Pink Floyd: Por falar nisso
· 25 Fev 2008 · 08:00 ·

Caleidosc�pios, viagens espaciais, porcos esvoa�antes e vacas de batuta na boca. Depois de d�cadas de rancor, processos judiciais e coment�rios pouco pr�prios na imprensa especializada, os Pink Floyd n�o conseguem deixar de celebrar a sua obra.
Ap�s a luxuosa reedi��o, em Setembro do ano passado, do seu �lbum de estreia, The Piper at the Gates of Dawn, voltam agora ao ataque com uma caixa que re�ne a totalidade do seu cat�logo gravado em est�dio (mensagem para os nossos mui prezados amigos puristas: sim, existem pelo meio quatro faixas gravadas ao vivo): dezasseis discos (formato mini-LP), vinte e sete anos de produ��o musical, onze horas de m�sica. O Bodyspace n�o se assustou e foi � procura daquilo que jaz por tr�s deste Oh By The Way.


  Let There Be More Light

O Ver�o decorria como todos os Ver�es, l�nguido e indolente. Embora os soldados morressem nas praias do Pac�fico, houvesse racionamento de a��car e gasolina e fosse dif�cil conseguir pneus novos para carros velhos, o Ver�o escoava-se. Tempestades estivais estalavam e desfaziam-se com s�bita f�ria, o povo lia ansiosamente os jornais, a fim de saber como se comportavam os �rapazes�, e verificou-se uma transforma��o na face da Am�rica: viam-se uniformes por todo o lado. Era dif�cil notar-se outra coisa que n�o fosse panam�s brancos nas ruas principais das cidades costeiras. Por�m, o Ver�o decorria, e, apesar de tudo, encontravam-se ainda alguns vest�gios de paz e a guerra continuava a parecer muito long�nqua.

Nas praias da Am�rica, os gira-discos faziam ouvir as can��es populares. As raparigas estendiam na areia o bronzeado dos seus corpos, frescos e jovens, com dentes de um branco alv�ssimo e pernas bem torneadas; trauteavam as can��es dos discos, torciam palhas em garrafas vazias de Coca-Cola e escutavam o rumor distante das ondas que quebravam na areia. A guerra parecia muito, muito long�nqua. Os parques de divers�es arranjavam maneira de as grandes rodas nunca cessarem de girar, encontrava-se gasolina no mercado negro e os propriet�rios dos talhos tornavam-se mais ricos e mais obesos vendendo carne � socapa a clientes privilegiados. Uma vez por outra algu�m estremecia ao ver uma estrela dourada na janela de um vizinho ou compadecia-se ao saber que um transporte fora metido a pique, que ningu�m escapara e que um filho de um amigo ou de um parente se encontrava a bordo. Mas as reuni�es paroquiais prosseguiam, os bailes demoravam-se, as raparigas e os rapazes usavam popas no cabelo, o n� Windsor tornava-se popular e as saias eram agora mais curtas. O Ver�o decorria. A guerra n�o parecia ser, � dist�ncia, apesar de tudo, o inferno de que se falara.

A Am�rica crescia. O Ver�o parecia passar como outrora: os mesmos corpos, as mesmas pernas. As m�os continuavam a acariciar faces, os dedos tocavam o c�ncavo das gargantas, os l�bios afloravam orelhas e, subitamente, descendo at� � abertura dos vestidos, chegavam ao bronzeado da carne. Mas as can��es haviam sido substitu�das pelas improvisa��es em regime bebop. Em 1948, Jack Kerouac conhecia Allen Ginsberg e William S. Burroughs. Nascia uma nova gera��o que se achava em fuga, cansada de lutar contra um modelo de sociedade opressivo. Os escritores beat (Allen Ginsberg, Gregory Corso, Jack Kerouac, Lawrence Ferlinghetti, Peter Orlovsky e William S. Burroughs) davam-lhe voz. A estrada tornava-se num modo de vida. Muitos eram aqueles que, tal como Kerouac o fizera e relatara em On the Road (1957), esticavam o dedo e partiam rumo � incerteza, �s rela��es fugazes, �s drogas; partiam � procura de novas experi�ncias e significados.

