ENTREVISTAS
Bill Callahan
Quem Callahan, consente
· 13 Jul 2009 · 18:50 ·
O funeral de Smog

Durante o longo período em que manteve o nome Smog como álibi, Bill Callahan expôs pedaços obscuros da psique, que alguém com mais prudência não partilharia com o diário nem num desabafo de bêbados. Fê-lo de forma múltipla e geralmente crua: “Your Wedding” (1993) anuncia vingança de cornudo no azar de 12 palavras; “Be Hit” (1995) defende que mulher amada pede porrada; “Little Girl Shoes” (1997) revela uma atracção muito suspeita. E estes são só alguns dos temas simbólicos num cancioneiro tão maldito como aberto a todo o tipo de interpretações. A história tratará de as reler.

Oscilando entre a lo-fi perturbada e uma americana com temperamento próprio, Bill Callahan evitou deixar no lugar do réu um músico facilmente identificável. As acusações recaíram todas sobre Smog, e o plano de evasão não poderia ser mais perfeito: a sua marcha fúnebre (“One Less Star”) estava pronta desde 1993, e os rios, úteis à ocultação dos segredos e pecados, traçados por todas as canções. A saga criminosa e uma das obras maiores da década anterior permanecem em 10 + 1 (o disco de transição A River Ain’t Too Much Love) álbuns que o tempo ainda demorará a digerir.

Compositores com passado procuram canções com futuro

Bill Callahan renasceu no coração da baleia e galopa agora num cavalo que aspira a ser águia. A adopção do nome próprio, assumida em Woke On a Whaleheart (2005), coincidiu com o aprumar da canção, que, a partir daí, incluiria arranjos de primeiro nível e uma lucidez impossível na temporada tóxica de Smog. Com a chegada, já este ano, do excepcional Sometimes I Wish We Were An Eagle, confirma-se uma nova abordagem tão fértil quanto recompensadora. Só assim se chega ao sumário contemplativo de “Jim Cain”, à epifania de “Eid Ma Clack Shaw” (tema incontornável) ou à constatação de que toda a fé tem o seu tempo, tal como o escutamos no brando repousar de “Faith / Void”. Todos reforçam a blindagem de Sometimes I Wish We Were An Eagle como clássico prestes a acontecer. Arisco e muitas vezes telegráfico, Bill Callahan respondeu a um conjunto de perguntas do Bodyspace.
No que respeita aos arranjos dos dois últimos discos, em que aspectos divergiu a colaboração com Neil Hagerty da mantida com Brian Beattie?

O Neil Hagerty pegou na minha demo e desenvolveu os arranjos em total reclusão. Não quis sequer falar disso. Com o Brian Beattie falei muito mais e encontrámo-nos em diversas ocasiões para avaliar as primeiras versões dos arranjos, etc. Estive muito mais envolvido no conceito do novo disco como um todo.

Gosto de como “Jim Cain” soa na actuação a solo em Colombus, Ohio, só com voz e guitarra. Essa versão é a que mais se aproxima da que tinhas, antes de ser enviada para Brian Beattie?

Creio que a versão a solo de “Jim Cain” não é exactamente igual à que o Brian recebeu, porque, quando ele escutou a canção pela primeira vez, eu já tinha adicionado baixo, guitarra e bateria.

Aprecio a forma como a letra de “Jim Cain” é representada no interior do disco. Achas que era especialmente importante como “plataforma de lançamento” para as canções seguintes?

Essa é uma boa forma de a descrever. És a primeira pessoa a mencionar que a letra se encontra enclausurada. Ninguém reparou que não a imprimi na totalidade, como é meu hábito.

Com a chegada de mais álbuns atribuídos ao teu nome, acreditas que os teus concertos poderão vir a ser compostos apenas por temas gravados como Bill Callahan e alguns de A River Ain’t Too Much Love, disco de certa maneira de transição? Esse cenário agrada-te?

Eu ainda adoro tocar todas as noites algumas das canções antigas. Já perdi a conta às vezes, por exemplo, que toquei “Cold Blooded Old Times”, mas nunca deixa de ser excitante.


Na preparação para esta digressão, foram repescadas duas ou três músicas do baú, para uma estreia ao vivo, como aconteceu em ocasiões anteriores? Ou sentes-te mais entusiasmado com o novo material e como esse pode funcionar com a nova secção de cordas?

Durante esta digressão, estou mais concentrado em adaptar as músicas ao ambiente das salas de espectáculo e à disposição da banda, e menos na possibilidade de recuperar alguns temas obscuros.

Sinto curiosidade em relação ao facto de experiências passadas terem contribuído para uma maior abertura a colaborações. Algo como a Drag City Supersession ou o trabalho com Jim O’Rourke incentivou-te a procurar o envolvimento de outros músicos nos teus álbuns?

Tornei-me mais receptivo à ideia de colaboração, desde que senti a certeza firme de que, aos meus olhos, era capaz de fazer boa música sozinho. A partir daí, estava preparado para receber os outros no meu processo.

Agora que já passaram alguns meses desde o lançamento de Sometimes I Wish We Were An Eagle, constataste alguma diferença nas reacções? Este segundo álbum com o teu nome contribuiu para que mais pessoas aceitassem o tipo de música que tocas agora?

Todos gostam deste. Houve velhos amigos que vieram do nada para me dizerem que adoram o disco, pessoas de quem já não sabia nada há uma década ou coisa parecida.


Até que ponto estiveste envolvido na escolha de materiais promocionais, como aquele poster cheio de diamantes? Acreditas que uma das vantagens de uma relação tão duradoura, como a que manténs com a Drag City, é também a capacidade de adivinharem a arte que procuras para cada novo disco?

Bem… Fui eu que escolhi o poster. Era uma peça do Jaime Zuverva, que toca guitarra no meu disco e que também é pintor e faz colagens.

Que novidades tens do disco ao vivo? Que tipo de músicas serão incluídas?

Acabei de misturá-lo com o John. Deve sair em 2010. Acho que ficou óptimo.

Considerando o facto de só teres trabalhado com pautas de música, quando gravaste a cover de Judee Sill “For a Rainbow”, procuraste explorar uma versão que reflectisse a maneira como ela o teria feito ou como achas que ela gostaria de encontrar a sua canção?

Eu não tentei fazer a música seguindo essa primeira possibilidade. Eu tinha uma versão da música, que representa mais ou menos a maneira como a imaginava a tocá-la, mas era tão fácil ir por aí… Por isso, tentei aprofundá-la, esticando-a lentaaaaaamente como um graaaaaande eláááástico, que a certa altura se parte.

Podes referir alguns daqueles “50 filmes que já viste vezes sem conta”?

Eu podia viver dentro do Rocky.

Não sei bem porquê, mas “Fly Like An Eagle” da Steve Miller Band recorda-me o título deste novo disco. Gostas da sua música?

A sua música faz-nos sentir bem. Nesse sentido, é um pouco mágica. Enfeitiça-nos.

Costumas ver o teu nome confundido com o do treinador de futebol americano?

Apenas por homens de negócio saloios, caso quando se liga para um canalizador ou parecido.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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