Pink Floyd: Por falar nisso
· 25 Fev 2008 · 08:00 ·

Estelle vagueia pelas dunas

  Oh mais!

A Saucerful of Secrets (1968) ilustrava o novo equilíbrio que se havia estabelecido no seio dos Pink Floyd. Waters e Wright assumiam a direcção artística, aproximando o quarteto da experimentação em grandes formatos e, simultaneamente, transportando-o para a década seguinte. Com efeito, embora houvesse ainda em A Saucerful of Secrets alguns momentos que relembravam os trejeitos psicadélicos de The Piper at the Gates of Dawn (“Let There Be More Light”, “Corporal Clegg” e “Jugband Blues” - esta última ainda com Barrett), outros havia que projectavam o grupo em estéticas futuras (“Set the Controls for the Heart of the Sun” e “A Saucerful of Secrets”). No entanto, apesar dos sinais comprovativos de um certo amadurecimento estilístico, o grupo não estava ainda preparado para fechar de vez as portas à drug culture – a sua próxima obra assim o atestaria.

Gilmour, Mason, Waters e Wright tinham respondido ao convite do jovem realizador cinematográfico Barbet Schroeder. Deveriam escrever e gravar a banda sonora do seu próximo filme, intitulado More (1969), cujo motif provinha de uma citação do filósofo Carl Jung: “Em geral, para os homens, o inconsciente representa a alma sem rosto de uma mulher.” Disse Schroeder: “Para a gravação, os Floyd compunham a música durante a tarde, vendo o filme, e depois gravavam à noite, entre a meia-noite e as nove da manhã. […] Os Pink Floyd fizeram-me a música ideal. Mostrei-lhes o filme e pedi-lhes uma música que estivesse de acordo, sem lhes dar quaisquer directivas. Eles encontraram um elemento mágico impressionante e sobretudo o sentido do espaço… A tal ponto que tive de baixar o volume da música. A sua qualidade aniquilava literalmente algumas das cenas!”

More tornar-se-ia uma obra-chave do período pós-“Swinging London”. Os Pink Floyd captavam a essência da história de destruição pelo amor e pela droga – Estelle (Mimsi Farmer) fazia gato-sapato de Stefan (Klaus Grunberg), numa Ibiza pré-reggaeton –, em composições que revelavam um grupo em ascensão criativa. Pelo meio tinham ainda tempo para escrever “Quicksilver”, uma composição inspirada na musique concrète de Edgard Varèse, que, à luz de quem agora olha para trás, prenunciava e pronunciava já Ummagumma (1969).
 


  Canto de mim mesmo

Ummagumma não era apenas um nome esquisito; era também uma declaração de liberdade e um objecto paradigmático. Registo duplo, tinha algumas particularidades: apresentava gravações feitas ao vivo (o primeiro tomo fazia-se de novas versões de temas antigos) e em estúdio – um modelo nunca antes visto e que seria mais tarde adoptado pelos Soft Machine em Six (1973); e permitia, no segundo volume, a apresentação individual das diferentes visões dos quatro elementos: cada um tinha cerca de dez minutos para, preferencialmente a solo, mostrar o que valia – outro modelo também nunca antes visto e que faria escola nos Yes (Fragile, 1972), nos Emerson, Lake & Palmer (Works, Vol. 1, 1977) e nos ‘nossos’ Tantra (Mistérios e maravilhas, 1977).

Richard Wright abria as hostilidades com “Sysyphus”, uma peça escrita para mellotron e piano. Claramente inspirada em György Ligeti (Musica ricercata, 1953) e Pierre Boulez (Sonatas para piano, 1946-58), “Sysyphus” ia buscar ainda algumas influências à liberdade jazzística de McCoy Tyner e Cecil Taylor (note-se, por exemplo, a intensidade com que Wright pressionava as teclas do piano). Porém, estruturalmente, não há como negar a adopção de gramáticas mais antigas: a peça principia e finda com a mesma evocação: um majestoso motivo que Ludwig van Beethoven, por certo, não desdenharia.