As �poetry readings� estabeleciam-se enquanto acontecimentos. Seguir-se-iam os �love in�, manifesta��es de amor universal que juntavam milhares de hippies, ou hipsters, em torno de espect�culos multidimensionais que envolviam em estreita liga��o, m�sica, imagens e fragr�ncias. Acontecia em S�o Francisco; ouvia-se The Grateful Dead, Jefferson Airplane ou Big Brother and the Holding Company, enquanto o horizonte, em franca expans�o, se fazia de projec��es, estrobosc�pios e luzes negras. Marshall McLuhan, um especialista em mass media, ajudava a definir a gera��o p�s-beat ao dizer que os sons, as informa��es e os impulsos el�ctricos e electr�nicos permitiriam, na sociedade tecnol�gica moderna, reencontrar a no��o original de comunidade, de tribo.

Entretanto, o Reino Unido perscrutava j� a sua antiga col�nia. Robert Wyatt (The Soft Machine, Matching Mole; os Soft Machine tinham nascido ap�s uma curta estadia de S. Burroughs em casa dos pais do Wyatt, adoptando a forma��o o nome de um dos seus romances) declarava ao jornal Melody Maker em 1967: �Quase todos os grupos de m�sica pop, aqui ou na Am�rica, fabricam indefinidamente sons e melodias para fazer consumir, sob formas mais ou menos novas, as mesmas emo��es, facilmente identificadas e assimiladas pelo p�blico. Queremos quebrar esta imagem e este conceito, reencontrar o esp�rito do jazz, ou seja, uma express�o aut�ntica, selvagem, mas desta vez nossa e n�o dos negros.�

O Psicadelismo ingl�s era mais t�nue que o estadunidense: faltava-lhe esse grande m�bil que era a guerra do Vietname. No entanto, tamb�m este tinha o seu alvo: o english way of living. E ainda que menos numerosa do que a comunidade psicad�lica de S�o Francisco, a comunidade londrina nem por isso era menos activa. Tinha at� as suas pr�prias lojas, as �head shops�, onde podia ouvir m�sica, fazer trocas, conversar e fumar. Como Kerouac previra alguns anos antes em The Dharma Bums (1958), as influ�ncias orientais faziam, junto do c�rculo psicad�lico (ocidentais), cada vez mais adeptos. Duas suecas, Ula e Gitta, institucionalizavam essa tend�ncia na sua loja em Chelsea, a Antique Market, que, poucas semanas ap�s a sua abertura, se tornaria no templo londrino do vestu�rio in. Proliferavam os saris indianos e os casacos afeg�os; a c�tara e a tabla, redescobertas por George Harrison (The Beatles, The Traveling Wilburys) e Brian Jones (The Rolling Stones), faziam sombra � guitarra e � bateria; e havia j� muitas pessoas a cederem ao caril e � cozinha macrobi�tica.

Os dias viviam � laia de quaisquer supervis�es; os c�us propagavam as ideias. As r�dios-piratas mostravam a �nova m�sica� em programas como o �Lucy Fruit Show�, na Radio Caroline, ou o �Perfumed Garden�, na Radio London. Este �ltimo, programado e animado pelo lend�rio DJ John Peel, misturava os nomes mais conhecidos (The Beatles, Big Brother and the Holding Company, Bob Dylan, The Grateful Dead, Jefferson Airplane, etc.) com outros ainda n�o editados e que Peel ia gravar directamente aos clubes da capital inglesa. Apareciam tamb�m as primeiras publica��es hippie, de entre as quais se destacava o jornal International Times (IT). Este trazia � explos�o psicad�lica inglesa uma forma de estar, uma direc��o. Era nas suas p�ginas que a comunidade hippie londrina podia encontrar um pedido de revis�o de �uma legisla��o hip�crita� em rela��o ao uso de drogas: �Porqu� favorecer a utiliza��o do �purple heart� [pequeno comprimido � base de benzedrina muito utilizado pelos mods]? Porqu� considerar a marijuana uma droga narc�tica quando n�o � mais perigosa do que o �lcool?�
 

Da esquerda para a direita: Roger Waters, Nick Mason, Syd Barrett e Richard Wright (1967)

