Dia Um
By the time we get to Valada, após uma curta viagem de apenas meia-hora (que se haveria de repetir ao longo do festival, visto que acampar é para pobres), somos brindados com uma brisa suave e fresca que aqui não estava dois dias antes, quando cá viemos fazer o reconhecimento do local. O Valada, ou o Reverence, ou ambos, como lhe queiram chamar, voltou uma vez mais a puxar para si a honra de fechar a temporada de festivais de verão com uma série de propostas habitando, quase todas, o mesmo campo sónico: psicadélico,
stoner e derivados. Contudo, nem o Reverence, ou o Valada, se conseguiu alhear do facto de que o ano de 2016 está bom é para góticos; depois de Peter Murphy e do Entremuralhas e antes dos The Cure eis os The Sisters of Mercy (eles que exigiram o "The" sob ameaça de processo judicial) a levar até àquela pequena aldeia a cor preta, o romantismo e uma miríade de rostos cadavéricos.
Mas, dizíamos nós, chegámos após uma curta viagem - e fomos de imediato brindados pelas várias alterações, cuidadosamente explicadas por Nick Allport, organizador do festival, que nos levou a dar uma voltita pelo recinto ainda as portas estavam fechadas. O campo de futebol tornado feira; o palco Indiegente, curado pela Antena 3/Nuno Calado; o bar onde outrora se jantavam sandes de pasta de atum a ficar lamentavelmente do lado de fora; o palco Praia, agora palco Sontronics, mais puxado à frente... Diferente, este Reverence. Não para melhor, mas também não para pior. Se há falha a apontar-lhe é o facto de não haver um único sítio em todo o recinto onde não haja música. Às vezes, até os mais duros querem um pouco de silêncio...
Mas antes dessa ânsia se manifestar, venham os concertos; o primeiro de todos coube aos
800 Gondomar, uns pontualíssimos 800 Gondomar, que vieram para mostrar
Circunvalação, o seu novo EP, acabadinho de editar. Começam por aquecer com o baixo, e depois arrancam numa toada punk-clássico e gostoso, cantado na língua-nossa, mas com espaço também para a "Vato" de Snoop Dogg (pelo menos parecia essa) e para a "Dia De Um Dread De 16 Anos" do grandioso Allen Halloween (era essa). O que significa, muito naturalmente, que os 800 Gondomar deram o melhor concerto de todo o festival. O que eles tinham em diversão, os
Sun Mammuth tinham em peso. Um bom
stoner instrumental que ajudou a começar a lavar o cérebro com certas e determinadas substâncias. Notou-se, na audiência, que por estas horas ainda era fraca.
Os
Flavor Crystals, vindos directamente de Minneapolis, despejaram imediatamente a seguir uma aspirina redonda de psicadelismo suave, dando as boas-vindas ao frio da noite, com uma marca
shoegaze bem vincada que tão bem sabe ao pôr-do-dia. O rufar essa assumidamente hipnótico, mas também sabiam puxar pelo ruído quando necessário. Uma óptima escolha, tal como a dos
Sunflowers, também eles com disco novo - e gigante -, que aos primeiros acordes levam lá para a frente um tipo armado com um chicote feito de cana. Os Sunflowers, Deus os abençoe, despertam nas nossas pessoas as nossas piores emoções, tal como o bom rock deve fazer. O que é pena é termos encontrado um som tão "limpinho"; faltou
aquela gravilha que existe quando os apanhamos em bares mais pequenos. Tocaram uma música nova, "feita anteontem", outra sobre "
trips de ácido em Lisboa" e ainda a versão habitual de "I Wanna Be Your Dog", com Carolina Brandão
a evocar Kim Gordon e a desfazer uma guitarra cor-de-rosa no pico da adrenalina. Sempre bons.
Os
Black Heat soavam-nos muito dotados tecnicamente, trazendo uma certa ideia de "progressismo" ao rock que pulula pela Valada do Ribatejo, e fazendo-nos pensar mais do que curtir. Mas, apesar do psicadelismo e do
stoner, há espaço para tudo no Reverence. Bem, excepto para uma máquina de tabaco. O que é francamente chato... Ao contrário dos
J.C. Satan, rock pesado no feminino e capaz de fazer abanar o esqueleto, e dos
Riding Pânico que não vimos pela sexta ou sétima vez por estarmos em amena cavaqueira com os Flavor Crystals na zona de imprensa, que disseram ter gostado de Lisboa e não ter percebido porque é que os portugueses não olham as pessoas nos olhos mesmo sendo tão simpáticos. Timidez, apenas.
