DISCOS
Swearing at Motorists
Last Night Becomes This Morning
· 07 Jun 2006 · 08:00 ·
Swearing at Motorists
Last Night Becomes This Morning
2006
Secretly Canadian / Flur


Sítios oficiais:
- Swearing at Motorists
- Secretly Canadian
- Flur
Swearing at Motorists
Last Night Becomes This Morning
2006
Secretly Canadian / Flur


Sítios oficiais:
- Swearing at Motorists
- Secretly Canadian
- Flur
O excesso de artifícios sussurra lamentos sobre a sua existência maldita à porta de uma rolote de latão que, por entre as brechas do amontoado de metal, deixa escapar o som que produz uma guitarra acústica atordoada e uma voz que acusa flagrantemente o consumo sobredoseado de erva. Há-de morrer à espera o tal excesso se achar que ainda será merecedor de uma infiltração meramente auxiliar nos dotes de produção transparente de Last Night Becomes This Morning - tese em defesa da moderação espontânea do zelo que tantas vezes impõe demasiados acrescentos ao que pertence destituído de maquilhagem. Apesar dessa comodidade ser parte inerente da genética que move um duo forçosamente restritivo em termos instrumentais, os Swearing at Motorists anunciam o seu regresso aos álbuns com a atitude empreendedora e refrescante de quem enceta aqui uma nova etapa (o título do disco confirma-o). Sem prescindirem da sofisticação que não se encontra ao discos que parecem ter tido uma arca frigorífica como estúdio, a parelha de Dayton recupera em triunfante miscelânea dois métodos lendários do rock americano: a gravação itinerante que adoptou Neil Young ao elaborar Time Fade Away em plena digressão e o optar por versões demo das músicas em detrimento das produzidas - resolução que fez de Nebraska, de Bruce Springsteen, o documento de época abrangentemente reconhecido e aclamado. Preencher metade da sombra que produz a grandiosidade de ambos esses discos leva a que, de imediato, se suspeite que Late Night Becomes This Morning pode bem a ser um daqueles clássicos menores que só assumem anos depois.

O facto de ser um disco de transição contribui para que, com outro à vontade, o nome Swearing at Motorists já se arrisque ao papel do adjectivo que define um lo-fi bem aparecido e trabalhado, um modo de estar que militantemente recusou várias propostas de colossos da indústria. Até porque a Secretly Canadian cresceu com a estadia invulnerável dos SAM e vice-versa. John Peel antecipara todas essas qualidades ao duo que chegou a convidar para as suas lendárias sessões. Com isso, Peel premiara uma autenticidade que não se adquire através do convívio planeado com as pessoas certas. Autenticidade essa que é impossível de ser fabricada e imposta a pepitas mundanas como “Still Life of Bottle Rockets” ou “This is not how Forever Begins”, que reduz guitarra acústica e voz em estado bruto à doce simplicidade que exige o trocadilho do refrão She is mad.../ Madly in love with me (entoado com a embriaguez da relação que descreve). É de tal forma milagroso o maneio de tão escassos meios, que pouca importância assumirão os rodeios técnicos passíveis de serem geridos em torno do âmago da canção. Last Night partilha da economia incisiva que já havia tornado The Last Romance num dos melhores discos dupla Arab Strap. Ao que parece, é sintomático.

Last Night Becomes This Morning flúi em clímax continuo por nunca sobrar tempo entre fôlegos que permita a um apuramento de responsabilidades para os corações destroçados (mesmo quando introspectivo e cantado à luz de um candeeiro de beco, o disco não reduz a velocidade cruzeiro). A sucessão que descreve o título está directamente ligada às músicas que se atropelam entre si, a relatos atabalhoados que pisam os calcanhares a episódios de estrada. Relatos tão fieis quanto os que permite a memória a recuperar de ressaca - a que reúne os fragmentos como para enquadrá-los num puzzle que tem como primeira peça a espuma à superfície da primeira cerveja e, como última, a visão turva de rostos pouco familiares e sem aparente preocupação perante o caso clínico que pode estar prestes a acontecer. Sobra como antídoto à ressaca a coordenação que é recuperada através de uma terapia à base de riffs infalíveis, baladas curativas e o entendimento telepático entre guitarra e bateria que parecem gozar de um matrimónio duradoiro abençoado por uma lubrificação invejável.

Inveja será o sentimento a abater-se como uma nuvem cinzenta sobre Ryan Adams no momento em que possa vir a contrapor a sua ambição utópica ao savoir faire estupidamente natural que vale aos Swearing at Motorists a paternalidade conjunta daquele que, para já, é o mais sólido aglomerado de sketches que 2006 conheceu. Fazer de meros esboços, autênticos e intemporais monumentos costuma ser tarefa de gente de barba longa. Ceda-se, em abono da despretensiosa grandeza de Last Night Becomes This Morning, um benefício da dúvida ao emblemático bigode que Dave Doughman – parte dominante do duo – vai refinando com um engenho apenas comparável ao seu talento para a escrita de canções.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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