Seguia-se-lhe Roger Waters. A pastoral “Grantchester Meadows” logo dava vez à kafkiana “Several Species of Small Furry Animals Gathered Together in a Cave and Grooving with a Pict”, onde, por meio de um habilidoso exercício de multi-dubbing, se fazia desaguar o material musical num imenso oceano de insectos liderados por um outro com esgares à Adolf Hitler. A loucura era brava, desbragada, mas não contagiosa: David Gilmour assinava “The Narrow Way”, o momento mais ‘normal’ do álbum; Nick Mason reintroduzia a erudição: “The Grand Vizier's Garden Party” era uma espécie de Poème eléctronique (Edgard Varèse, 1958), que, à falta de melhor aplauso, levantava algumas pistas sobre o porquê de Mason se tornar, alguns anos mais tarde, no produtor de álbuns tão marcantes como Rock Bottom (Robert Wyatt, 1974) e Shamal (Gong, 1976).
 


  La vache qui regard

O álbum seguinte, Atom Heart Mother (1970), via os Floyd voltar ao formato tradicional de grupo de rock, ainda que desta vez com o acréscimo de uma fanfarra, seguindo assim as pegadas dos Deep Purple (Concerto for Group and Orchestra, 1969) e juntando-se aos Yes (Time and a Word, 1970). Estávamos, pois, perante o sucumbir dos Floyd às modas da época, naquele que era o seu primeiro álbum, após a partida de Norman Smith, a ser concebido com a participação de alguém exterior ao grupo. Ron Geesin, orquestrador, produtor e entusiasta de técnicas de gravação inovadoras e da utilização da fita magnética enquanto instrumento de criação musical (produziria o belíssimo álbum de estreia de Bridget St. John: Songs for the Gentle Man), era um velho amigo que Waters havia reencontrado aquando da gravação da banda sonora de The Body (1970). “Os produtores deste filme paramédico procuravam desesperadamente alguém capaz de lhes escrever uma banda sonora adequada. Entraram em contacto com Tony Gardner que depois alertou John Peel. Este telefonou-me visto saber que eu, por vezes, fazia filmes publicitários e documentários. Percebi que desejavam música com atmosfera e pensei imediatamente no Roger. Ele escreveu quatro títulos e eu fiz o resto. Depois propôs-me ajudar os Floyd a realizarem o seu novo álbum; queria que eu escrevesse os metais e os coros. Os Pink Floyd partiram para os Estados Unidos deixando-me uma fita. Quando voltaram, não sabiam exactamente o que queriam. Escrevi a partitura para o coro com a intervenção do Dave e do Rick. Depois, John Alldis, o director do melhor coro erudito deste país [o prestigiadíssimo John Alldis Choir], juntou-se-nos e terminou o projecto”, disse Ron Geesin à revista Rock & Folk em 1970.

A enorme quantidade de trabalho contida na suite “Atom Heart Mother” era facilmente perceptível. Estruturada em quatro partes, esta suite associava estreitamente o coro e os metais com a instrumentação tradicional do quarteto. Os Pink Floyd pareciam ter encontrado o seu denominador comum, depois de fundidas as veleidades de cada membro. Mas teria sido esta a melhor forma de o fazer? Não estariam eles a abdicar da virulência estética que caracterizava os seus registos anteriores?

Na outra face de Atom Heart Mother (eram os dias do vinil), a oferta era mais variada: a megalomania voltava a fazer das suas na porém bela “Summer '68”, contrapondo-se assim a simplicidade de “If” e “Fat Old Sun”. Contudo, apenas em “Alan’s Psychedelic Breakfast” se cumpriam as boas promessas de Ummagumma. Este pequeno-almoço musical havia sido composto no ano anterior como parte inicial da peça The Man, onde, numa longa suite de quarenta minutos, se retratava um dia na vida de uma pessoa comum. Ao nascer do sol, magnificamente expresso por uma engenhosa progressão visual e sonora, seguia-se o pequeno-almoço, o trabalho, o intervalo para o chá (em que todos os elementos do grupo paravam de tocar para tomar chá em pleno palco), o amor e, por fim, a noite (uma espécie de Days of Future Passed dos Moody Blues, portanto…).

