Comecemos pelos pontos negativos, para os despachar de vez sem matutar mais no assunto: um recinto desta dimensão sem uma única barraquinha onde se possa comprar tabaco (oh, o quanto se sofreu), uma zona de restauração que via esgotar rapidamente o seu stock, e a presença aterradora de uma espécie aracnídea que deixou mazelas em inúmeros festivaleiros. No entanto, isto representa apenas 1% daquilo que foi a primeira edição do Reverence, com os restantes 99% divididos entre a boa música, o bom ambiente e o álcool barato, que nos fizeram as delícias e nos deixaram de água na boca para saber como correrá para o ano, se é que correrá. Esperamos que sim, e fazemos figas para que aconteça.
Não que tenhamos passado estes dois dias em Valada do Ribatejo a verificar se o limite mínimo de cinco mil pessoas - número que supostamente garantiria segunda edição em 2015 - foi alcançado, já que mais que observar a multidão dedicámos o nosso tempo a confraternizar com a mesma. Gente que já se conhecia de outras andanças, gente que se vê uma vez por ano, gente que o Facebook nos deu a conhecer. Unidos pelo amor à música, omnipresente entre os três palcos que faziam o festival, do meio-dia até altas horas da madrugada. Uma correria que nos cansa o corpo, um bom cansar que perdura quer se acampe ou se fique por um hotel nas redondezas ou se siga de comboio até Lisboa ou subúrbios para um par de horas de descanso numa cama confortável. Vale sempre a pena e amaldiçoamos os ossos que nos envelhecem, correndo contrários ao espírito.
Discuta-se então a música, os concertos que não quisemos perder por gosto, os que vimos que nos surpreenderam, até aqueles que nos desapontaram. Discuta-se as descobertas e as novas paixões. Discuta-se o bom gosto dos DJs convidados e os momentos ocorridos em cima de um palco que nos marcaram talvez para sempre. Discuta-se psicadelismo e rock n' roll e setlists e pregos e piadas e riffs e drogas e fumo. Se não fosse por isto o Reverence seria só um piquenique divertido; conjugando a música com o resto, torna-se o evento musical do ano.
Dia Um
Dia que começa cedo, bem cedo, demasiado cedo porque há que estar em Valada antes dos concertos começarem, há que começar a interiorizar que iremos cá passar um fim-de-semana carregado de emoções eléctricas e há que passear pelo espaço e sentir a natureza (dispensaríamos, repetimos, as aranhas). Infelizmente, já os Cave Story estavam em cima do palco Rio quando se chega finalmente às bilheteiras para levantar a credencial, pelo que lastimamos não poder falar um pouco mais deste quarteto das Caldas, ainda que recomendemos que piquem o Bandcamp dos moços. Não houve Cave Story mas houve Black Leather e Jabberwocky Band para nos irem aquecendo os ânimos, que finalmente se exaltam com o concerto da Orquestra Sinfónica das Olaias mais conhecida como Putas Bêbadas: vocais que parecem death metal misturados com drunfos - ou, o Monstro das Bolachas anestesiado no dentista -, rock estraçalhado e instável feito por quatro rapazes que tocam como se fossem morrer amanhã e tá-se bem, um despertador eficaz e uma excelente salva de boas-vindas aos festivaleiros. Cerca de meia-hora de anti-psych onde se andou sobretudo por Jovem Excelso Happy, disco de estreia que fascinou até Julian Cope. Mais do que isso: um par de tomates na cara de quem havia ido só para meter ácidos. Que São Enrabo nos abençoe a todos.
Dos Killimanjaro, que subiriam a este mesmo palco Sabotage pouco depois, não encontramos muito para dizer - não porque não sejam, obviamente, excelentes, mas porque muito provavelmente nos vamos repetir, ainda para mais quando os testemunhámos em Paredes de Coura há pouco mais de quinze dias. Ainda assim, aquele stoner a fugir para o clássico continua a fazer-nos cóceguinha boa no ouvido, quase apetecendo responder a "December": I need an answer and there's no one? São vocês a resposta, pá.
Pequena pausa para um curto almoço e eis-nos de volta à música: pouco vimos dos The Asteroid 4, mas deixamos aqui a nossa vénia por se terem recordado dos saudosos Catherine Wheel e feito uma versão de "I Want To Touch You" (e, quem sabe, talvez os originais se reúnam no meio desta onda de revivalismo gaze...), antes de James Jackson Toth, ou Wooden Wand, acalmar um pouco as hostes com a sua folk/country tingida de cor: canções bonitas pós-almoço, quando a barriga cheia impele à sesta, como "Remember Me To Stone", retirada de um disco a meias com Jenks Miller. Pena é não se ter apercebido que Valada não é Lisboa, mas também a mais não é obrigado.