  Plano de evas�o

O IT lan�ava o slogan: �Quando a m�sica muda, as paredes da cidade tremem!� Londres achava-se recheada de clubes que a faziam tremer. O UFO havia sido o primeiro � de �ndole psicad�lica � a abrir portas. Lia-se numa nota publicit�ria redigida por S. Miles, co-fundador do clube: �O UFO � o clube das pessoas que l�em o IT. Tent�mos criar um ambiente diferente do dos outros clubes. Temos tocadores de c�tara, grandes grupos de percuss�o africanos, projec��es de filmes de [Lu�s] Bu�uel ou de Marylin Monroe. David Marowitz apresentou aqui tr�s pe�as de teatro, tr�s s�tiras pol�ticas. H� free jazz e, evidentemente, grupos psicad�licos.� Com efeito, o UFO favorecia todas as formas de espect�culo suscept�veis de provocar abalos de consci�ncia. Havia sess�es de m�sica experimental (gravada ou ao vivo), projec��es de vanguarda pela Exploding Gallaxy e filmes de Andy Warhol, Mekas e Yoko Ono.

Para a abertura do UFO haviam sido convidados os Pink Floyd (Pink de Pink Anderson; Floyd de Floyd Council � dois bluesmen da Georgia). Estes eram um dos primeiros grupos a brotar da fornalha psicad�lica, de onde tamb�m provinham outros entretanto mais ou menos perdidos pelo avan�ar dos anos: Apostolic Intervention, Blossom Toes, The Crazy World of Arthur Brown (Carl Palmer passaria por l� antes de co-fundar, em 1970, os Emerson, Lake & Palmer), Sam Gospel Dream, Soft Machine (o ent�o vocalista, Kevin Ayers, seria uma das principais refer�ncias do Psicadelismo brit�nico), Syn (grupo que viu nascer Chris Squire, o lend�rio baixista dos Yes), Tomorrow (com o debutante Steve Howe, mais tarde guitarrista dos Yes e dos Asia � lembram-se da guitarra flamenca em �Innuendo� dos Queen�?), etc. A honra era-lhes devida. Os Pink Floyd haviam sido revelados por John Hopkins, um outro co-fundador do IT, por ocasi�o do lan�amento do jornal. Esta seria a primeira grande reuni�o da comunidade hippie, com os Pink Floyd em palco a apresentarem uma m�sica e uma encena��o que se coadunavam intimamente com o Psicadelismo.

� altura, o grupo estava ainda nos seus primeiros meses de exist�ncia. Syd Barrett havia-se juntado recentemente � forma��o que, at� h� poucos meses, lan�ava �ncora no blues sob a designa��o de Architectural Abdabs (por vezes The Screaming Abdabs ou The T-Set), numa clara alus�o � actividade social de Roger Waters, Nick Mason e Richard Wright, ent�o estudantes de arquitectura na Escola Polit�cnica de Londres. Com a sua entrada, o interesse pelo blues come�aria a decrescer na mesma propor��o com que aumentava o interesse pela m�sica electr�nica e pela fic��o cient�fica. Depois do lan�amento do IT, o grupo iniciaria uma ronda de concertos nos quais desenvolveria as suas pr�prias composi��es, muitas vezes levadas ao extremo por interm�dio de improvisa��es que lan�avam aut�nticos dil�vios sonoros sobre a assist�ncia. Seguir-se-iam as participa��es em programas televisivos e a grava��o do primeiro single com duas composi��es de Barrett: �Arnold Layne� e �Candy and a currant bun�. O disco teria boa aceita��o, mas o formato nem por isso agradava a um grupo habituado a divagar por longas auto-estradas sonoras. A provid�ncia seria, no entanto, c�lere: Peter Whitehead filmaria a interpreta��o de �Interstellar Overdrive� � a viagem de uma nave interplanet�ria que, depois de atravessar os engarrafamentos em redor da Terra, mergulhava no infinito � para o seu document�rio sobre a �Swinging London�, Tonite Let's All Make Love in London (1967; a edi��o discogr�fica editada pela See for Miles em 1993, cont�m ainda a faixa �Nick�s Boogie� - uma preciosidade para todos aqueles que queiram aventurar-se nos prim�rdios do grupo).
 