A dois de Janeiro de 1971, os Pink Floyd eram convidados pelo coreógrafo Roland Petit a participar na Soirée Roland Petit. Este encontro seria visto pelos fãs franceses como o apogeu da degradação de um grupo que, depois de cair no academismo barroco em Atom Heart Mother, se deixava agora enlaçar pelas velhas glórias do Casino de Paris. Ao público francês faltava o distanciamento que agora, quase quarenta anos depois, nos apresenta uma visão diferente sobre um mesmo objecto. Atom Heart Mother abria uma época de excessos: o rock sinfónico encontrava a sua voz em grupos como os Camel, os Emerson, Lake & Palmer, os Genesis ou os Yes; os alemães ensaiavam na garagem de Karlheinz Stockhausen (Agitation Free, CAN, Cluster, Cosmic Jokers, La Düsseldorf, Faust, Guru Guru, Harmonia, Klaus Schulze, Kraftwerk, Neu!, Popol Vuh, Sergius Golowin, Tangerine Dream, Xhol Caravan); Alan Parsons convidava Edgar Alan Poe para jantar (Tales of Mystery and Imagination, 1975); os Canários sonhavam com António Vivaldi (Ciclos, 1974); os Gryphon tratavam Henrique VIII por tu (Gryphon, 1973); os Jethro Tull fundavam um jornal (Thick as a Brick, 1972); o Melody Maker dizia que “se Richard Wagner fosse vivo quereria trabalhar com os King Crimson” (In the Wake of Poseidon, 1970), e estes respondiam com algo (Lizard, 1970) mais próximo de Miles Davis (Sketches of Spain, 1959) e, portanto, de Joaquín Rodrigo; os Renaissance tinham mil e uma histórias para contar (Scheherazade and Other Stories, 1975); Rick Wakeman viajava até ao centro da Terra (Journey to the Centre of the Earth, 1974); os Rush escreviam distopias (2112, 1976); os Soft Machine produziam grandezas inumanas (Third, 1970); e Vangelis separava o céu e o inferno com uma canção pop (Heaven and Hell, 1975). Ou seja, os Pink Floyd haviam feito o que se esperava de um grupo herdeiro da tendência iniciada pela música popular urbana nos anos 1950, a qual se achava agora provida de melhores meios e mais vasta ambição. A progressão das várias linguagens fazia-se por intermédio de experiências, e Atom Heart Mother era, como se viria a confirmar em Meddle (1971), apenas mais uma etapa. As vacas gordas, essas, ainda estavam para chegar.
 

Da esquerda para a direita: Nick Mason, David Gilmour, Roger Waters e Richard Wright (1971)

  Um destes dias

Ainda que na sua génese estivesse um olhar para trás (o grupo não havia ficado satisfeito com as gravações de estúdio de Ummagumma, pelo que se preparava para repetir o esquema que lhes tinha dado origem), Meddle seria incontestavelmente um passo em frente, até no consolidar da posição de Roger Waters enquanto líder do grupo. Conseguia ser mais diversificado do que o seu antecessor, Atom Heart Mother, sem que para isso precisasse de abrir mão de um certo grau de coesão. Mais importante: não repetia os erros do passado: guardavam-se as fanfarras no bolso, fechava-se a porta ao mundo (às modas) e conseguia-se um som novo, um som que olhava em frente.

Os Pink Floyd entravam definitivamente na década de 1970. A violência da faixa de abertura, “One of These Days”, com as suas letras sumárias mas providas de uma violência impar na carreira dos Pink Floyd (cantava Mason: “One of these days I'm going to cut you into little pieces”), era um bom indício das mudanças que então se operavam. Seguia-se a placidez de “A Pillow of Winds” (uma grande canção de amor), o rock de “Fearless”, o bambolear de “San Tropez” (onde, segundo consta, Gilmour terá seduzido Brigitte Bardot) e o blues de “Seamus” (Gilmour e o seu cão, Seamus, cantavam à porta de casa).

Mas era “Echoes”, a faixa que ocupava integralmente a segunda face do disco (ainda o vinil), que dava o toque de grande obra a Meddle. A sequência inicial fazia-se com uma meia-dúzia notas dadas no piano e, simultaneamente, afogadas em efeitos. Estas soavam como se de pingos de água se tratassem. Ouvia-se um pingo e depois outro e outro ainda; perfuravam a quietude das águas que se achavam por baixo. Seguia-se um lento improviso sobre esse som, à partida sem grandes perspectivas que não a de simples efeito. Sobrepunham-se o baixo, a bateria, a voz e, após um leve ameaço, um notável primeiro solo de Gilmour. Abrandava-se o swing; repetia-se o processo e Gilmour dava início ao seu notável segundo solo.

