço, Beth atacou os temas
mais descontraídos de Central Reservation.
Pena que pérolas como «Stars All Seem To Weep» e «This
One’s Gonna Bruise» não tenham tido espaço ali. Algo
seria diferente. Possivelmente uma Aula Magna lhes
desse espaço e tempo para respirarem.
Assim sendo, e apesar daquele palco ser demasiado
grande para Beth, a progressão da actuação fez constatar
que, paulatinamente, o público se foi deixando levar,
descontraidamente, pelos sons balsâmicos vindos do
palco. No final também Orton estaria mais solta. Foi,
no entanto, apenas um concerto simpático. TC
Morcheeba
Competentes
mas não descarados
Os
Morcheeba foram os segundos Jamiroquai, na medida
que tinham o público já conquistado, conhecedor do
repertório e ansioso por entoar os sucessos da banda.
Sem surpreenderem (em Paredes de Coura estiveram a
melhor nível), mostraram-se uma banda profissional,
bem rodada, seguríssima, com Skye Edwards mostrando
toda a sua sensualidade e simpatia. Cada vez mais
próximo do universo pop, a actuação primou mais pela
empatia com o público do que propriamente pela qualidade
musical. Houve tempo para uma versão de Neil Young,
e também houve o inevitável “Rome Wasn’t Build In
a Day”, já em encore. Um triunfo, mesmo num concerto
programado ao milímetro e sem qualquer risco. MM
Skin
Besta de palco em performance enraivecida
Faltava
ainda libertar o touro em forma de mulher para encerrar
mais uma noite de actuações no palco
principal. Skin ocupou a arena do Sudoeste para uma
apresentação carregada de testosterona
em doses mais substanciais do que de estrogénio.
Exercício redundante será afirmar que
a antiga voz dos Skunk Anansie encheu todos os cantos
que havia para ocupar naquele palco, chegando a assediar
um assistente que por lá se encontrava. Em
pleno direito, revisitou momentos importantes daquela
formação como ‘Hedonism’,
‘Brazen’ e ‘You’ll Follow
Me Down’, dedicando o resto da performance ao
alinhamento da sua estreia em nome próprio
“Fleshwounds”. Como se não bastassem
a melomania da sua prestação a solo
e a fúria que se desprende do corpo e da voz.
Que não deixam indiferentes apoiantes nem delatores.
Foi uma actuação muito forte, ainda
que soe, no conjunto e à distância de
uma semana, um pouco a mais do mesmo. HG
Chicks
on Speed Electroclash
do dia seguinte
O
trio feminino alimenta-se da negação
do rock pela antítese estilística e
desconstrucionista, mas aproxima-se do género
sem guitarras mas com atitude. O tema ‘We Don’t
Play Guitars’ serve de base de sustentação
a um manifesto multimédia contra o conservadorismo
da pop de cifrões. A imagem é quase
tudo. Contra a tela colocada por detrás delas
eram disparadas imagens caseiras ou videogravadas
com alegorias visuais que centrifugavam tudo, desde
o mundo da moda à nota de dólar americano.
Registavam também aparições em
nome próprio e de Peaches, espécie de
matriarca do electroclash transcontinental. De resto,
era atentar nos adereços que serviam de vestuário,
nos instrumentos de cartão, na combinação
de veludo e plástico, na imagética vaginal.
E deglutir a marcha sónica e os ensurdecedores
espectros de voz. Fulgurante a prestação
das Chicks on Speed no pequeno palco Planeta Sudoeste. HG
10/08
Badly
Drawn Boy “Eu
gosto de dar concertos para amigos”
Identificação
ao peito. Bebe-se um pouco, pega-se na guitarra. Começa-se
a tocar, pára-se: “What fucking sound”.
Com o volume mais alto, começa-se a tocar de
novo. Pára-se, coça-se o nariz. Damon
Gough protagonizou no início de noite/final
de tarde de domingo o concerto mais original de todo
o Sudoeste. Quase sempre sozinho (à excepção
de quando vinha alguém, de surpresa, ao piano
ou quando quem o acompanha em digressão veio
dançar para o palco) Badly Drawn Boy desfilou
pelo palco temas dos três álbuns até
agora editados, ao mesmo tempo que revisitou lados-B
e adiantou alguns avanços para o novo disco.
As versões eram, naturalmente, despojadas do
seu lado mais rítmico, e algumas delas chegavam
a ser mesmo de difícil reconhecimento por parte
de quem conhecia os originais. Não obstante
isso, foram sempre certeiras , mesmo que arriscadas,
e mostraram que mesmo em versão solitária
Badly Drawn Boy é capaz de fazer muita coisa.
O recinto começou quase vazio, mas à
medida que as músicas foram avançando
a plateia foi-se compondo e os sorrisos de admiração
foram mais que muitos. Primando sempre por um estilo
invulgar, quase apalhaçado, Badly Drawn Boy
soube sempre como cativar o público mesmo quando
parecia não o querer fazer. TG
Moloko
O passado era mais risonho...
Os Moloko assinaram uma actuação inconstante,
em que os momentos altos se sucediam a momentos mais
monótonos. “Sing it Back” foi um grande momento, numa
autêntica jam session de longa duração, carregada
de criatividade e percorrendo caminhos do jazz, soul,
funk e música de dança, tudo numa música só. Mas houve
momentos em que tivemos saudades de algum do dramatismo
que Roisin Murphy tão bem sabe empregar à sua voz.