  Retrato do artista quando jovem

Os Pink Floyd chegavam ao Queen Elisabeth Hall, no dia a seguir ao da edi��o de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967) dos Beatles. O tempo escapava-se momentaneamente � clausura dos formatos irrevers�veis. Numa esp�cie de premoni��o, Syd Barrett daria o melhor concerto da sua carreira. Manter-se-ia no prosc�nio durante a maior parte do espect�culo, envergando uma capa e esbo�ando, com um dos bra�os, gestos circulares ao jeito de Pete Townshend (The Who). Com a face fortemente iluminada, projectava uma sombra inquietante no ecr� colocado por tr�s do grupo. Nesse dia os Pink Floyd seriam apenas Syd Barrett, um Syd Barrett alucinante, trocista� talvez prof�tico em rela��o a si pr�prio.

Paran�ico, Barrett refugiar-se-ia em casa dos pais, em Cambridge. A sua sa�de d�bil n�o era surpresa para os restantes m�sicos do grupo. � semelhan�a dos grandes rom�nticos ingleses, Syd era consumido pelos seus del�rios interiores, sendo-lhe cada vez mais �rduo conciliar as exig�ncias do grupo (concertos, ensaios e grava��es) e as suas exig�ncias pessoais, reguladas pelo LSD.

Depois da sa�da do segundo single, See Emily Play (1967), o grupo ansiava pela grava��o do seu primeiro �lbum. Andrew King, empres�rio da banda, diria mais tarde: �A perspectiva de gravar parecia inspirar e avivar a criatividade de Barrett. Ningu�m sabia ao certo se ele chegava com can��es j� feitas ou se as escrevia � socapa durante as sess�es. Seja como for, escrevia muito rapidamente e desde que nos aproxim�ssemos de um est�dio, as suas can��es apareciam como por encanto.�

The Piper at the Gates of Dawn (1967) seria a primeira colabora��o entre o grupo e Norman Smith, produtor oficial do �lbum. Tornava-se ainda mais claro que os LPs eram, para os Pink Floyd, o formato ideal, embora apenas �Interstellar Overdrive� � uma vers�o ainda assim menos exuberante do que a contida na banda sonora de Tonite Let's All Make Love in London � ultrapassasse a barreira dos quatro minutos.

Ant�nio Jorge Quadros, cr�tico de m�sica do Phono, n�o tem d�vidas em afirmar que �o Shangri-La da revolu��o [musical psicad�lica] � o (ainda) inesgot�vel �lbum de estreia dos Pink Floyd�. Com efeito, The Piper at the Gates of Dawn �, talvez juntamente com os dois primeiros volumes da discografia dos Soft Machine, a melhor porta de entrada para a m�sica psicad�lica brit�nica. �Astronomy Domine�, uma violenta evoca��o sideral, estabeleceria per se as regras do que iria ser conhecido por space rock; enquanto �Chapter 24�, um canto m�stico retirado do I Ching, e �The Gnome�, uma pequena ladainha infantil sobre um fundo de vibrafone e caixa chinesa, marcariam v�rias gera��es de m�sicos devido � sua aparente e deslumbrante fragilidade.

Na edi��o de Setembro de 2006 da revista Uncut, uma edi��o em parte dedicada ao desaparecimento de Barrett, muitos eram aqueles que reconheciam a sua d�vida: �O Syd foi uma grande fonte de inspira��o. As poucas vezes que o vi actuar no UFO e no Marquee, ficar�o para sempre gravadas na minha mem�ria. Ele era muito carism�tico e original� (David Bowie; ou�am a sua vers�o de �See Emily Play�, presente no �lbum Pin Ups de 1973); �Adoro as can��es do Syd Barrett, especialmente aquelas que parecem inacabadas. [�] H� alguns anos gravei uma demo caseira chamada Demo Crazy. N�o a mostrei a muitas pessoas porque n�o passava de uma colec��o de esqui�os gravados em quartos de hotel. Era, por�m, fruto da minha admira��o pelo trabalho de Barrett� (Damon Albarn: Blur, Gorillaz e The Good, The Bad & The Queen); �Adoro a sua m�sica desde a minha adolesc�ncia� (Bobby Gillespie: Primal Scream).