Meddle conheceria um enorme êxito, continuando dois anos depois, em 1973, muito bem classificado nos hit-parades britânicos. A evolução dos Floyd era agora mais lenta e serena, coerente e reflectida.
 


  Ainda o cinema

Verão de 1972. O quarteto fazia férias em San Tropez numa casa com persianas de um azul esmorecido, criadas atarefadas com a lida diária, lavando, cozinhando, servindo à mesa. Moviam-se por entre o cheiro de flores silvestres; a casa achava-se cercada delas e o perfume introduzia-se pelas janelas abertas. Richard Wright e Juliette Gale, sua esposa e uma das primeiras vocalistas dos Architectural Abdabs, brincavam com elas: apanhavam as pétalas caídas e deixavam-nas tombar por entre os dedos enquanto os outros se reuniam no alpendre, com as suas roupas claras, e tomavam bebidas geladas sob o fundo esmorecido das persianas. Mais tarde aglomeravam-se todos em torno de um piano e cantavam velhas canções inglesas.

Já de regresso a casa, o quarteto empreenderia uma digressão pelo Reino Unido. Dispunham de um novíssimo equipamento sonoro – a quadrifonia fazia a sua estreia – e sentiam-se mais maduros, mais aptos para tocar ao vivo e promover uma discografia que se achava agora encimada pelo álbum que lhes havia traçado novas coordenadas. Fariam setenta e duas datas e, numa delas, seriam pirateados (conferir The Best of Tour 72). Este infortúnio aborrecê-los-ia imenso, uma vez que não tinham prevista a gravação imediata de alguns temas novos – Dark Side of the Moon (1973) parecia não estar com grande pressa para nascer. O grupo completaria ainda as gravações de uma nova encomenda de Barbet Schroeder, a banda sonora de La Vallée (1972), cujo álbum correspondente, Obscured by Clouds (1972), acabaria por ser posto à venda meses antes do previsto, justamente com o objectivo de dar ao mercado algo que o distraísse da gravação pirata que então já circulava.

Apesar da beleza das paisagens da Nova Guiné, o filme acabaria por desiludir o público de More. O argumento era interessante: a descoberta da vida, sob as suas formas dionisíacas, pela mulher de um embaixador (Bulle Ogier), e a exploração por uma comunidade (J.P. Kalfon, Michael Gothart e Valérie Lagrange) de um vale misterioso. Mas à concretização, ao objecto final, faltava a marca geracional de More. O álbum, porém, conseguia apartar-se da fraca qualidade do filme: Obscured by Clouds era estranhamente coeso e continha algumas preciosidades: os ambientes asfixiantes de “Obscured by Clouds” e “Absolutely Curtains”, e o à-vontade de “Burning Bridges”, “Wots Uh the Deal”, “Mudmen” e “Stay” – notar nesta última as raízes de Wet Dream (1978), o álbum que marcaria a estreia a solo de Richard Wright. De resto os Floyd pareciam muito contentes com o resultado: “Ficámos bastante satisfeitos com a nossa música. Portanto, não vejo onde está o problema, se é que há algum problema. Voltando à música, ela era, no nosso espírito, uma sucessão de canções. Não era um álbum dos Pink Floyd, mas um conjunto de canções. O todo equilibrava-se muito bem por entre ritmos e ambientes diferentes”, diria Nick Mason à revista Rock & Folk em 1973.

A experiência de La Vallée era, pois, inversa à de Zabriskie Point (1970). Michelangelo Antonioni havia utilizado apenas três dos vinte temas gravados pelo grupo, fomentando-lhes a fúria e alguns comentários indecorosos (envolviam a palavra “tirano”). O filme era, todavia, bem melhor do que a música: “Come in number 51, you time is up” era, por exemplo, um remake mal disfarçado de “Careful with that axe, Eugene”.

