Até acordar na manhã do passado dia 4 de Outubro, não fazia a menor ideia de que era essa a data de nascimento de Charlton Heston.
Foi na minha passagem matinal pelo IMDB.com que vim a saber que o presidente do NRA comemorava 80 anos. Foi aí que um iluminativo
"flashback" cruzou o meu pensamento e reavivou memórias de um sonho (da noite anterior, presumo) em que congratulava o carismático
actor por mais um aniversário. Premonição certeira, "rasteira" cerebral ou carne para canhão a preencher mais uma introdução,
a verdade é que "O homem que veio do futuro" proporcionou-me uma das mais místicas ocorrências deste ano, a par deste Saurian
meditation, que, por ser tão denso, depende da predisposição adequada, boa dose de paciência e também de atenção. Surte um efeito
diferente se escutado como música ambiente: perde a linearidade narrativa, sai favorecido o generalismo característico das composições que acompanham os documentários do National Geographic. Karl Sanders é essencialmente um historiador amador convertido em "storyteller".
Guitarra em vez de caneta, acorde no lugar da palavra. Os episódios sucedem-se ao ritmo da imaginação: escravos que remam sincronizados
pelo ritmo do tambor (mais uma vez, Charlton "Ben-Hur" Heston), cerimónias celebradas a sangue e uvas, rituais que jamais conheceram
a luz do sol. Tudo isto remete para a ténue margem que impede a consciência de ceder ao hipnotismo (é escutar "Luring the Doom Serpent" e perder os sentidos no centrifugar da espiral). E como é agradável percorrer essa corda bamba...
A contrastar com os desoladores quadros que a sua música possa sugerir, a crescente reputação dos Nile (banda de que Sanders faz parte) parecia não conhecer limites. Muito à custa do aclamadíssimo In their darkened shrines - grandioso espécime de death metal tingido de influências musicais Egípcias. Por essa altura, o labor de Sanders já o estabelecia como um excepcional artífice na arte de usufruir do peso do metal em abono da dimensão épica do conceito que tudo engloba, e vice-versa. Desta vez, optou por deixar de fora as cavernosas
vocalizações de meter medo ao susto e guitarras dedilhadas à velocidade da luz. Comparado com um disco dos Nile, Saurian
meditation quase parece "slowcore". Escutada em retrospectiva, rapidamente nos apercebemos de que a introdução de "Unas Slayer of the Gods" (pertencente a In their...) bem pode ter servido como protótipo ao disco a solo de Sanders. Removido o peso do metal - enquanto camada que oculta a transversalidade conceptual das composições de Sanders -, sobra espaço para que a paixão pelo Egipto e seus mistérios se evidencie. Escute-se Suarian meditation como o pergaminho onde os hieróglifos dão lugar às notas musicais que carregam a mesma homenagem sincera e apreciação culta veiculadas por Sanders.
Inserido num enquadramento cinematográfico, Saurian Meditation representa a serenidade da viagem que permite a reflexão e calmaria, após solucionados os mais malditos dos enigmas esfíngicos e revistados todos os sarcófagos. Esqueçam a lógica videojogo d'"A Múmia" e as comédias-fracasso que Brendan Fraser protagonizou depois disso, pois o universo que Sanders edifica nos seus discos é mil vez mais intricado: comporta um conhecimento bibliotecário dos mitos e a meticulosidade
narrativa de Tolkien. Os detalhes históricos são tão ou mais relevantes que a virtuosidade dos músicos. Adiante-se que, apesar de ocasionalmente pastelão e barroco, Karl Sanders é exímio na forma como concilia a sua polivalência como guitarrista e a capacidade de compor partituras que não destoariam num remake de "Lawrence da Arábia" realizado por Tim Burton.
Embora pese na balança o seu tom ocasionalmente maçudo e uma ou outra dilação mais aborrecida, olvidarmo-nos do seu exotismo sobrenatural seria passar ao lado de uma oferenda capaz de despertar Tutankhamen. Perfeito enquanto estímulo para a imaginação, Saurian meditation peca somente por depender de um contexto demasiado específico. Uma pirâmide por explorar nos dias certos ou uma banalidade que sai das colunas de uma qualquer "body shop".