A dois de Novembro de 1967, os Pink Floyd preparavam-se para enfrentar pela primeira vez a Costa Oeste estadunidense. Teriam pela frente um pa�s dividido pela guerra do Vietname, um pa�s feito das atitudes her�icas daqueles que gozavam de uma situa��o c�moda, que n�o se expunham � guerra, e do verdadeiro hero�smo sem gl�ria dos que haviam sofrido os horrores da frente. A fim de prepararem melhor o concerto no incontorn�vel Fillmore West, em S�o Francisco, os Floyd renunciariam uma digress�o pelo Reino Unido, tendo por companhia Jimi Hendrix e os grupos Amen Corner e The Move. O resultado deste per�odo sab�tico seria, contudo, algo desastroso. Dividindo o cartaz com Richie Havens e os Big Brother and the Holding Company, os Pink Floyd trocariam as voltas aos californianos. Estes � os californianos � esperavam reencontrar na m�sica do quarteto brit�nico, a mesma t�nica colocada na alegria de viver o momento presente. Todavia, os Floyd apresentariam uma m�sica de contornos �speros, cortantes, duros, vertiginosos. A segunda passagem pelo Fillmore, desta feita com os H. P. Lovecraft e os Procol Harum, apenas agravaria a m� impress�o por parte dos �filhos das flores�.

 

Da esquerda para a direita: Nick Mason, Syd Barrett, David Gilmour, Roger Waters e Richard Wright (1967)

  J� de volta ao Reino Unido, o grupo tomava uma decis�o: da� em diante contariam com cinco elementos. A primeira digress�o por terras americanas havia precipitado a exaust�o de Barrett, que agora se mostrava cada vez menos capaz de fazer face �s exig�ncias do grupo. De comum acordo, ficaria combinado que Barrett ingressaria ou deixaria o grupo sempre que lhe apetecesse e que se recrutaria um novo guitarrista-vocalista para cobrir as suas aus�ncias. �Durante um m�s, ensai�mos os cinco, o que era sem d�vida aquilo que quer�amos. A nossa ideia era adoptar a f�rmula dos Beach Boys: Brian Wilson juntava-se ao grupo quando o desejava [sendo na sua aus�ncia substitu�do por Bruce Johnston]. Quer�amos absolutamente, de uma forma ou de outra, conservar Syd Barrett no seio dos Pink Floyd. Mas ele deixou-se influenciar por uma quantidade de gente que n�o cessava de lhe repetir que ele era o �nico talento do grupo e que devia enveredar por uma carreira a solo�, contaria Nick Mason ao Melody Maker em 1975. O quinto elemento, David Gilmour (ex-Flowers, ex-The Crew), diria de sua justi�a em 1968: �Syd � um g�nio, mas est� louco, clinicamente louco, e n�o por causa do LSD: foi sempre mais ou menos assim, o que � terrivelmente triste para n�s que o conhecemos bem [Gilmour era amigo de inf�ncia de Barrett]. Por vezes consegue compor v�rias can��es extraordin�rias de seguida e toca de uma forma fascinante, sem que ningu�m o possa igualar. Mas na maioria das vezes n�o faz nada de coerente e, nestas condi��es, �-lhe completamente imposs�vel estar no palco. �s vezes avan�a simplesmente com a guitarra, senta-se e nem sequer p�e a m�o esquerda no bra�o do instrumento, limitando-se a arranh�-lo com a m�o direita durante imenso tempo.� Em entrevista � Uncut (edi��o de Maio de 2007), Roger Waters revelava ter a certeza de que o LSD tinha apenas agudizado o decl�nio de Syd: �Ele j� andava um pouco estranho. Certa vez, aquando de umas grava��es que fizemos para o Top of the Pops [programa televisivo exibido no segundo canal da BBC, que se manteve no ar at� Julho de 2006], come�ou a dizer coisas como: �O John Lennon n�o tem de fazer isto; por que raz�o terei eu?� [�] A partir dessa altura [Junho de 1967] tudo come�ou a descambar. No final do 1968, ele j� estava completamente fechado para o mundo. [�] Um dia, quando �amos busc�-lo para um concerto, dissemos �Nah�, e seguimos em frente.�  