Frustrados, decidiriam eles próprios abraçar a sétima arte em Live at Pompeii (1971). Co-produzida por várias televisões europeias, esta longa-metragem de Adrian Maben era o resultado de uma ideia muito cara ao grupo que, desde Tonite Let's All Make Love in London, sonhava ser imortalizado em filme num quadro completamente floydinao. E Maben saberia captar muito bem a execução dos músicos: as versões de “Careful with that Axe Eugene”, “A Saucerful of Secrets”, “One of These Days” e “Set the Controls for the Heart of the Sun” tornar-se-iam derradeiras, as absolutamente perfeitas.
 


  A Lua é triangular

Depois de um período experimental mais ou menos bem sucedido, o grupo encontraria em Dark Side of the Moon, a peça que faltava para preencher de vez o vazio deixado por Syd Barrett. Este salto e esta renovação seriam sobretudo obra de Roger Waters, o que revelava já a sua plena condição de líder. Contudo, o reconhecimento dos outros Floyd não podia ser negligenciado: Nick Mason brilhava na produção e na manipulação das fitas magnéticas (ainda a musique concrète; Waters também se aventurava nestes domínios), Richard Wright continuava a ser o harmonizador e David Gilmour dava continuidade à sua ascensão enquanto guitarrista.

O grupo permitia-se ainda a algumas audácias: o saxofone de Dick Parry em “Money” e “Us and Them”; a voz de Clare Torry em “The Great Gig in the Sky”; e o modulador VCS3 em “On the Run” e “Any Colour You Like” (os Floyd haviam sido convidados, juntamente com os King Crimson e os Curved Air, a experimentar esta versão simplificada dos teclados Moog). Estes pequenos atrevimentos apartavam-se claramente da condição de artifícios harmónicos destinados a camuflar uma certa vacuidade (olá Atom Heart Mother). Eram antes finuras que dotavam a música, que nem por isso se havia distanciado da estética de Meddle, de novos elementos timbricos que ajudavam a solidificar a estesia floydiana. Assim, o grupo partia em direcção a uma condensação das fórmulas usadas no seu passado recente, sendo que estas eram agora mais imediatas e próximas do espírito do rock corrente. Contavam para isso com dois artífices de grande gabarito: o engenheiro Alan Parsons: criaria o Alan Parsons Project que, de quando em quando, faria lembrar os Floyd; e o produtor Chris Thomas: trabalhara em álbuns como The Beatles (The Beatles, 1968), Grand Hotel (Procol Harum, 1973) ou For Your Pleasure (Roxy Music, 1973).

Dark Side of the Moon trazia ainda no regaço uma enorme novidade: era o primeiro álbum do grupo a alicerçar-se num conceito assim explicado por David Gilmour: “O tema de Dark Side of the Moon relaciona-se com todas as pressões da vida moderna que nos podem levar à loucura. Estas pressões, o dinheiro, as viagens ou a planificação, sentimo-las nós, músicos, muito mais do que o homem da rua. Quando tudo se desequilibra, chegamos à situação patológica do louco.” Os temas, apesar de não estarem aparentemente interligados, encadeavam-se, íntima e inexoravelmente, na exploração do modus vivendi de um normal habitante do mundo ocidental ou ocidentalizado.

O álbum principiava com uma montagem assinada por Mason, na qual eram enumerados alguns dos vícios (ruídos nocivos) da vida moderna, servindo também de introdução a “Breath”, tema que actuava como um anti-clímax das perversidades descritas na faixa anterior. O clima etéreo de “Breath” era composto por pequenas pinceladas de guitarra que aí assumiam uma força evocadora impressionante, desembocando no experimental “On the Run” e tornando a aparecer em “Time”, este sobre a fuga e a obsessão do tempo que se elevava num dilúvio de mecanismos de relógios e pêndulos.

