DISCOS
Les Georges Leningrad
Sangue Puro
· 04 Dez 2006 · 08:00 ·
Les Georges Leningrad
Sangue Puro
2006
Tomlab / Flur


Sítios oficiais:
- Les Georges Leningrad
- Tomlab
- Flur
Les Georges Leningrad
Sangue Puro
2006
Tomlab / Flur


Sítios oficiais:
- Les Georges Leningrad
- Tomlab
- Flur
Há muito que o rock petroquímico tornou o ar desta latrina irrespirável – voltam os George Leningrad a oferecer as costas ao mundo e a abraçar a minoria que lhes é devota.
Fosse alguém a acreditar no desviante filão dos mais que idiossincráticos Georges Leningrad, e as linhas que se seguem serviriam como consideração sobre o vazio ou a uma nova pele do trio que, em tempos, declarou que se privaria de um membro a cada disco, até que nenhum sobrasse e isso os obrigasse a recomeçarem de novo. Se as contas não me falham, Sangue Puro equivale a novo sangue. Partindo do principio que há matemática minimamente aplicável a um bando que assume uma intrínseca natureza auto-destrutiva com a mesma convicção que atribui fundamentos desiguais entre si a cada disco que desova. Por ser falaciosa qualquer verdade veiculada pelos Georges Leningrad, tentar um qualquer enquadramento biográfico para o trio canadiano é um risco obsoleto. Sabe-se que este é o terceiro de três álbuns adoptados, em circunstâncias bizarras, por um culto que não passa sem o auto-proclamado rock petroquímico dos Leningrad.

Ao enquadramento de farsa junta-se, por esta altura, três fotografias que supostamente identificariam os membros afectados por uma declarada fobia de tudo o que é mediático – onde outrora se encontravam três peúgas em representação de rostos sub-humanos, pode-se ver agora três figurantes de um remake de Scarface que nunca chegou a filmar Abel Ferrara nos seus tempos mais marginais. A máscara improvisada para ocultar um electro de latrina, permanentemente condenado a ser castrado por um comité inquisidor formado por graves fracturas expostas na repetição de loops e linhas de teclado. O lugar comum - que possa escolher para se abrigar a repetição facilmente lúdica - é precisamente aquele que os Georges Leningrad tentarão evitar (ou deformar) a todo o custo - urinando indeterminadamente aditivos ácidos que ombreiam com a imprevisibilidade de uns Violent Onsen Geisha ou recuando até ao indomesticado free-riot típico dessa glória por reconhecer que são as God is My Co-Pilot.

A revelação herética que proporciona a essencialmente tribal “Eli Eli Lamma Sabachtani” esclarece peremptoriamente que o deboche e delírio são direitos imediatos dos Leningrad, mas ninguém deixará de reparar que há um qualquer azedume na forma como alguém entoa puta entre a catadupa de palavras que formam aquele versículo demoníaco. Fica a sensação de que, ao som de Sangue Puro, a legitimidade adquire o aspecto de um global e berrante sinal verde que satisfaz os caprichos de inveterados do electro mais selvagem, tal como os apreciadores de um pós-punk mais descomplexadamente excêntrico. Na orientação à partida incógnita que estabelecem para cada uma das dez faixas em Sangue Puro, os Georges Leningrad permanecem iguais a si mesmos – e isso é positivo.

Através do contacto com o volume arrebatador de precursão, que transporta entre as bossas o impiedosamente ímpio Sangue Puro, entende-se que não serão só os Liars a acreditar que as baterias ainda não morreram. Contudo e sem querer desprestigiar o trio de Angus Andrew, é por demais óbvio entender que bastaria a dorsal trilogia, que formam as faixas “Sangue Puro”, “Eli Eli Lamma Sabachtani” e “Lonely Lonely”, para ficar a saber de que lado da rede fica o arrojo e vontade de provocar. Não parece haver condenação externa que acagace os Georges Leningrad e os demova de uma maníaca abordagem à música (será?) que mutilam caprichosamente, privando-a de parâmetros sofisticados e outras intervenções estéticas suavizantes - e, apesar de cambalearem pateticamente “Scissorhands” e a interminável “The Future for Less”, a assumpção disso é cumprida em estilo.

Embora insuficientemente em termos de clássicos que possa acrescentar ao estranho espólio do trio, Sangue Puro aposta sempre nos números impares números negros da roleta – desprezando por completo a tendência actual do mais exportável rock canadiano, deturpando-se voluntariamente em anomalias várias (que podem ser singles de sucesso em Marte), exibindo um comportamento psicótico que procura desesperadamente estigmatizar o objecto da sua arte com os atributos que podem apenas resultar do colapso. Apesar da imponência vigorosa que insinua o seu título, Sangue Puro é um defeituoso e mal-cheiroso gadget que o diabo importou de uma Ásia recôndita. É estúpido e contagioso – caldinho agridoce de toda a mucosidade e cidra que descartaram os Liars na transição de They Were So Wrong, So We Drowned para o mais polido Drum’s not Dead. E não é todos os dias que se escuta tamanha coragem a um disco empenhado em naufragar nas águas incatalogáveis que escolhe para a sua proa.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

Parceiros