Perdoem-nos os Sunflare por termos ficado desapontados com o seu concerto - ressalvando que, se existe desapontamento, é porque existe um amor imenso pela música do trio. Menos dados à pancadaria de Young Love e à descarga de Ghetto Blast, os lisboetas acabaram por dar um concerto menos sujo e mais polido, sem a característica barulheira que nos toca no âmago. Foi uma boa meia hora, mas não foi um incêndio. Drugs say you can hurry up, blá blá blá... E por falar em drogas, poucos concertos terão sido mais dados ao seu consumo que o dos Cave, conjunto para quem os Neu! são a salvação do rock e que seguem à risca os ensinamentos dos The Fall no que à repetição diz respeito. Os norte-americanos não procuram, ao contrário de muitas das bandas ligadas ao psicadelismo, tocar o céu; ao invés, gozam o calor alcatroado das auto-estradas e fazem música que serve tanto para percorrer uma distância considerável a bordo de um camião TIR como para dedicar um pouco do corpo à dança. Talvez a grande descoberta do Reverence.
Os Ringo Deathstarr mostraram ao povo porque é que são uma das melhores bandas a tocar shoegaze em 2014, ao passo que os Woods, que segundo consta ficaram pouco entusiasmados com o festival, encheram o palco Sabotage com as óptimas canções do seu último registo, With Light And With Love, folk psicadélica e fofinha que actua como bálsamo no meio de tanto volume. Após uma curta pausa iniciar-se-iam finalmente os concertos no palco principal, vedado ao público durante grande parte do dia: a sua estreia esteve a cargo dos Wytches, ingleses que soam ao filho hippie dos Nirvana e dos Arctic Monkeys e que vieram para tocar as malhas do seu excelente registo de estreia, Annabel Dream Reader. E, ou muito nos enganamos, ou os miúdos de Brighton terão o mesmo destino que os Alt-J: tocam para umas três mil pessoas num ano, enchem o Alive no outro. Está aqui um diamante à espera de ser encontrado.
Havia grandes expectativas para os Swervedriver, já que não é todos os anos que uma banda mítica pisa um palco nacional. Os britânicos não estiveram com meias medidas e acabaram por assinar um belo concerto, percorrendo melodia e fuzz em quantidades certas e embalando a audiência em direcção à nostalgia. Não houve "Never Lose That Feeling" mas houve "Sunset", que se tivesse sido tocada uma hora antes muito provavelmente teria ficado como O momento do ano... e houve um excelente concerto por parte de uma banda que aposta em não fazer esquecer aquilo que foram os anos noventa, que prova que a velhice é só um estado de espírito e que esta coisa das reuniões não é só para sacar dinheiro a melómanos incautos.
E, se queríamos estoiro, eis os Red Fang, máquina de rock pesado com tiques stoner que dá à audiência uma sessão de pancadaria ríffica à qual esta, se calhar, não correspondeu como se esperava - tantos adeptos metaleiros e tão pouco crowdsurf? Algo vai mal no reino do Diabo. Vindos de Portland no próprio dia, os norte-americanos esqueceram o jet lag e fizeram igualmente esquecer, durante cinquenta minutos, que os Swervedriver haviam trazido a melodia. Algo que os Graveyard tanbém tentaram, embora mais sonolentos e presos a uma ideia antiga de rock. Soar aos anos setenta sem nada que nos reexcite não é necessariamente uma coisa boa...
Contudo, o espectáculo do dia, até pela maior quantidade de público que arrastou como o faz ao riff, pertenceu aos Electric Wizard. Como não? Há muita boa banda que podia aprender uma lição ou duas dos ingleses: chegar em palco, tocar de uma forma avassaladora, ir embora sem dizer ai nem ui e deixar para trás um rasto de destruição e pescoço dorido. Pelo meio, uma sessão de coros no meio do feedback: ou seria a droga a iluminar-nos a mente e a despertar-nos todos os sentidos, abrindo a porta a outros mundos? Se mundos impulsionados por "Legalize Drugs And Murder", com a entoação ininterrupta de children of the grave, pela enorme "Dopethrone" ou pelo final, caótico e indispensável, com "Funeralopolis", isso já não saberemos. Sabemos, contudo, que os Electric Wizard são gigantes. E isso chega-nos perfeitamente.
