O genial teledisco que os Roots filmaram para ilustrar ”What They Do” sobrevive ao tempo como uma instituição sem concorrência no seu campeonato. Estará ainda por inventar qualquer coisa que, com tamanha classe e lucidez, coloque a nu parte significante dos clichés comuns que dominam (e que tornam às vezes ridículo) o imaginário visual do hip-hop talhado para alta rotação na MTV. Sem ser um tema extraordinário, ou digno de marcar presença entre os clássicos dos Roots, “What They Do” servia, contudo, como via verde para um momento descontraído do MC residente Black Thought, cujo flow cai bem em conjunto com o groove da faixa e a razia trocista do teledisco. Também é verdade que a maravilhosa paródia já se encontra um pouco datada (não contempla as novidades de 50 Cent), mas alguns dos traços caricaturados são intemporais: a abundância irreal de top-models, a mansão luxuosa alugada por dois dias, a incógnita que encobre a viagem de um carrão que ninguém sabe ao certo para onde se dirige. À sua maneira, “What They Do” funciona como o antecipado anti-”Hypnotize”, legitimo rei dos telediscos incidentes em todos os excessos do hip-hop ou, se preferirmos, a afirmação consertada por Notorious B.I.G. e Puff Daddy (agora P. Diddy), no sentido de mostrar ao mundo que ninguém no meio vivia tão luxuosamente quanto a parelha de Brooklyn. O tiro nem sequer lhes saiu pela culatra, mas, ao que parece, saiu.

Por sua vez, a credibilidade à prova de bala, que torna praticamente imune a label Stones Throw, preserva-se com o recurso às mesmas propriedades desintoxicantes de “What They Do” dos Roots (e à ética do próprio colectivo). Essas que estabelecem o afastamento certo face aos golpes mais óbvios e desgastados do hip-hop (que bem precisa da reinvenção). Todo esse brio e militância transborda em In Living the True Gods, segundo DVD centrado nos telediscos e vídeos caseiros arquivados na casa construída por hiperactivos iluminados como Peanut Butter Wolf, Madlib e J Dilla (sempre presente, mesmo após ter partido). A magia pode ser facilmente constatável no sombrio “Monkey Suite”, ataque aos yuppies encabeçado pela entidade bicéfala Madvillain, ou na fantasia graffiti encarrilada no colorido e alucinado “Take it Back” de Madlib. Ambos transcendem a ideia simples de teledisco, funcionando como curtos filmes de animação dignos de uma avaliação que não passe sequer pela música. Claro está que tudo isto contribui e muito para a cimentação de uma valiosa dinastia hip-hop, reconhecida não só pela regularidade dos seus fabulosos discos, como pela visão artística que serve de invólucro a cada uma das peças de tão apaixonado e generoso catálogo. Cada conteúdo tem o veículo que merece e assim acontece também com a Stones Throw.

E todo a dinastia tem o seu mito máximo, sendo que, neste caso, o estatuto é totalmente merecido porque recai sobre alguém tão incomparável como J DIlla, o prodígio de Detroit e “produtor predilecto dos produtores” que, embora tenha falecido jovem (com apenas 32 anos), deixou um legado de substância e pistas úteis para produtores futuros, que permanece bem assente sobre marcos como Ruff Draft (alimento cru para todas as crews) ou Donuts. Por aqui, é possível encontrá-lo no retrato de família “Move”, ao lado de Oh No e Roc C, e numa entrevista de bastidores em que confessa a admiração por Wu-Tang Clan e James Brown, com uma simpatia que só torna mais triste a sua perda. Como se isso não bastasse, In Living the True Gods reserva espaço para o teledisco de “Nothing Like This”, cereja no topo do bolo, que, como pano de fundo para a voz de J Dilla perdida num eco de sonho, conta com uma história de amor entre girinos entregues a peripécias subaquáticas, entretanto transpostas para um cenário de caos instalado por um titânico cone de gelado. Nem a própria VH-1 resiste ao delírio de “Nothing Like This”, que tem sido ocasionalmente transmitido na estação nostálgica. Os verdadeiros Deuses agradecem.

Stones Throw
Flur