Reverence Festival
Valada, Cartaxo
12-13 Set 2014
Comecemos pelos pontos negativos, para os despachar de vez sem matutar mais no assunto: um recinto desta dimensão sem uma única barraquinha onde se possa comprar tabaco (oh, o quanto se sofreu), uma zona de restauração que via esgotar rapidamente o seu stock, e a presença aterradora de uma espécie aracnídea que deixou mazelas em inúmeros festivaleiros. No entanto, isto representa apenas 1% daquilo que foi a primeira edição do Reverence, com os restantes 99% divididos entre a boa música, o bom ambiente e o álcool barato, que nos fizeram as delícias e nos deixaram de água na boca para saber como correrá para o ano, se é que correrá. Esperamos que sim, e fazemos figas para que aconteça.

Não que tenhamos passado estes dois dias em Valada do Ribatejo a verificar se o limite mínimo de cinco mil pessoas - número que supostamente garantiria segunda edição em 2015 - foi alcançado, já que mais que observar a multidão dedicámos o nosso tempo a confraternizar com a mesma. Gente que já se conhecia de outras andanças, gente que se vê uma vez por ano, gente que o Facebook nos deu a conhecer. Unidos pelo amor à música, omnipresente entre os três palcos que faziam o festival, do meio-dia até altas horas da madrugada. Uma correria que nos cansa o corpo, um bom cansar que perdura quer se acampe ou se fique por um hotel nas redondezas ou se siga de comboio até Lisboa ou subúrbios para um par de horas de descanso numa cama confortável. Vale sempre a pena e amaldiçoamos os ossos que nos envelhecem, correndo contrários ao espírito.

Discuta-se então a música, os concertos que não quisemos perder por gosto, os que vimos que nos surpreenderam, até aqueles que nos desapontaram. Discuta-se as descobertas e as novas paixões. Discuta-se o bom gosto dos DJs convidados e os momentos ocorridos em cima de um palco que nos marcaram talvez para sempre. Discuta-se psicadelismo e rock n' roll e setlists e pregos e piadas e riffs e drogas e fumo. Se não fosse por isto o Reverence seria só um piquenique divertido; conjugando a música com o resto, torna-se o evento musical do ano.

Dia Um

Dia que começa cedo, bem cedo, demasiado cedo porque há que estar em Valada antes dos concertos começarem, há que começar a interiorizar que iremos cá passar um fim-de-semana carregado de emoções eléctricas e há que passear pelo espaço e sentir a natureza (dispensaríamos, repetimos, as aranhas). Infelizmente, já os Cave Story estavam em cima do palco Rio quando se chega finalmente às bilheteiras para levantar a credencial, pelo que lastimamos não poder falar um pouco mais deste quarteto das Caldas, ainda que recomendemos que piquem o Bandcamp dos moços. Não houve Cave Story mas houve Black Leather e Jabberwocky Band para nos irem aquecendo os ânimos, que finalmente se exaltam com o concerto da Orquestra Sinfónica das Olaias mais conhecida como Putas Bêbadas: vocais que parecem death metal misturados com drunfos - ou, o Monstro das Bolachas anestesiado no dentista -, rock estraçalhado e instável feito por quatro rapazes que tocam como se fossem morrer amanhã e tá-se bem, um despertador eficaz e uma excelente salva de boas-vindas aos festivaleiros. Cerca de meia-hora de anti-psych onde se andou sobretudo por Jovem Excelso Happy, disco de estreia que fascinou até Julian Cope. Mais do que isso: um par de tomates na cara de quem havia ido só para meter ácidos. Que São Enrabo nos abençoe a todos.

Dos Killimanjaro, que subiriam a este mesmo palco Sabotage pouco depois, não encontramos muito para dizer - não porque não sejam, obviamente, excelentes, mas porque muito provavelmente nos vamos repetir, ainda para mais quando os testemunhámos em Paredes de Coura há pouco mais de quinze dias. Ainda assim, aquele stoner a fugir para o clássico continua a fazer-nos cóceguinha boa no ouvido, quase apetecendo responder a "December": I need an answer and there's no one? São vocês a resposta, pá.

Pequena pausa para um curto almoço e eis-nos de volta à música: pouco vimos dos The Asteroid 4, mas deixamos aqui a nossa vénia por se terem recordado dos saudosos Catherine Wheel e feito uma versão de "I Want To Touch You" (e, quem sabe, talvez os originais se reúnam no meio desta onda de revivalismo gaze...), antes de James Jackson Toth, ou Wooden Wand, acalmar um pouco as hostes com a sua folk/country tingida de cor: canções bonitas pós-almoço, quando a barriga cheia impele à sesta, como "Remember Me To Stone", retirada de um disco a meias com Jenks Miller. Pena é não se ter apercebido que Valada não é Lisboa, mas também a mais não é obrigado.