Dos White Hills sobrou-nos o fumo que pairava sobre o palco, já que o seu set acabou por ser apenas morno, com um ou dois momentos de maior relevância. Quanto aos Telescopes fecharam da melhor forma o nosso dia um, subindo ao palco Rio não para celebrar o rock mas para o destruir, com o frontman Stephan Lawrie a encarnar o seu melhor Mark E. Smith e a percorrer o palco de lés a lés, alterando volumes nos amplificadores e sentando-se para declamar os textos que fazem as canções dos britânicos. Ainda que não tenha sido tão fenomenal como há meses no Cartaxo, foi uma bela maneira de se fechar a noite, tornada melhor após convidarem os Sunflarianos Guilherme Canhão e Raphael Soares para uma pequena colaboração. Sábado haveria mais.Corria a informação que devido a um incêndio nas redondezas os concertos do dia se atrasariam, o que acabou por acontecer. Mau para a natureza, bom para quem precisava de repor um pouco as energias e por isso pôde descansar um pouco mais na tenda ou na cama. Foi devido a esse atraso que pudemos apanhar o concerto dos Dreamweapon que acabou por se saldar ainda melhor do que em Moledo do Minho, com o psicadelismo dos senhores a ditar o início da tarde. Mais concentrados na sua performance e contando ainda com a presença de um Telescopes à guitarra para uma curta colaboração no final, os Dreamweapon crescem a cada concerto e começam a tornar-se um caso muito sério. Consta que irão editar brevemente pela Lovers: podemos já pedir uma cópia?
Por esta hora já Adolfo Luxúria Canibal se passeava pelo recinto para encher a sua conta no Instagram de momentos captados num Samsung, como no caso dos Mugstar, que deram um excelente concerto naquele que foi o seu regresso a terras lusas. O quarteto tocou no palco Rio para uma plateia bem composta e mostrou-se em grande forma, rasgando de canção em canção, marcadas pelo ritmo kraut e por alguns laivos prog que agradam tanto ao pessoal do metal como aos aprendizes do psych. Não há dúvida alguma de que mereceriam tocar no palco principal: quarenta minutos é escasso para uma banda da sua envergadura, e demasiado escasso quando constatamos que fizeram mais neste período que alguns conjuntos fazem em duas horas.
E porque uma pausa era necessária e há que falar de tudo, eis-nos a percorrer a Feira das Almas à procura de um souvenir interessante, a ir até aos primeiros socorros tratar de um inchaço provocado por um monstro verde com meia dúzia de patas e a parar durante a tarde pela área VIP para conversar com algumas bandas, testemunhar um bongo feito a partir de uma lata de coca-cola e indagar se o colega da Drowned In Sound não seria uma personagem saída do Trainspotting. Tudo isto e para observar também in loco o DJ set do famigerado DJ Quesadilla, que entre escolhas oriundas de países do terceiro mundo e Martin Garrix proporcionou aquelas que foram as horas mais épicas do festival, ainda que quem estava do lado de fora tenha observado a cena sem querer acreditar... mas a esses chamamos de "néscios" e lamentamos a sua ignorância.
Voltaríamos aos concertos para rever os A Place To Bury Strangers, que infelizmente perdem um pouco da sua violência noise em espaço aberto mas assinam ainda assim um concerto incrível. Rock em estado primitivo e balançado pelo fuzz, um baixista que espanca - literalmente - o groove e uma descarga saudável de energia eléctrica que não permite nem respeita o ácido. No final, Oliver Ackermann ergue a guitarra como um tributo aos deuses do rock e logo de seguida a destrói em dois pedaços para gáudio da assistência. Já lá vão dois anos desde Worship: precisamos urgentemente de um novo disco dos APTBS... e que regressem ao país em nome próprio para, novamente, nos foderem os ouvidos.