'Syd Barrett (1970)

 

Barrett afundar-se-ia nos seus pr�prios del�rios, reaparecendo alguns meses depois quando uma secret�ria do agente dos Pink Floyd o descobriu a dormir num jardim p�blico. Syd havia combinado com Norman Smith a grava��o de, pelo menos, um �lbum a solo por ano para a etiqueta deste (Harvest). Ap�s contar com a participa��o de v�rios m�sicos, entre os quais Mike Ratledge e Robert Wyatt (ambos dos Soft Machine), o seu primeiro �lbum a solo, The Madcap Laughs (1970), teimava em n�o avan�ar devido aos seus problemas recorrentes. Gilmour e Waters, todavia, sob a amea�a de Smith em n�o renovar o contracto a Barrett se este n�o apresentasse no prazo de duas semanas o material necess�rio para a concretiza��o de um �lbum, decidiriam eles mesmos produzir os seis temas que comp�em o registo, tarefa que realizariam de forma espantosa em apenas tr�s dias.

No seu pr�ximo �lbum, simplesmente intitulado Barrett (1970), Syd seria novamente auxiliado por antigos colegas seus, desta feita por Gilmour e Wright. O pesadelo, esse, mantinha-se inalterado: Syd continuava a viver como um misantropo convicto, sendo muito dif�cil para David e Richard tir�-lo da sua sala de estar (a mesma que aparece na capa do seu �lbum de estreia), onde pintava, compunha e tocava.

Com o seu desaparecimento em Julho de 2006, havia novamente quem perguntasse: era ou n�o Barrett um m�sico provido de g�nio? Eduardo Mota, co-organizador do festival Gouveia Art Rock (festival anual dedicado exclusivamente � m�sica progressiva), � bastante claro na sua opini�o: �Parece-me que esse elemento tr�gico do seu percurso pessoal, em especial o desaparecimento prematuro, for�a o surgimento dessa aur�ola de genialidade comum a v�rios m�sicos. S�o exemplo disso Ian Curtis, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Judee Sill, Nick Drake, Shelagh McDonald e muitos outros. Por consequ�ncia, o conhecimento p�stumo da obra destes assume quase sempre o car�cter de revela��o. Entramos no dom�nio da �Mitologia�. E cabe aqui repetir uma interroga��o: Que imagem ter�amos n�s da obra desses m�sicos se n�o tivesse ocorrido o seu passamento tempor�o (f�sico ou mental), e continuassem a produzir trabalhos, alguns de qualidade inferior? Repare-se no caso inverso de Donovan (Leitch). Apesar de ter criado, na segunda metade dos anos �60, uma obra discogr�fica important�ssima � indicando, juntamente com a Incredible String Band, o caminho que conduziria ao maravilhoso mundo da folk progressiva brit�nica da primeira metade da d�cada seguinte �, quem fala hoje do escoc�s e o aponta como um grande inovador? Deveria ter ele falecido em 1970 de desastre rodovi�rio ou ensandecido com LSD em vez de continuar a gravar �lbuns?� O saudoso Fernando Magalh�es, antigo jornalista e cr�tico musical do jornal P�blico, tinha, j� em 2003, uma opini�o semelhante � de Eduardo Mota: �Incluo-me no grupo dos que acham Syd Barrett sobretudo uma personagem carism�tica cuja vida e morte conferiram a patine de g�nio. [�] Basta escutar a caixa que foi editada h� uns anos com a cobertura extensiva da m�sica de Syd [Crazy Diamond, 1994], para se perceber at� que ponto lhe era penoso compor/cantar/tocar. S�o takes e takes inutilizados, voz e guitarra desafinados ou fora de tempo antes de se conseguir chegar a uma vers�o definitiva de cada can��o. Um m�sico vale pelo que faz e produz e n�o pelos seus sonhos, por mais delirantes e coloridos que sejam. Dito isto, considero o The Piper at the Gates of Dawn um excelente �lbum e ou�o com agrado os dois trabalhos a solo do Syd Barrett.�

 

Samuel Pereira
an_american@paris.com

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