Reverence Valada 2016
Valada
8-10 Set 2016
Dia Três

Cansados, maldizentes, e francamente fartos de tanto som em todo o lado, seguimos para o último dia do Reverence de transportes públicos por uma única razão: poder beber mais. O que fizemos, e ainda bem; durante a tarde, poucas coisas nos roubaram tempo precioso nas barracas da cerveja. La Chanson Noire foi uma delas, porque merece: teclado e voz e bateria numa onda cabaret despudoradamente negra e lasciva, onde uma canção intitulada "Fuck Me" é dedicada às [suas] cordas vocais e um tema de amor azeiteiro intitulado "Cornucópia" coloca duas ou três Lolitas Góticas a abanar as suas saias. Foi o nosso mote para este terceiro dia; depois disso, passámos umas horas a não fazer nenhum na zona VIP, escutando a "Madrugada Eterna" dos KLF pela mão de alguém com bom gosto e chateando o juízo da DJ Nance Falecida, com o auxílio do representante da Ruído Sonoro. DJ essa que passou Silverio, ganhando logo ali o festival.

A Nicotine's Orchestra veio depois devolver um pouco de música ao cartaz, tocando a bonita "Open Water" logo ao início e dando aos presentes um concerto agradável de rock agradável, escape absoluto de tanto e tanto caos. No final, abandonam o palco um por um, até só restar a bateria; e está logo aí dado o ponto de partida para algumas correrias. Primeiro, para ver de perto os Cult Of Dom Keller, psicadelismo sujo em noite gótica, que começa quando ainda não há muitos a ver - e que pareciam incríveis; depois, para apanhar os Névoa, que vieram aqui parar à última da hora e que, segundo relatos, acabaram a sangrar no nariz; e, finalmente, para ouvir os Quartet Of Woah!, que entram em palco com um verdadeiro grito de guerra e logo se prestam a debitar um hard rock entusiasmante e propício ao headbang.

A hora de jantar fez-se rápida, que dali a pouco atuariam os Mécanosphère, que tiraram Adolfo Luxúria Canibal da zona de imprensa e das grades de quase todos os concertos e o atiraram para o palco, em mais uma mostra de Scorpio, o último álbum do colectivo. A inspiração abre as asas: Adolfo procura enforcar-se com a corda onde atava uma lâmpada, à medida que os graves sobem de intensidade; dança como um louco por entre as ruínas e o ruído; entoa o coro de uma cidade industrial (o ferro era o seu sangue, a chama o seu cérebro) e dá a todos nós uma lição sobre como dar um espectáculo a sério. Electrónica, noise, free jazz, momentos rock e poesia; eis os Mécanosphère na Valada do Ribatejo, um dos nomes mais estranhos do cartaz, e ainda assim dos que teve maior aderência de público. As apostas futuras também podem passar por aqui.

Também aguardada era a estreia dos The Damned por Portugal, eles que demoraram quarenta anos até aqui chegar (algo que salientam mal entram em palco) e que durante cerca de uma hora apostaram em matar esse "bichinho", por vezes bem, mas na maior parte das vezes notando-se que quarenta anos é muito tempo - e que há gente que pura e simplesmente não é Iggy Pop. Valeu "New Rose", essa grande canção, a dar o pico de energia de que o concerto precisava; o teclista dança, os velhotes dançam, a miudagem dança, e há um sentimento dentro de nós, meio estranho, como uma tempestade no mar. O punk não morreu, só se reformou demasiado cedo.

"Reforma" há-de ser uma palavra proibida no léxico dos The Sisters Of Mercy, que eram a grande proposta musical deste último dia, e que contou também com o público mais entusiasta... Que fizeram eles? Cobriram-se de neblina e de lá não mais saíram, juntando metal à sua drum machine, transformando o negro em dança e cantando, até ao limite da perceptibilidade, temas clássicos como "No Time To Cry" ou "Marian". "Dominion" junta a nossa voz à deles; "Flood II" é um susto, especialmente porque é praticamente a única vez em que Andrew Eldritch mostra ainda ter sangue na guelra; uma longa intermissão anunciada a martelo e o regresso com "Lucretia, My Reflection", "Vision Thing", "First And Last And Always", "Temple Of Love" e "This Corrosion" (com braços bem erguidos, naturalmente) fecham um concerto estranho mas sempre frenético, que serviu para muitos matarem as saudades e outros tantos riscarem o nome dos The Sisters Of Mercy da sua lista been there, done that. Tal como se riscou o Reverence 2016 após os britânicos abandonarem o palco. Para o ano há mais.
· 20 Set 2016 · 22:43 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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