Já se sabe que os Psychic TV abandonaram há muito a sua costela industrial e passaram a apresentar tonalidades mais viradas para o psicadelismo, às quais não faltam a ocasional versão - no Cartaxo foram quatro, em Valada iniciam com "Interstellar Overdrive". Infelizmente a intensidade há de lhes ter fugido, já que durante uma hora o concerto da família de Genesis P-Orridge (sim, é um gajo) não foi mais que morno, sem qualquer momento que se tenha prendido na memória. Melhores os Hawkwind, de quem muito se escreveu e que seriam provavelmente o nome maior do cartaz, pela história e pela estreia. Ainda que tenham começado num tom mais aborrecido, provavelmente devido à idade avançada, à terceira canção começaram a mostrar porque é que o space rock não seria nada se não o tivessem inventado: guitarras a estremecer, ritmo forte e um baixo e um teclado a apontar o groove em direcção ao infinito. Não desiludiram quem foi sem expectativas, mas talvez tenham desiludido quem só conhece "Silver Machine": a canção tornada sucesso pela voz de Lemmy Kilmister não passou por aqui. Mas "Steppenwolf", "Uncle Sam's On Mars" e "Hassan I Sahba" (haxixe, haxixe, haxixe...) devem ter feito as delícias dos fãs a sério.
Os Mão Morta são a melhor banda portuguesa da história e isso é indiscutível. Vê-los subir ao palco para de pronto começarem com "Até Cair" e "E Se Depois" liberta-nos para a vida, tal qual a "Hipótese De Suicídio" sobre a qual Adolfo Luxúria Canibal canta no novo disco, que esteve sobremaneira representado neste concerto. Pareceu-nos, contudo, que a voz dos bracarenses não esteve na sua melhor forma, esquecendo-se aqui e ali das letras de algumas canções - ou então somos nós que estamos à espera que façam tudo direitinho sem espaço para alguma improvisação, o que é um claro insulto aos Mão Morta. Faltou volume, com o próprio ALC sugerindo ao público para pedir ao técnico de som que o aumentasse, mas ficou um registo mais virado para o metal de uma banda que desde as suas origens tem fugido aos rótulos. "Charles Manson", "Berlim", "Barcelona" e "Anarquista Duval" não podiam faltar, "Horas De Matar", depois da polémica, também não. Depois de (mais) um concerto assim só poderíamos dizer que se fodam os Black Angels, mas ainda ficámos para assistir à estreia dos norte-americanos por cá. Rock psicadélico negro, pesado q.b., que tem tanto de antigo como de fresco e que deixa a audiência em transe. O problema é que não existe vontade alguma de se ser hipnotizado depois de ver Mão Morta. Não obstante os Black Angels deram um belo concerto: estavam era a competir com um amor de décadas.
Fechado o principal, eis-nos de volta à correria para apanharmos os Crippled Black Phoenix a darem um concerto fenomenal no palco Rio. Tal como os Mugstar horas antes, o super-grupo apresentou-se em topo de forma, começando com temas do seu disco mais recente, como a fabulosa "No!", cascata de guitarras envolvendo-se entre si como uma serpente a uma árvore sem qualquer falha no som; e damos por nós a questionar como é que é possível que tanta gente em palco dê um concerto tão excepcional nesse sentido, cada qual sabendo o seu papel e desempenhando-o da melhor forma. Are you still awake?, perguntam a dada altura, sem obter grande resposta para além de uns aplausos e uns uivos - somos bem-educados, ao que parece... mas, defendamos o público: para quê perder tempo a aplaudir quando nos apanhamos de boca aberta perante tamanha performance, ainda mais quando arrancam para a "velhinha" "Burnt Reynolds", e ainda ainda mais quando terminam o concerto a mandar foder a organização, que lhes queria cortar o som, e a começar uma versão inacreditável da "Bella Ciao"? Que voltem depressa e ocupem uma sala só deles. Ou, considerando esta última, até podem voltar para tocar no Avante. Desde que voltem.
Depois de tamanho tareão os Moon Duo e os 10 000 Russos ofereceriam a mesma coisa boa em palcos diferentes, com vantagem para o trio português no que toca a fazer dançar e vantagem para os norte-americanos no que aos visuais de palco diz respeito, e os Equations subiriam ao palco Reverence para um concerto apontado ao espaço, nessa que é a sua nova faceta abandonada que está a matemática - e o quinteto está a crescer, de concerto para concerto, deixando antever coisa boa para o segundo disco que ainda está por sair. Fechamos o Reverence com Jibóia, que começa a actuar já quase de dia sem transparecer o cansaço que tinha, dando um belo concerto e pondo a mexer os resistentes que se aglomeraram ali naquele canto pelas sete e meia de manhã. Para o ano, há mais?
Paulo Cecílio pauloandrececilio@gmail.com 18/09/2014