DISCOS
Doom
Born Like This
· 02 Abr 2009 · 10:46 ·
Doom
Born Like This
2009
Lex


Sítios oficiais:
- Doom
- Lex
Doom
Born Like This
2009
Lex


Sítios oficiais:
- Doom
- Lex
A ressurreição do super-vilão do hip-hop resolve todas as incertezas respeitantes a 2007.
É bem provável que Born Like This dê mais que falar pelos seus simbolismos, do que propriamente pela música, que veio colocar termo a um estranho e incómodo silêncio, prolongado por mais de três anos, por parte do MC e produtor MF Doom (a partir de agora, apenas Doom). Ele que protagonizou um admirável retiro, numa altura em que a regularidade representa também a estupidificação do hip-hop, com a epidemia Lil Wayne a ganhar terreno em cada mixtape mensal. Contrariando esse absurdo, Born Like This tardou, em vez de nascer prematuramente. Afinal, era uma reputação de anos aquela que estava em jogo. Anos tão inspirados como os clássicos que deixaram, entre os quais o farto Mm..Food? e o imperante Madvillainy (ao lado do maestro Madlib). Depois de aniquilar grande parte da concorrência na divisão mais subterrânea do hip-hop, Doom era quase obrigado a fechar a loja para balanço.

A pausa rendeu algumas mudanças e manteve inalterados outros tantos traços. O título Born Like This anuncia simultaneamente um MC aprisionado no seu meio sombrio e – à luz de uma leitura livre - uma ressurreição, que, afinal, são duas. Depois de tantos rumores o apontarem como morto, Doom tinha a seu favor o pretexto ideal para ensaiar um dos cenários mais apreciados na mitologia hip-hop: um regresso da tumba feito em estilo e com o intuito de arrumar a casa. Se a medida for a ferida que Doom abre na sua razia lírica, então Born Like This está ao melhor nível de sempre. É nula a piedade de um flow, por esta altura lendário, que atropela sem oferecer margem para que alguém anote a matrícula. Doom, o semi-deus, está em toda a parte: num flirt com a morte, em “Absolutely”, na referência venenosa a Ron Jeremy, no incrível trocadilho Eyes pop out, Popeye!, em “Microwave Mayo”. Só quando o disco chega ao remate “That’s That” é que o super-vilão decide interromper o modo de durão-fulminante – fá-lo num crooning Biz Markie (como já foi referido) disposto a brincar com a demora da sua ausência. O mesmo humor afiado sente-se numa “Supervillainz”, que, de surra, lá vai ridicularizando toda a febre das vozes processadas por Auto-tune. Na era Watchmen, é bom saber que o mundo pode sempre contar com os super-vilões.

Nem só Doom renasce no seu Life After Death. Também o falecido produtor J Dilla (tcp Jay Dee) vê o seu nome ressurgido entre os créditos de Born Like This. Ainda que sejam apenas duas – “Gazzilion Ear” e “Lightworks” - as produções recuperadas ao vasto legado de Dilla, é evidente que Doom procurou, com ambas, homenagear um produtor da sua (velha) escola – alguém, que, como ele, nunca receou cruzar o travo clássico da funk e soul de 70 com samples pilhados ao futuro desde sempre prometido pelo imaginário da ficção-científica. A favor de J Dilla, importa frisar que “Lightworks”, apesar de andar à solta há já algum tempo, continua a ser a melhor apropriação alguma vez feita com base num naco de easy listening oriundo do laboratório de Raymond Scott, o excêntrico reconhecido pelo arrojo experimental e pela música para bebés. Com isto, até se perdoa a repetição da mesma sirene em “Gazzilion Ear” e “Lightworks”.

De resto, aponte-se como inevitável a subida da fasquia, que serve de referência às produções do próprio Doom, a partir do momento em que J Dilla figura entre os vários produtores convidados (incluindo também Jake One e Malib). Passando ao lado da saturante sonoplastia espacial, o tempero inevitável das produções de Doom, é possível descobrir valor nos temas arquitectados pelo homem da face metálica: “Yessir!”, por exemplo, cria a ilusão de que Raekwon é o mais fatal MC da turma Wu-Tang, ao alinhá-lo entre um beat e um baixo encapuçados com a faceta mais aterradora de Nova Iorque. Confirma-se que Doom é praticamente invencível a jogar no seu terreno.

Born Like This é sobretudo o disco que se esperava de um sábio eremita, que, depois de aceitar a maldição da máscara, decide maximizar o proveito do seu aprisionamento. Doom continua a ser o super-vilão que antagoniza o super-herói negro anunciado por Jay-Z em American Gangster. É o militante que prefere repetir-se a sofrer uma mutação que deforme (ainda mais) a sua identidade - o que, na verdade, até o deixa a salvo de tão patético volte-face como aquele que, em Universal Mind Control, transformou um Common consciente num predador sexual sintético. O filme aproxima-se do fim. Doom ergue-se, procurando superar os reveses da indústria e os danos de um disco um pouco forçado na sua amálgama. Voa como um Super-Vilão e perde-se no escuro. Deixa tudo em aberto. O tempo devia ter parado. Sem ser o estrondo que podia justificar o longo período de gestação, Born Like This é o melhor álbum que Doom podia ter feito há dois anos.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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