É bem provável que Born Like This dê mais que falar pelos seus simbolismos, do que propriamente pela música, que veio colocar termo a um estranho e incómodo silêncio, prolongado por mais de três anos, por parte do MC e produtor MF Doom (a partir de agora, apenas Doom). Ele que protagonizou um admirável retiro, numa altura em que a regularidade representa também a estupidificação do hip-hop, com a epidemia Lil Wayne a ganhar terreno em cada mixtape mensal. Contrariando esse absurdo, Born Like This tardou, em vez de nascer prematuramente. Afinal, era uma reputação de anos aquela que estava em jogo. Anos tão inspirados como os clássicos que deixaram, entre os quais o farto Mm..Food? e o imperante Madvillainy (ao lado do maestro Madlib). Depois de aniquilar grande parte da concorrência na divisão mais subterrânea do hip-hop, Doom era quase obrigado a fechar a loja para balanço.
A pausa rendeu algumas mudanças e manteve inalterados outros tantos traços. O tĂtulo Born Like This anuncia simultaneamente um MC aprisionado no seu meio sombrio e – Ă luz de uma leitura livre - uma ressurreição, que, afinal, sĂŁo duas. Depois de tantos rumores o apontarem como morto, Doom tinha a seu favor o pretexto ideal para ensaiar um dos cenários mais apreciados na mitologia hip-hop: um regresso da tumba feito em estilo e com o intuito de arrumar a casa. Se a medida for a ferida que Doom abre na sua razia lĂrica, entĂŁo Born Like This está ao melhor nĂvel de sempre. É nula a piedade de um flow, por esta altura lendário, que atropela sem oferecer margem para que alguĂ©m anote a matrĂcula. Doom, o semi-deus, está em toda a parte: num flirt com a morte, em “Absolutely”, na referĂŞncia venenosa a Ron Jeremy, no incrĂvel trocadilho Eyes pop out, Popeye!, em “Microwave Mayo”. SĂł quando o disco chega ao remate “That’s That” Ă© que o super-vilĂŁo decide interromper o modo de durĂŁo-fulminante – fá-lo num crooning Biz Markie (como já foi referido) disposto a brincar com a demora da sua ausĂŞncia. O mesmo humor afiado sente-se numa “Supervillainz”, que, de surra, lá vai ridicularizando toda a febre das vozes processadas por Auto-tune. Na era Watchmen, Ă© bom saber que o mundo pode sempre contar com os super-vilões.
Nem sĂł Doom renasce no seu Life After Death. TambĂ©m o falecido produtor J Dilla (tcp Jay Dee) vĂŞ o seu nome ressurgido entre os crĂ©ditos de Born Like This. Ainda que sejam apenas duas – “Gazzilion Ear” e “Lightworks” - as produções recuperadas ao vasto legado de Dilla, Ă© evidente que Doom procurou, com ambas, homenagear um produtor da sua (velha) escola – alguĂ©m, que, como ele, nunca receou cruzar o travo clássico da funk e soul de 70 com samples pilhados ao futuro desde sempre prometido pelo imaginário da ficção-cientĂfica. A favor de J Dilla, importa frisar que “Lightworks”, apesar de andar Ă solta há já algum tempo, continua a ser a melhor apropriação alguma vez feita com base num naco de easy listening oriundo do laboratĂłrio de Raymond Scott, o excĂŞntrico reconhecido pelo arrojo experimental e pela mĂşsica para bebĂ©s. Com isto, atĂ© se perdoa a repetição da mesma sirene em “Gazzilion Ear” e “Lightworks”.
De resto, aponte-se como inevitável a subida da fasquia, que serve de referĂŞncia Ă s produções do prĂłprio Doom, a partir do momento em que J Dilla figura entre os vários produtores convidados (incluindo tambĂ©m Jake One e Malib). Passando ao lado da saturante sonoplastia espacial, o tempero inevitável das produções de Doom, Ă© possĂvel descobrir valor nos temas arquitectados pelo homem da face metálica: “Yessir!”, por exemplo, cria a ilusĂŁo de que Raekwon Ă© o mais fatal MC da turma Wu-Tang, ao alinhá-lo entre um beat e um baixo encapuçados com a faceta mais aterradora de Nova Iorque. Confirma-se que Doom Ă© praticamente invencĂvel a jogar no seu terreno.
Born Like This Ă© sobretudo o disco que se esperava de um sábio eremita, que, depois de aceitar a maldição da máscara, decide maximizar o proveito do seu aprisionamento. Doom continua a ser o super-vilĂŁo que antagoniza o super-herĂłi negro anunciado por Jay-Z em American Gangster. É o militante que prefere repetir-se a sofrer uma mutação que deforme (ainda mais) a sua identidade - o que, na verdade, atĂ© o deixa a salvo de tĂŁo patĂ©tico volte-face como aquele que, em Universal Mind Control, transformou um Common consciente num predador sexual sintĂ©tico. O filme aproxima-se do fim. Doom ergue-se, procurando superar os reveses da indĂşstria e os danos de um disco um pouco forçado na sua amálgama. Voa como um Super-VilĂŁo e perde-se no escuro. Deixa tudo em aberto. O tempo devia ter parado. Sem ser o estrondo que podia justificar o longo perĂodo de gestação, Born Like This Ă© o melhor álbum que Doom podia ter feito há dois anos.