Faltaram as orquestrações mais elaboradas, mas no
cômputo geral souberam adaptar a sua música a um festival
e apelar a uns passos de dança. É isso que se quer
num festival…Certo? MM
Stereophonics
Embaixadores de Sua Baixeza, o pop-rock galês
Fracos simulacros dos Manic
Street Preachers, a superar os índices de irritabilidade
dos Oasis e, ainda assim, francos-atiradores nas tabelas
de vendas e no airplay das rádios, os Stereophonics
bafejaram os presentes com uma excelsa declamação
de rock desnutrido. Se os grandes êxitos radiofónicos
foram bem recebidos, a incursão por ‘Ace
of Spades’ dos Mötorhead colocou-os alguns
furos abaixo daquilo que poderia ter sido uma actuação
inofensiva para passar a sofrível. Também
poderá ser ingrata a tarefa de suceder a Badly
Drawn Boy e aos Moloko e antecipar as actuações
de Beth Gibbons & Rustin Man e Beck. Contudo,
a prestação, tal qual a conhecemos,
não deixaria de ser desinteressante num outro
contexto, festivaleiro ou não. A insidiosa
tentativa de penetração no indie rock
de feira torna ainda mais caricatural o embuste. Mais
tarde, a noite prosseguiu lauta em revelações
e confirmações e os Stereophonics foram
esquecidos. Talvez tenham aprendido qualquer coisa
com os nomes que se lhes seguiram. Se tiver sido esse
o caso, bem hajam e voltem sempre. HG
Beth
Gibbons & Rustin Man Cápsula
intemporal em gestação
Entender
Beth Gibbons é ousar tocar a berma da vida,
decalcar a biografia de um qualquer ser e reproduzi-la
em parcos minutos. É tentar compreender que
a existência não passa do refrão
de uma música que bate fundo na alma. Olhar
o luar sobre o Sudoeste e contar as estrelas que vieram
assistir à prestação da mais
brilhante. “Out of Season”, o primeiro
capítulo de um compêndio a solo que se
pretende infinito, é um disco intemporal, abstémio
em matéria de elaboradas técnicas de
estúdio e uma das mais bonitas composições
fora de época, algo vintage, porque se eternizou
na máquina do tempo. Cheiram já a Outono
as recordações mais persistentes daquela
subida ao palco no Verão de 2003. Um set que
desembainhou os temas do disco com uma pequena inflexão
passada, a trazer de volta as memórias da actuação
cinco anos antes à frente dos Portishead. Ali
mesmo, entre a estrada e o mar. ‘Mysteries’
soou primeiro e mais denso. Depois, foi assistir a
um trabalho de performance que tanto tem de desajeitado
como de encantador. E sentir o calor que desencarcerou
do seu corpo ao descer para cumprimentar a sua assistência,
extasiada e aturdida. É destas notas e destas
palavras que se arquitectam os mais consistentes casulos,
os mais desafogados sopros do coração.
Fica a saudade na partida. HG
Beck Quando o pó rima com festim rock-qualquer-coisa
Derradeiro momento de um festival
onde predominou o profissionalismo mas raramente a
novidade, o concerto de Beck constituía, antes de
acontecer, para muitos - menos do que nas outras noites
mas maioritariamente fiéis – uma espécie de esperança
na surpresa.
A noite já ia longa quando Beck e seus companheiros
de estrada, vestidos de negro, invadiam o palco. «Novacane»,
« New Pollution» e «Mixed Bizness» davam início ao momento, de forma explosiva. O clima era de
festa. Sea Change parecia ter sido arrumado
pelo Artista a um canto para ocasiões mais intimistas,
mas eis que este se revela. Depois de um «Paper Tiger»
mais eléctrico do que em álbum, temas como «The Golden
Age», «Lonesome Tears» e «Lost Cause» vieram acalmar
as hostes. Naquele contexto, ficaram-se a milhas da
intensidade atingida em disco. O desfalecimento de
um público sedento por dança, mesmo que cansado, provava-o.
Contavam-se pelos dedos os que queriam folk introspectivo a horas tão tardias. «Loser», em versão
encurtada e tocado em slide , voltou a levantar
pó na Zambujeira. A electricidade e o fervor haviam
regressado àqueles espaço e momento tornados
ilimitados. Beck ameaçara causar estragos, ao afirmar
que o Verão habitualmente o incentivava à realização
de estúpidas experiências. Um brilhante meddley de temas de gente como Beyoncé, Justin Timberlake,
Nelly, TATU ou Queen fez corar cada um dos presentes.
A festa tinha regressado à Zambujeira e com ela o
pó.
Eis que Badly Drawn Boy é chamado a palco. Com o Artista interpreta um dos temas dos primórdios da carreira
de Beck - «Puttin’ It Down» - à guitarra acústica,
pois claro. A partir daqui não há sinal de paragem
até ao final do festim. «Where It’s At», «Hotwax»
e «Beercan» enchem-nos a alma de pó. Já em encore,
e de fatos branco-florescentes, Beck e a banda – profissional
mas inferior à que passou pelo mesmo palco há três
anos - atacam um derradeiro «Devil’s Haircut». Os
festivaleiros estão rendidos, com o diabo no corpo
e na mente. Mesmo não ultrapassando a surpresa e diversidade
de há três anos, este foi, seguramente, um dos melhores
concertos do festival. E porquê? Porque Beck não consegue
ser mau naquilo que faz. Tem a lição de performance,
qualidade e eclectismo musical bem estudada. Quem
é que disse mesmo que ele era um perdedor? TC