DISCOS
Drop the Lime
We Never Sleep
· 21 Dez 2006 · 08:00 ·
Drop the Lime
We Never Sleep
2006
Tigerbeat 6


Sítios oficiais:
- Drop the Lime
- Tigerbeat 6
Drop the Lime
We Never Sleep
2006
Tigerbeat 6


Sítios oficiais:
- Drop the Lime
- Tigerbeat 6
Nova Iorque fora de horas amplamente vistoriada pela perícia de insider capaz de condensar nela uma variedade inacreditável de sonoridades urbanas.
Após decretado o estado de sítio forçado pelo terramoto musical com epicentro em Buraka (Som Sistema), a resposta a um qualquer convite para saída nocturna, em Lisboa ou periferia anexa, passou a ser Yah em vez de Ya. O “h” representa muito mais do que um sublinhar afirmativo – dita, por si só, que os braços cruzados são obrigados a permanecer em casa (ao lado de postura séria e expressão facial gélida), declara morte ao tédio e ateia lume ao rastilho sensorial que, dentro de meia hora, conviverá febrilmente com um som de rua atiçado por uma figura feminina a sovar as suas próprias nádegas em jeito de provocação. Instala-se com o h um imprudente sentimento ’se pimpin (expressão cunhada pelo colega Rodrigo Nogueira e registada em http://www.urbandictionary.com/define.php?term='se+pimpin'&defid=2086824). Em sintonia com o meio imediato e com uma audiência ausente, o narrador Tony Wilson diria, entre o oceano de sub-graves de um imaginário 24 Hour Party Dubsteppers:O público não está a aplaudir o músico, mas a viciosidade do loop ou groove. Eis que, no uso atribuído a essas armas de destruição massiva, é digno de menção honrosa este We Never Sleep, elaborado sumário de música urbana pós-milenar que, incompreensivelmente, parece ainda ser insuficiente à ascensão de Luca Venezia (aka Drop the Lime) à divisão de produtores de topo onde já se devia encontrar.

Por enquanto, vai bastando a imponência multi-colorida do segundo longa-duração We Never Sleep para que ao projecto Drop the Lime já sejam dedicados artigos de corpo inteiro e não os curtos perfis dos tempos em que Nova Iorque se media a cada porção de sete ou doze polegadas impressas em vinil – somando quantidade de sobra à afirmação de Venezia como mago da nobre arte de revitalizar músculos adormecidos através de electrónica que só desperta quando certa de que triunfará. Pois se, em limitado regime de split ou single, a incisão dos loops-granada tinha de ser muito mais imediata, We Never Sleep oferece o espaço necessário à revelação ininterrupta de um imenso arsenal encadeado como digressão cosmopolita (o próprio autor admite a influência berlinense e britânica) alimentada por incansável pulmão mesclado que torna indistinguíveis as incompatibilidades entre géneros (ou escolas) inalados e combinadamente exalados.

A atitude e mote para tão explosivo empreendimento pode até ser a vontade de confrontar o exclusivismo - que normalmente se associa ao techno mais cerebral - com uma infinitamente divisível massa formada a partir de substancial parte dos fluxos sonoros mais cativantes da última década vivida abaixo do solo da cidade. E nessa vertente, só escapa mesmo a lima entre as linhas de uma rede que colhe de tudo um pouco e que ainda lhe acrescenta um delicioso recheio Nova Iorque. O cambalear rasgado do grime torna-se ainda mais temível quando transmutado com a atitude guerrilheira de Brooklyn, enquanto que a linha de cow bell, pertencente à magnificamente sufocante “Hot Sauce Grillz”, requisita à Hefty de Chicago aquele inimitável fulgor rítmico serpenteante (que marca o mais recente disco de Eliot Lipp). Pelo modo como faz ascender a temperatura, com um boom boom boom grandioso e apto a sincronizar-se com pulsação colectiva, "Full Moon Rising" quase soa como implacável hino à nudez. Quando a aurora parece prestes a condenar a estabilidade vampírica do disco, rebenta uma “Skyline Fantasy” que ousa aliar um baixo muito !!! com um house que adia pela enésima vez o regresso a casa. É muito tilintar qualitativo para uma cabeça só.

Numa altura em que já acusava em demasia as mazelas acumuladas por excessos, o realizador Luis Buñuel confessava que dispensava a virilidade, se Deus lhe concedesse a renovação milagrosa dos pulmões e fígado para que pudesse continuar a apreciar os charutos e as suas predilectas margueritas. É sabido que o ano foi farto em estímulos subterrâneos e prazeres marginais, mas reclamam por um derradeiro cartucho de resistência os tímpanos que se predispuserem a receber We Never Sleep, que, muito provavelmente, será dos mais injustiçados discos do presente ano. Apesar da inscrição tardia em competição, We Never Sleep completa e faz tremer a ordem ao ramalhete de soberbos discos nocturnos privilegiados nestes últimos doze meses. De tal forma que as vinte e quatro horas sem dormir possam ser insuficientes ao labor suado de discos que pretendam igualá-lo ou superá-lo em termos de efeitos de anfetamina desregulada. Assim apetece aderir à insónia da cidade que nunca dorme.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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