DIA 1 |
Fotografias de Carlos Oliveira
Em cima do palco descansam folhas, as folhas secas que o Outono tratou de fazer descer das árvores. Rodeado por arbustos, há um banco de jardim feito de madeira que parece querer abraçar quer os amantes, quer a solidão. Há dois candeeiros – um de cada lado – e mais alguns arbustos, num teatro que se vestiu a rigor para celebrar a chegada do Outono e a estreia de um tal de Festival para Gente Sentada, o festim que resolveu acolher meia dúzia de songwriters vindos dos Estados Unidos, do Reino Unido e até da Suécia. E foi precisamente o sueco Nicolai Dunger o primeiro cantautor a mostrar serviço; entrou em palco, segurou a guitarra nos seus braços como quem segura um filho e comentou: “Bem, parece que sou só eu e as folhas agora”. O seu nome pode ser estranho para muitos, mas o facto é que Dunger conta já com uma quantidade assinalável de discos e com o apoio de Will Oldham (Tranquil Isolation foi mesmo gravado com Will e Paul Oldham dos Palace Brothers). Se nos seus discos Nicolai Dunger conta com o ocasional colorido das cordas e com o doce balanço da percussão, ao vivo as canções despem-se até à sua essência (a folk) e são apresentadas em carne viva. No limite, a sua voz assemelha-se à de um Jeff Buckley, ou a um Van Morrisson de Astral Weeks. Há pinceladas de harmónica aqui e ali, e vocalizações pouco usuais. Há uma ou duas composições ao piano e uma confissão: “gosto muito de instrumentais”. Há um pedido de uma canção vindo do público e uma resposta bem humorada: “Essa é muito difícil”. A encerrar, há até uma canção, erguida pela sua guitarra em melódicas cascatas, que surge repetida no alinhamento – escrita por alturas dos seus vinte anos - pois Nicolai confessa ser da sua preferência. Mas faltou sempre aquela pontinha de magia da qual se fazem os grandes concertos.
O intervalo parecia fazer lembrar que Sketches (For my Sweetheart the Drunk) é uma colecção impressionante de grandes esboços (veja-se “The Sky is a Landfill”, “Everybody Here Wants You”, “Morning Theft” e “Vancouver”) e que o espírito de Jeff Buckley, dez anos após a sua morte, se encontra mais presente que nunca. À parte de tal beleza, preparava-se o palco para Sufjan Stevens, o autor de Greetings From Michigan: The Great Lakes State, uma deliciosa homenagem a Michigan: mal entrou em palco, apresentou-se e anunciou: “this one goes out to the one I love”. Ao princípio podia parecer uma dedicatória, mas aos primeiros acordes todas as dúvidas foram dissipadas: tratava-se de “The One I Love”, dos R.E.M., numa versão obrigatoriamente despida mas nem por isso desprovida de emoção. Rosie Thomas subiu ao palco – qual menina da meteorologia – para, com gestos mais ou menos precisos, ilustrar num mapa dos E.U.A. as indicações de Sufjan Stevens. O conceito do espectáculo é deveras interessante: depois de contar uma história tão auto-biográfica quanto possível e de forma cronológica, Sufjan apresentava a respectiva canção que escreveu sobre o sucedido. Contou-nos que, aos seus 14 anos, desenvolveu uma amizade com uma menina de 18 e que, apesar da diferença idades, passavam a vida juntos: quando iam ao shopping, era habitual – pois – acompanhá-la enquanto esta experimentava vestidos. Sufjan contava que, pela força da idade e por não possuir o dom do elogio, nunca chegou a elogiar convenientemente os vestidos da sua amiga, como lhe seria esperado. Mais vale tarde que nunca: “The Dress Looks Nice on You”, incluída em Seven Swans, o mais recente disco de originais de Sufjan, foi apresentada como sendo a canção escrita para dizer aquilo que nunca disse nos seus 14 anos. Surgiu também a delicadíssima “Romulus”, a comovente “For the Widows in Paradise, for the Fatherless in Ypsilanti” (onde se repete algumas vezes a frase mais sincera do mundo, “I’ll Do Anything For You”) – a canção que remonta aos tempos em que Sufjan jogava futebol – e aqui se destrói um mito – e parou numa cidade onde só parecia vislumbrar mulheres e crianças - executada no banjo, “Size too Small”, uma referência ao fato de dimensões curtas que levou no dia do casamento da sua amiga, e ainda “Seven Swans”. Toda a evolução biográfica do “teatrinho” – apresentado ora na guitarra, ora no banjo - construído por Sufjan Stevens levou-o a apresentar uma canção sobre a altura em que deixou o Michigan em direcção a Chicago, para se tornar aquilo que é agora: alguém que aproveita todas as coisas pequenas, para construir grandes canções. Para o nosso próprio bem.
“I let myself fall / I let myself fall / I let myself fall / In love with you”. Foram estas as primeiras palavras que se ouviram da boca de Rosie Thomas alguns segundos depois de entrar em palco e se sentar ao piano, de costas viradas para o público – facto pelo qual se desculpou prontamente. Continua tudo como havíamos imaginado: a voz de menina, o imaginário cor-de-rosa e a sensibilidade à flor da pele, os trejeitos vocais adocicados, a doçura estonteante, a simpatia e toda a timidez que resulta num tom de voz quase infantil. No fim de cada canção agradece com repetidos abanares de cabeça, um “thank you” quase amedrontado e algumas gargalhadas quase histéricas – que muito fizeram rir quem a ouvia. Alternando entre a guitarra e o piano, Rosie Thomas viajou especialmente por Only With Laughter Can You Win, mas não esqueceu When We Were Small, o seu disco de estreia. As suas canções, delicadas visões em forma de sonhos, estão repletas de pequenas frases, pequenas histórias de esperança, de mudança, de amor. Em “You and Me” fala-nos de como a união entre duas pessoas pode salvar vidas: “You and me / Me and you / There is so much that we’ve been through / Through it all I’ve come to understand God’s love”. Em “Red Rover” percorre-se histórias de infância e da admirável capacidade de se perdoar e deixar as coisas acontecer: “Don’t let her grow up to be like her mother / Heart so unconvinced and a world so undiscovered / Asking for forgiveness and not knowing how to forgive”. “I Play Music” é canção eminentemente auto-biográfica onde Rosie Thomas confessa ter tentado tudo até descobrir que a música era o seu único caminho: “So I play music, that’s what I do / And when I sing I lose myself / There’s nothing more I would rather do / Lord knows I’ve tried everything Else”. Sempre divertida, Rosie Thomas confessou que tentou basket mas que não conseguia manter o drible, tentou o voleibol mas que não ficou muito satisfeita ao saber do tipo de roupas que se usavam, a agricultura e o ballet. Levantou-se e mostrou, com passos gentis e rodopios, tudo aquilo que conseguiu aprender – e riu-se várias vezes com o seu próprio desastre. O público ria também, encantado com a sua doçura, visivelmente agradado com o concerto. Surgiram também “Wedding Day”, “Farewell”, “Gradually”, “Bicycle Tricycle” e uma versão – pois claro – de Joni Mitchell, a sua maior influência. A música de Rosie Thomas não colmata a ausência, mas atenua. E de repente, aquilo que se chamou de Festival para Gente Sentada mais parecia um Festival para Gente Abraçada - a contemplação a Rosie Thomas foi merecida. Afinal de contas, havia acabado de transportar uma boa parte da plateia para um estado onde se sonha acordado.
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