Ora, "tímido" é também um adjectivo bastante aplicável à música dos
Thee Oh Sees e é, do mesmo modo, um adjectivo simpático. É que poderíamos simplesmente aplicar a palavra "chato", apesar de todas as vozes que se ergueriam em oposição, acérrimos defensores que são das tropas de John Dwyer e da catrefada de discos que o tipo já lançou em quinze anos. Mas visto que não devemos simpatia a ninguém, cá vai: os Thee Oh Sees são incrivelmente chatos, quer toquem com duas baterias, quer disponham um pano onde se pode ler "I <3 Portugal", quer apliquem àquele
garage rock particular uma dose de psicadelismo e duas de gritaria. Mas, convenhamos, ao menos são melhores que Xanax.
Dia Dois
Passam poucos minutos das 15h quando os
Twin Transistors se apoderam do palco Indiegente para mostrar os temas de
Sun Of Wolves, óptimo álbum editado este ano, psicadelismo expansivo com influências
kraut em que é o galopar da bateria aquilo que mais nos bate, de tão dançável. Sem grandes rodeios, deram um concerto competente - tal como os
Black Wizards, um
hard rock a lembrar os Blues Pills (e não só porque a vocalista era uma mulher), onde aos
riffs se juntava uma garganta a contorcer-se em louvor ao Grande Demónio Eléctrico.
Mas ainda era demasiado cedo para prestar grande atenção, e a falta de álcool não ajudava. Tiveram de ser os
Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs Pigs a prender-nos o corpo ao palco Sontronics com um belo concerto, rock
sludgy de deitar milhares de pessoas ao chão. Com Matt Baty, vocalista, a vestir a pele do melhor Henry Rollins, tronco nu e calção e correria pelo palco inteiro, os Pigs x7 apresentaram-se como verdadeiros diabos (
I am the Demon, gritava-se de forma arrepiante) naquele que foi um dos espetáculos mais intensos de todo o festival. Estava ali um bom motivo para continuar a acreditar em Reverence Valada, terra onde todos os sonhos se realizam - e os
LSD And The Search For God eram um sonho antigo, desde que os escutámos em 2007, através do seu EP homónimo. Ao Ribatejo trouxeram
Heaven Is A Place, novo compêndio de canções
shoegazey fofinhas que nos limparam os ouvidos para o resto do dia, munidos de uma vocalista vestida de gatos (que mal se ouvia, e parecia só ali estar porque sim). Num concerto tragado devagarinho, os californianos deixaram boas indicações - mesmo que a voz, por vezes, tenha tentado em demasia soar a Thurston Moore.
Uma hora depois, uma nave espacial aterra na Valada do Ribatejo: é a maquinaria complexa de Simeon Oliver Coxe III, aliás
Silver Apples, naquela que foi a estreia do projecto de culto em Portugal, poucos dias após ter lançado um novo álbum, o sexto em quase cinquenta anos. Aos 78, Simeon é um assombro; a forma como trabalha aquela sua "geringonça" é notável, trazendo até nós os sons do futuro como imaginados há tantas décadas, e misturando-lhe uma fascinante mestria que a dada altura mais parecia
turntablism - provando que estamos todos interligados neste mundo mágico. Dezenas de corpos a dançar ao som da história. Sorrisos cúmplices trocados entre amigos e casais. E, no final, "Oscillations" a potenciar o momento mais rock n' roll do evento, quando as colunas do lado esquerdo se dignaram oscilar e cair quase redondas no chão. Velhos são os trapos. Oh, se são.
Também em estreia, os
Yawning Man não conseguiram, infelizmente, apresentar todas as suas fortes credenciais enquanto uma das duas melhores bandas de sempre ligadas ao
stoner (a outra são os Kyuss), mesmo que tenham dado um bom concerto. Mas não queríamos "bom"; queríamos que mudasse as nossas vidas. Fizeram-se acompanhar por uma série de visuais mostrando Barbies de plástico que desfilavam nudez, foram interrompidos pela passagem de um camião dos bombeiros mesmo no meio do público e ainda levaram um convidado a palco para adicionar um pouco de sons electrónicos às suas guitarras viajantes e uma vez por outra drogadíssimas. Faltou só um bocadinho assim para ser memorável.
