DISCOS
Karl Sanders
Saurian Meditation
· 31 Out 2004 · 07:00 ·
Karl Sanders
Saurian Meditation
2004
Relapse Records


Sítios oficiais:
- Relapse Records
Karl Sanders
Saurian Meditation
2004
Relapse Records


Sítios oficiais:
- Relapse Records
Até acordar na manhã do passado dia 4 de Outubro, não fazia a menor ideia de que era essa a data de nascimento de Charlton Heston. Foi na minha passagem matinal pelo IMDB.com que vim a saber que o presidente do NRA comemorava 80 anos. Foi aí que um iluminativo "flashback" cruzou o meu pensamento e reavivou memórias de um sonho (da noite anterior, presumo) em que congratulava o carismático actor por mais um aniversário. Premonição certeira, "rasteira" cerebral ou carne para canhão a preencher mais uma introdução, a verdade é que "O homem que veio do futuro" proporcionou-me uma das mais místicas ocorrências deste ano, a par deste Saurian meditation, que, por ser tão denso, depende da predisposição adequada, boa dose de paciência e também de atenção. Surte um efeito diferente se escutado como música ambiente: perde a linearidade narrativa, sai favorecido o generalismo característico das composições que acompanham os documentários do National Geographic. Karl Sanders é essencialmente um historiador amador convertido em "storyteller".

Guitarra em vez de caneta, acorde no lugar da palavra. Os episódios sucedem-se ao ritmo da imaginação: escravos que remam sincronizados pelo ritmo do tambor (mais uma vez, Charlton "Ben-Hur" Heston), cerimónias celebradas a sangue e uvas, rituais que jamais conheceram a luz do sol. Tudo isto remete para a ténue margem que impede a consciência de ceder ao hipnotismo (é escutar "Luring the Doom Serpent" e perder os sentidos no centrifugar da espiral). E como é agradável percorrer essa corda bamba... A contrastar com os desoladores quadros que a sua música possa sugerir, a crescente reputação dos Nile (banda de que Sanders faz parte) parecia não conhecer limites. Muito à custa do aclamadíssimo In their darkened shrines - grandioso espécime de death metal tingido de influências musicais Egípcias. Por essa altura, o labor de Sanders já o estabelecia como um excepcional artífice na arte de usufruir do peso do metal em abono da dimensão épica do conceito que tudo engloba, e vice-versa. Desta vez, optou por deixar de fora as cavernosas vocalizações de meter medo ao susto e guitarras dedilhadas à velocidade da luz. Comparado com um disco dos Nile, Saurian meditation quase parece "slowcore". Escutada em retrospectiva, rapidamente nos apercebemos de que a introdução de "Unas Slayer of the Gods" (pertencente a In their...) bem pode ter servido como protótipo ao disco a solo de Sanders. Removido o peso do metal - enquanto camada que oculta a transversalidade conceptual das composições de Sanders -, sobra espaço para que a paixão pelo Egipto e seus mistérios se evidencie. Escute-se Suarian meditation como o pergaminho onde os hieróglifos dão lugar às notas musicais que carregam a mesma homenagem sincera e apreciação culta veiculadas por Sanders.

Inserido num enquadramento cinematográfico, Saurian Meditation representa a serenidade da viagem que permite a reflexão e calmaria, após solucionados os mais malditos dos enigmas esfíngicos e revistados todos os sarcófagos. Esqueçam a lógica videojogo d'"A Múmia" e as comédias-fracasso que Brendan Fraser protagonizou depois disso, pois o universo que Sanders edifica nos seus discos é mil vez mais intricado: comporta um conhecimento bibliotecário dos mitos e a meticulosidade narrativa de Tolkien. Os detalhes históricos são tão ou mais relevantes que a virtuosidade dos músicos. Adiante-se que, apesar de ocasionalmente pastelão e barroco, Karl Sanders é exímio na forma como concilia a sua polivalência como guitarrista e a capacidade de compor partituras que não destoariam num remake de "Lawrence da Arábia" realizado por Tim Burton.

Embora pese na balança o seu tom ocasionalmente maçudo e uma ou outra dilação mais aborrecida, olvidarmo-nos do seu exotismo sobrenatural seria passar ao lado de uma oferenda capaz de despertar Tutankhamen. Perfeito enquanto estímulo para a imaginação, Saurian meditation peca somente por depender de um contexto demasiado específico. Uma pirâmide por explorar nos dias certos ou uma banalidade que sai das colunas de uma qualquer "body shop".
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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