Seguia-se “The Great Gig in the Sky”. Clare Torry havia sido chamada aos estúdios Abbey Road. As folhas das árvores, arrancadas pelas fortes chuvadas, tingiam as bermas da estrada de um amarelo-dourado, conferindo-lhes o aspecto de um leito seco de um rio. Era domingo, pelo que o seu namorado se havia oferecido para a acompanhar. Cá fora não se ouvia nenhum som além do ruído que os passos dos transeuntes produziam ao pisar as folhas caídas. Dentro do estúdio, porém, Torry cantava “Yeah, yeah, baby, baby”. Disseram-lhe depois que não queriam quaisquer palavras. Wright estava aflito. Torry preparava-se já para regressar a casa quando se lembrou de que talvez não tivesse percebido a intenção da peça. Retirou o casaco e projectou a voz como se de um outro instrumento se tratasse. Cantava agora: “Whoah-oh-aaaa-woo-a-woaah…” – que nos perdoem novamente os nossos amigos puristas. Já de regresso ao carro, terá dito ao namorado que a sessão não tinha corrido bem. Passou uma factura de trinta libras (havia acrescido quinze libras ao preço normal que cobrava durante os dias de semana) e, passados alguns meses, comprou o disco apenas para descobrir que o seu primeiro take havia sido utilizado. Fez as contas e, em 2005, decidiu cobrar mais algum pilim. Pelo meio participou em álbuns dos Tangerine Dream e dos Culture Club. Os Floyd entravam no mercado; “Money” expressava-o. Esta alusão ao vil metal seria um dos temas emblemáticos do grupo e revelava Waters enquanto mestre na experimentação com as fitas magnéticas, as quais, para introduzirem o ritmo na canção, tinham sido cortadas à mão e depois milimetricamente coladas. “Money” era o grande momento, aquele que de facto evidenciava uns Pink Floyd mais maduros. Mas Dark Side of the Moon tinha ainda outros momentos que o colocavam, se não no clima geral pelo menos na execução, um passo adiante de Meddle: “Us and Them” revelava inovações melódicas particularmente evidentes nos coros à Moody Blues e no solo de saxofone de Dick Parry – o Alan Parsons Project dar-lhe-ia seguimento com “Time” (The Turn of a Friendly Card, 1980); o instrumental “Any Colour You Like” aproximava-se de A Rainbow in Curved Air (1969) de Terry Riley, nascendo de um fundo de VCS3 que depois era salpicado por violentas improvisações, nomeadamente por dois solos cruzados de David Gilmour; e a extraordinária reconstituição da alienação que era “Brain Damage”, uma evocação musical atormentada, pontuada por gargalhadas e refrões majestosos, fundava-se nos prodigiosos coros femininos (Liza Strike, Doris Troy e Leslie Duncan) que depois faziam a ponte para o final da obra, final esse onde toda a ‘normalidade’ por debaixo do Sol era – ou podia ser – eclipsada pela Lua.
 

Da esquerda para a direita (ou tudo ao contrário): Richard Wright, Roger Waters, Nick Mason e David Gilmour (1973)