Logo a seguir, os
Fat White Family revelam-se um caso à parte neste gigante mundo de Valada; se é verdade que os seus discos mais não são do que "interessantes", ao vivo o sexteto londrino - que diz estar a cagar-se para o resto do mundo - é um assombro negro de rock n' roll, envoltos em atitude e fumo muitos, com Lias Saoudi a enfiar-se no meio do público para uma curta sessão de
mosh logo no início. Imagine-se uma
britpop feita de pesadelos, onde a parte "pop" é substituída por uma matilha de lobos esfomeados e enraivecidos, e estar-se-à bastante próximo da sonoridade dos Fat White Family, que ainda lhes junta alguns interlúdios
bebop de forma a entusiasmar a carne para canhão que têm à sua frente. O grito de guerra é cru e cruel e deve ter-se feito ouvir em Santarém ela-própria; contra tudo, contra a vida, contra a música, ao mesmo tempo que as luzes potenciam o epiléptico que há em nós. E não fugiram a alguma política: um
Praise Allah! enquanto "obrigado!", uma t-shirt onde se lia
Trump is My Sex Slave e ainda "Satisfied", canção de briga de bar e casas de
strip alienadas e lascivas. Após uma balada repleta de
ennui, durante a qual se acenderam alguns isqueiros, os Fat White Family despedem-se com uma saraivada de ruído, quase como se quisessem iniciar logo ali a III Guerra Mundial. E nós, nas trincheiras, sempre alerta...
Se os FWF são o pesadelo, os
Raveonettes são um sonho bom e lavadinho, onde melodias de puro ferro são intercaladas com momentos mais suaves, na construção de uma barcaça
noise em lago azul e envolto pelo sol e pelo arvoredo. Ao Reverence trouxeram
Pe'ahi, o seu último álbum, que tocaram quase a papel-químico nos primeiros quinze minutos, completos com a magnífica "Killer In The Streets" - que é, ainda hoje, um grandioso malhão. Algo que os
Brian Jonestown Massacre também terão, com certeza. Nós é que não ouvimos nenhum. Para muitos, a banda de Anton Newcombe é uma razão para acreditar no poderio imenso do rock psicadélico; para outros, é
só uma banda, com alguns toques positivos, que não aquecem nem arrefecem. Quem somos nós para arruinar a alegria dos primeiros? Ninguém. Daí que tenhamos embora ao fim de cinco minutos, fartos da chonice e do Bez que tocou pandeireta o tempo todo.
Felizmente, o dia, ou a noite, não terminariam sem os
A Place To Bury Strangers. Havia medo. Em sala, tinham sido assombrosos há três anos; neste mesmo festival, foram sonolentos e bacocos... Mas, nesta noite, os nova-iorquinos decidiram superar-se - aumentando o volume não para 11, mas para 111, e erguendo bem alto as suas guitarras em nome de um bem maior... Para logo de seguida as destruírem sem apelo nem agravo, três ao todo, duas nas primeiras três canções, se é que lhes poderemos chamar "canções"; o que aqui se viu e ouviu foi uma muralha de som gigante e ensurdecedora, o rock reduzido ao seu denominador comum (o barulho) e um público enlouquecido como se de uma qualquer experiência de laboratório se tratasse. E os APTBS ainda acabaram a tocar no meio deste, sem temer a loucura. Durante uma hora ou pouco menos, o trio transpôs o mundo de
Crash, de J.G. Ballard, para um concerto rock; só atingíamos verdadeiramente o orgasmo quão mais violentamente desabava o som nas nossas cabeças. Nem um anjo foderia assim.
Dia Três
Cansados, maldizentes, e francamente fartos de tanto som em todo o lado, seguimos para o último dia do Reverence de transportes públicos por uma única razão: poder beber mais. O que fizemos, e ainda bem; durante a tarde, poucas coisas nos roubaram tempo precioso nas barracas da cerveja.