Perdoem-nos os Sunflare por termos ficado desapontados com o seu concerto - ressalvando que, se existe desapontamento, é porque existe um amor imenso pela música do trio. Menos dados à pancadaria de Young Love e à descarga de Ghetto Blast, os lisboetas acabaram por dar um concerto menos sujo e mais polido, sem a característica barulheira que nos toca no âmago. Foi uma boa meia hora, mas não foi um incêndio. Drugs say you can hurry up, blá blá blá... E por falar em drogas, poucos concertos terão sido mais dados ao seu consumo que o dos Cave, conjunto para quem os Neu! são a salvação do rock e que seguem à risca os ensinamentos dos The Fall no que à repetição diz respeito. Os norte-americanos não procuram, ao contrário de muitas das bandas ligadas ao psicadelismo, tocar o céu; ao invés, gozam o calor alcatroado das auto-estradas e fazem música que serve tanto para percorrer uma distância considerável a bordo de um camião TIR como para dedicar um pouco do corpo à dança. Talvez a grande descoberta do Reverence.

Os Ringo Deathstarr mostraram ao povo porque é que são uma das melhores bandas a tocar shoegaze em 2014, ao passo que os Woods, que segundo consta ficaram pouco entusiasmados com o festival, encheram o palco Sabotage com as óptimas canções do seu último registo, With Light And With Love, folk psicadélica e fofinha que actua como bálsamo no meio de tanto volume. Após uma curta pausa iniciar-se-iam finalmente os concertos no palco principal, vedado ao público durante grande parte do dia: a sua estreia esteve a cargo dos Wytches, ingleses que soam ao filho hippie dos Nirvana e dos Arctic Monkeys e que vieram para tocar as malhas do seu excelente registo de estreia, Annabel Dream Reader. E, ou muito nos enganamos, ou os miúdos de Brighton terão o mesmo destino que os Alt-J: tocam para umas três mil pessoas num ano, enchem o Alive no outro. Está aqui um diamante à espera de ser encontrado.

Havia grandes expectativas para os Swervedriver, já que não é todos os anos que uma banda mítica pisa um palco nacional. Os britânicos não estiveram com meias medidas e acabaram por assinar um belo concerto, percorrendo melodia e fuzz em quantidades certas e embalando a audiência em direcção à nostalgia. Não houve "Never Lose That Feeling" mas houve "Sunset", que se tivesse sido tocada uma hora antes muito provavelmente teria ficado como O momento do ano... e houve um excelente concerto por parte de uma banda que aposta em não fazer esquecer aquilo que foram os anos noventa, que prova que a velhice é só um estado de espírito e que esta coisa das reuniões não é só para sacar dinheiro a melómanos incautos.

E, se queríamos estoiro, eis os Red Fang, máquina de rock pesado com tiques stoner que dá à audiência uma sessão de pancadaria ríffica à qual esta, se calhar, não correspondeu como se esperava - tantos adeptos metaleiros e tão pouco crowdsurf? Algo vai mal no reino do Diabo. Vindos de Portland no próprio dia, os norte-americanos esqueceram o jet lag e fizeram igualmente esquecer, durante cinquenta minutos, que os Swervedriver haviam trazido a melodia. Algo que os Graveyard tanbém tentaram, embora mais sonolentos e presos a uma ideia antiga de rock. Soar aos anos setenta sem nada que nos reexcite não é necessariamente uma coisa boa...

Contudo, o espectáculo do dia, até pela maior quantidade de público que arrastou como o faz ao riff, pertenceu aos Electric Wizard. Como não? Há muita boa banda que podia aprender uma lição ou duas dos ingleses: chegar em palco, tocar de uma forma avassaladora, ir embora sem dizer ai nem ui e deixar para trás um rasto de destruição e pescoço dorido. Pelo meio, uma sessão de coros no meio do feedback: ou seria a droga a iluminar-nos a mente e a despertar-nos todos os sentidos, abrindo a porta a outros mundos? Se mundos impulsionados por "Legalize Drugs And Murder", com a entoação ininterrupta de children of the grave, pela enorme "Dopethrone" ou pelo final, caótico e indispensável, com "Funeralopolis", isso já não saberemos. Sabemos, contudo, que os Electric Wizard são gigantes. E isso chega-nos perfeitamente.

Dos White Hills sobrou-nos o fumo que pairava sobre o palco, já que o seu set acabou por ser apenas morno, com um ou dois momentos de maior relevância. Quanto aos Telescopes fecharam da melhor forma o nosso dia um, subindo ao palco Rio não para celebrar o rock mas para o destruir, com o frontman Stephan Lawrie a encarnar o seu melhor Mark E. Smith e a percorrer o palco de lés a lés, alterando volumes nos amplificadores e sentando-se para declamar os textos que fazem as canções dos britânicos. Ainda que não tenha sido tão fenomenal como há meses no Cartaxo, foi uma bela maneira de se fechar a noite, tornada melhor após convidarem os Sunflarianos Guilherme Canhão e Raphael Soares para uma pequena colaboração. Sábado haveria mais.
· 18 Set 2014 · 09:12 ·
Paulo Cecílio
pauloandrececilio@gmail.com

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