  Embora fosse um céptico em relação a Dark Side of the Moon, Fernando Magalhães não deixava de salientar alguns dos seus progressos: “Uma das facetas mais curiosas dos Pink Floyd, relativamente ao Dark Side of the Moon, é o modo como a utilização do sequenciador, na faixa “On the Run”, serviu de base às sequências rítmicas criadas pelos Tangerine Dream, em Phaedra e Rubycon. Aliás, os Tangerine Dream como que construíram um mundo inteiro e autónomo a partir de um excerto da música dos Floyd, precisamente o seu lado mais cósmico e electrónico. Porém, esta componente rítmica dos sequenciadores de “On the Run” já tinha antecedentes dentro da obra dos Floyd, nos álbuns Atom Heart Mother (na suite com o mesmo nome) e em Meddle (na longa faixa “Echoes”). De resto os Floyd influenciaram uma série de grupos alemães; estou a lembrar-me dos Gila, dos Jane, dos Os Mundi, dos Sand (no magnífico Golem).” Com efeito, os Pink Floyd de Dark Side of the Moon haviam deixado a sua marca no chamado “Período Virgin” (de 1974 a 1983) do grupo alemão. Não só em Phaedra (1974) e Rubycon (1975), mas também em Ricochet (1975) e, de uma forma mais comedida, em todos os álbuns seguintes até Force Majeure (1979). Mas voltemos, por ora, ao cepticismo. Luís Miguel Loureiro, jornalista da RTP e co-organizador do Gouveia Art Rock, é peremptório: “O Dark Side of the Moon nunca me entusiasmou como o fizeram outros trabalhos anteriores dos Floyd (conhecidos posteriormente na minha escala temporal... o meu primeiro contacto com os Pink Floyd foi, obviamente, o ainda menos entusiasmante The Wall que nunca cheguei a comprar!... nem em vinil). É claro que quando falo em entusiasmo, ele tem mais a ver com todo o fascínio que sempre encontrei noutros projectos oriundos da década de setenta, que nunca senti nos Pink Floyd. São perspectivas pessoais, portanto, mais do foro emotivo. Mas, passados estes anos, e tentando reouvir mentalmente o Dark Side of the Moon, também não encontro nele motivos musicais que me façam crescer um súbito entusiasmo racional. Ou seja, parece-me que o grosso da importância da obra dos Pink Floyd se situa antes desse álbum e que o durante e depois pouco ou nada vieram acrescentar.” Eduardo Mota concorda (à Jardel): “Decepção. Terá sido esta a palavra, creio, que mais ocorreu a um jovem melómano no primeiro contacto que teve com Dark Side of the Moon, no já longínquo ano da graça de 1973. Chegado de véspera ao admirável universo sonoro daquilo que hoje se designa por rock progressivo, num momento em que procurava confirmar, consolidar os seus valores musicais, o novo disco dos Pink Floyd, para além de desiludir, veio baralhar, confundir um pouco a selecção em curso. Para um lado ficavam Beatles, Rolling Stones, Deep Purple, Grand Funk, Black Sabbath e quejandos – os rejeitados. Para o outro, os fascinantes Gentle Giant, Van der Graaf Generator, Genesis, Yes, Tangerine Dream, Renaissance, Soft Machine, Caravan… e os Pink Floyd. Exactamente: os Pink Floyd. Os mesmos que pouco antes surpreendiam com álbuns arrojados como Atom Heart Mother, Meddle ou Ummagumma. Os mesmos que meia dúzia de anos antes, em pleno Psicadelismo, ousavam assinar “Astronomy Domine”, uma peça pioneira, premonitória do próprio Progressivo. Os Pink Floyd de Dark Side of the Moon não ousavam nada, apenas alindavam; não aprofundavam, preferiam simplificar; não surpreendiam, preocupavam-se em agradar; não experimentavam, optavam por investir com um risco mínimo, com retorno mais que garantido. Os Pink Floyd de Dark Side of the Moon afinal não eram os mesmos; eram outros. Por isso, decepcionaram o jovem melómano. E confundiram-no na sua selecção de valores. Atraiçoaram-no até na confiança, na fé que ele tinha na produção musical do grupo. Por isso, o jovem melómano não comprou o álbum. Nem desejou que alguém lho oferecesse numa ocasião festiva. Irritou-se até sempre que o ouvia passar na telefonia, na discoteca, no intervalo de uma sessão cinematográfica, ou a ser tocado num baile provinciano pelo ‘jaz’ de serviço.” Por outro lado, Álvaro Silveira, vocalista do grupo de rock progressivo Miosótis, é da opinião que “Dark Side of the Moon é provavelmente o disco mais importante de toda a obra dos Pink Floyd por inúmeras razões: é a síntese na modernidade dos vários caminhos experimentados na primeira metade da sua discografia; o abrir para a nova sonoridade que se desenvolverá a partir daí, a catarse definitiva da herança deixada por Syd Barrett e a passagem de testemunho a Roger Waters.” Silveira abre o seu baú de memórias: “Quem iniciava a sua adolescência na segunda metade dos anos ’70, tinha duas alternativas: ou alinhava com o processo revolucionário em curso que chegava de Londres e pendurava uns alfinetes pela roupa e pela face, gritando “No future!”, ou assumia a nostalgia de um passado imediato, que a Portugal chegava com um ligeiro atraso, e embarcava no mundo do Progressivo. Este [Dark Side of the Moon] era o disco que tinha de longe mais audições, individuais ou colectivas, só para ouvir ou também para dançar, só para confirmar um detalhe ou como evento conceptual, com ou sem apoio de substâncias mais ou menos proibidas, com namoradas ou sem elas, em casa ou no pátio do liceu. Qual The Lamb Lies Down on Broadway [Genesis, 1974], qual Close to the Edge [Yes, 1972], qual Houses of The Holy [Led Zeppelin, 1973]: o Dark Side of the Moon era o nosso denominador comum!”  

Samuel Pereira
an_american@paris.com

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