Reverence Valada 2016
Valada
8-10 Set 2016
Dia Dois

Passam poucos minutos das 15h quando os Twin Transistors se apoderam do palco Indiegente para mostrar os temas de Sun Of Wolves, óptimo álbum editado este ano, psicadelismo expansivo com influências kraut em que é o galopar da bateria aquilo que mais nos bate, de tão dançável. Sem grandes rodeios, deram um concerto competente - tal como os Black Wizards, um hard rock a lembrar os Blues Pills (e não só porque a vocalista era uma mulher), onde aos riffs se juntava uma garganta a contorcer-se em louvor ao Grande Demónio Eléctrico.

Mas ainda era demasiado cedo para prestar grande atenção, e a falta de álcool não ajudava. Tiveram de ser os Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs a prender-nos o corpo ao palco Sontronics com um belo concerto, rock sludgy de deitar milhares de pessoas ao chão. Com Matt Baty, vocalista, a vestir a pele do melhor Henry Rollins, tronco nu e calção e correria pelo palco inteiro, os Pigs x7 apresentaram-se como verdadeiros diabos (I am the Demon, gritava-se de forma arrepiante) naquele que foi um dos espetáculos mais intensos de todo o festival. Estava ali um bom motivo para continuar a acreditar em Reverence Valada, terra onde todos os sonhos se realizam - e os LSD And The Search For God eram um sonho antigo, desde que os escutámos em 2007, através do seu EP homónimo. Ao Ribatejo trouxeram Heaven Is A Place, novo compêndio de canções shoegazey fofinhas que nos limparam os ouvidos para o resto do dia, munidos de uma vocalista vestida de gatos (que mal se ouvia, e parecia só ali estar porque sim). Num concerto tragado devagarinho, os californianos deixaram boas indicações - mesmo que a voz, por vezes, tenha tentado em demasia soar a Thurston Moore.

Uma hora depois, uma nave espacial aterra na Valada do Ribatejo: é a maquinaria complexa de Simeon Oliver Coxe III, aliás Silver Apples, naquela que foi a estreia do projecto de culto em Portugal, poucos dias após ter lançado um novo álbum, o sexto em quase cinquenta anos. Aos 78, Simeon é um assombro; a forma como trabalha aquela sua "geringonça" é notável, trazendo até nós os sons do futuro como imaginados há tantas décadas, e misturando-lhe uma fascinante mestria que a dada altura mais parecia turntablism - provando que estamos todos interligados neste mundo mágico. Dezenas de corpos a dançar ao som da história. Sorrisos cúmplices trocados entre amigos e casais. E, no final, "Oscillations" a potenciar o momento mais rock n' roll do evento, quando as colunas do lado esquerdo se dignaram oscilar e cair quase redondas no chão. Velhos são os trapos. Oh, se são.

Também em estreia, os Yawning Man não conseguiram, infelizmente, apresentar todas as suas fortes credenciais enquanto uma das duas melhores bandas de sempre ligadas ao stoner (a outra são os Kyuss), mesmo que tenham dado um bom concerto. Mas não queríamos "bom"; queríamos que mudasse as nossas vidas. Fizeram-se acompanhar por uma série de visuais mostrando Barbies de plástico que desfilavam nudez, foram interrompidos pela passagem de um camião dos bombeiros mesmo no meio do público e ainda levaram um convidado a palco para adicionar um pouco de sons electrónicos às suas guitarras viajantes e uma vez por outra drogadíssimas. Faltou só um bocadinho assim para ser memorável.

Logo a seguir, os Fat White Family revelam-se um caso à parte neste gigante mundo de Valada; se é verdade que os seus discos mais não são do que "interessantes", ao vivo o sexteto londrino - que diz estar a cagar-se para o resto do mundo - é um assombro negro de rock n' roll, envoltos em atitude e fumo muitos, com Lias Saoudi a enfiar-se no meio do público para uma curta sessão de mosh logo no início. Imagine-se uma britpop feita de pesadelos, onde a parte "pop" é substituída por uma matilha de lobos esfomeados e enraivecidos, e estar-se-à bastante próximo da sonoridade dos Fat White Family, que ainda lhes junta alguns interlúdios bebop de forma a entusiasmar a carne para canhão que têm à sua frente. O grito de guerra é cru e cruel e deve ter-se feito ouvir em Santarém ela-própria; contra tudo, contra a vida, contra a música, ao mesmo tempo que as luzes potenciam o epiléptico que há em nós. E não fugiram a alguma política: um Praise Allah! enquanto "obrigado!", uma t-shirt onde se lia Trump is My Sex Slave e ainda "Satisfied", canção de briga de bar e casas de strip alienadas e lascivas. Após uma balada repleta de ennui, durante a qual se acenderam alguns isqueiros, os Fat White Family despedem-se com uma saraivada de ruído, quase como se quisessem iniciar logo ali a III Guerra Mundial. E nós, nas trincheiras, sempre alerta...

Se os FWF são o pesadelo, os Raveonettes são um sonho bom e lavadinho, onde melodias de puro ferro são intercaladas com momentos mais suaves, na construção de uma barcaça noise em lago azul e envolto pelo sol e pelo arvoredo. Ao Reverence trouxeram Pe'ahi, o seu último álbum, que tocaram quase a papel-químico nos primeiros quinze minutos, completos com a magnífica "Killer In The Streets" - que é, ainda hoje, um grandioso malhão. Algo que os Brian Jonestown Massacre também terão, com certeza. Nós é que não ouvimos nenhum. Para muitos, a banda de Anton Newcombe é uma razão para acreditar no poderio imenso do rock psicadélico; para outros, é só uma banda, com alguns toques positivos, que não aquecem nem arrefecem. Quem somos nós para arruinar a alegria dos primeiros? Ninguém. Daí que tenhamos embora ao fim de cinco minutos, fartos da chonice e do Bez que tocou pandeireta o tempo todo.

Felizmente, o dia, ou a noite, não terminariam sem os A Place To Bury Strangers. Havia medo. Em sala, tinham sido assombrosos há três anos; neste mesmo festival, foram sonolentos e bacocos... Mas, nesta noite, os nova-iorquinos decidiram superar-se - aumentando o volume não para 11, mas para 111, e erguendo bem alto as suas guitarras em nome de um bem maior... Para logo de seguida as destruírem sem apelo nem agravo, três ao todo, duas nas primeiras três canções, se é que lhes poderemos chamar "canções"; o que aqui se viu e ouviu foi uma muralha de som gigante e ensurdecedora, o rock reduzido ao seu denominador comum (o barulho) e um público enlouquecido como se de uma qualquer experiência de laboratório se tratasse. E os APTBS ainda acabaram a tocar no meio deste, sem temer a loucura. Durante uma hora ou pouco menos, o trio transpôs o mundo de Crash, de J.G. Ballard, para um concerto rock; só atingíamos verdadeiramente o orgasmo quão mais violentamente desabava o som nas nossas cabeças. Nem um anjo foderia assim.
· 20 Set 2016 · 22:43 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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