La Chanson Noire foi uma delas, porque merece: teclado e voz e bateria numa onda
cabaret despudoradamente negra e lasciva, onde uma canção intitulada "Fuck Me" é dedicada
às [suas] cordas vocais e um tema de amor
azeiteiro intitulado "Cornucópia" coloca duas ou três Lolitas Góticas a abanar as suas saias. Foi o nosso mote para este terceiro dia; depois disso, passámos umas horas a não fazer nenhum na zona VIP, escutando a "Madrugada Eterna" dos KLF pela mão de alguém com bom gosto e chateando o juízo da DJ
Nance Falecida, com o auxílio do representante da Ruído Sonoro. DJ essa que passou Silverio, ganhando logo ali o festival.
A
Nicotine's Orchestra veio depois devolver um pouco de música ao cartaz, tocando a bonita "Open Water" logo ao início e dando aos presentes um concerto agradável de rock agradável, escape absoluto de tanto e tanto caos. No final, abandonam o palco um por um, até só restar a bateria; e está logo aí dado o ponto de partida para algumas correrias. Primeiro, para ver de perto os
Cult Of Dom Keller, psicadelismo sujo em noite gótica, que começa quando ainda não há muitos a ver - e que pareciam incríveis; depois, para apanhar os
Névoa, que vieram aqui parar à última da hora e que, segundo relatos, acabaram a sangrar no nariz; e, finalmente, para ouvir os Quartet Of Woah!, que entram em palco com um verdadeiro grito de guerra e logo se prestam a debitar um hard rock entusiasmante e propício ao headbang.
A hora de jantar fez-se rápida, que dali a pouco atuariam os Mécanosphère, que tiraram Adolfo Luxúria Canibal da zona de imprensa e das grades de quase todos os concertos e o atiraram para o palco, em mais uma mostra de Scorpio, o último álbum do colectivo. A inspiração abre as asas: Adolfo procura enforcar-se com a corda onde atava uma lâmpada, à medida que os graves sobem de intensidade; dança como um louco por entre as ruínas e o ruído; entoa o coro de uma cidade industrial (o ferro era o seu sangue, a chama o seu cérebro) e dá a todos nós uma lição sobre como dar um espectáculo a sério. Electrónica, noise, free jazz, momentos rock e poesia; eis os Mécanosphère na Valada do Ribatejo, um dos nomes mais estranhos do cartaz, e ainda assim dos que teve maior aderência de público. As apostas futuras também podem passar por aqui.
Também aguardada era a estreia dos The Damned por Portugal, eles que demoraram quarenta anos até aqui chegar (algo que salientam mal entram em palco) e que durante cerca de uma hora apostaram em matar esse "bichinho", por vezes bem, mas na maior parte das vezes notando-se que quarenta anos é muito tempo - e que há gente que pura e simplesmente não é Iggy Pop. Valeu "New Rose", essa grande canção, a dar o pico de energia de que o concerto precisava; o teclista dança, os velhotes dançam, a miudagem dança, e há um sentimento dentro de nós, meio estranho, como uma tempestade no mar. O punk não morreu, só se reformou demasiado cedo.
"Reforma" há-de ser uma palavra proibida no léxico dos The Sisters Of Mercy, que eram a grande proposta musical deste último dia, e que contou também com o público mais entusiasta... Que fizeram eles? Cobriram-se de neblina e de lá não mais saíram, juntando metal à sua drum machine, transformando o negro em dança e cantando, até ao limite da perceptibilidade, temas clássicos como "No Time To Cry" ou "Marian". "Dominion" junta a nossa voz à deles; "Flood II" é um susto, especialmente porque é praticamente a única vez em que Andrew Eldritch mostra ainda ter sangue na guelra; uma longa intermissão anunciada a martelo e o regresso com "Lucretia, My Reflection", "Vision Thing", "First And Last And Always", "Temple Of Love" e "This Corrosion" (com braços bem erguidos, naturalmente) fecham um concerto estranho mas sempre frenético, que serviu para muitos matarem as saudades e outros tantos riscarem o nome dos The Sisters Of Mercy da sua lista been there, done that. Tal como se riscou o Reverence 2016 após os britânicos abandonarem o palco. Para o ano há mais.