DISCOS
Dave Miller / Miller + Fiam
Mitchells Raccolta / Modern Romance
· 19 Mai 2006 · 08:00 ·
Dave Miller / Miller + Fiam
Mitchells Raccolta / Modern Romance
2005 / 2006
Background / Expanding Records


Sítios oficiais:
- Dave Miller / Miller + Fiam
- Background
- Expanding Records
Dave Miller / Miller + Fiam
Mitchells Raccolta / Modern Romance
2005 / 2006
Background / Expanding Records


Sítios oficiais:
- Dave Miller / Miller + Fiam
- Background
- Expanding Records
A aparência afável de Dave Miller podia facilmente valer-lhe o papel de um médico estagiário numa soap-opera australiana, mas Miller preferiu a música à carreira em televisão e, em pouco tempo, tornou-se um caso singular da electrónica que vai sendo promovida à escala global a partir do continente marsupial (que, tem como motor para esse efeito, a excelente publicação Cyclic Defrost [http://www.cyclicdefrost.com/]). O enquadramento biográfico é mais ou menos este: ocupou-se o destino de encarregar Jan Jelinek de descobrir Dave Miller entre a micro-cena de Perth, uma das cidades mais isoladas do globo, e importá-lo para a Europa como se fosse uma especiaria. Quando as coisas apontavam para Miller vir a integrar a ~Scape (por apadrinhamento de Jelinek), eis que Andy Vaz, também ele peixe na água da electrónica, recruta o benjamim para as fileiras da sua Background Records.

Não será todos os dias que o nome de alguém com vinte e poucos anos induz a que seja ponderada a criação de um adjectivo que defina tão fielmente quanto possível o carácter inédito do seu engenho. Isto porque tem vindo Miller a ser prodigiosamente associado a um breakbeat de conduta minimalista, a uma sonoridade fragmentária assente sobre a apropriação referencial de ritmos avulsos - sem que isso se assuma como façanhice erudita ou peque por um sedentarismo que estagne sobre uma base imediatamente dançável.

Seja efectuada uma escuta atenta dos primeiros discos do australiano lançados pela Background e o eco obtido é o de um jardim onde cada semente germina atempadamente (não será por acaso que “raccolta” significa primeira colheita em italiano, tal como revela o próprio em entrevista). Por influência de um tratamento ocasionalmente arrítmico e de uma abençoada ingenuidade que se ocupam de tudo combinar num mesmo receptáculo digital, o direito ao esplendor surge com a vivacidade silvestre que vai colorindo Raccolta. Isto à medida que se tornam noutra coisa estratosférica os grooves recuperados a influências musicais dispersas entre o jazz e uma electrónica caracteristicamente europeia - sendo que, neste caso, apontar nomes específicos incorre de resultar em mera especulação. Preferível é observar Miller enquanto trata o jardim como se fosse um bonsai que, além dos cortes, é também merecedor de adornos.

Enquanto fruto da maturação obtida com os dois primeiros EPs, o primeiro longa-duração Mitchells Raccolta alcança subtilmente uma densidade qualitativa passível de ser interiorizada como sonho, filme imaginário ou estado de espírito por tempo indeterminado - impedindo isso de ser subserviente a uma só funcionalidade. Trespassa-o uma fluidez que merece ser avaliada ao volante de um carro, que, aqui, pode mesmo ser tratado por “bote”. E daí pode este conselho nem se aplicar a todos os carros. Acabou o sistema de som do meu por não se dar bem com o trepidante e subterrâneo ascendente de graves de “Conversations Kill”. Em todo o caso, Mitchells Raccolta é eficaz enquanto simulacro sazonalmente diverso das referências que aproveita para si. Nessa vertente, encontra-se próximo de uns Nightmares on Wax da primeira fase Warp. Fora disso, faz de Miller um talento a ter em conta.

Tudo que verdejava no trabalho de Miller a solo, passa, em Modern Romance a adquirir um aspecto elegante que deve em partes iguais a um alisamento lounge e a um consistente sustento jazzy (assinalável a cada vez que se emula a intervenção do contra-baixo). Não é sequer limitativo o mote que rege os lançamentos da Expanding Records: música electrónica sem vocalizações. Isto quando trata a química entre Dave Miller e Harry Hohnen – ele que é Fiam – de preencherem com digitália vária tudo aquilo que seria bem menos sugestivo se transportado na voz de uma qualquer diva do trip hop. Além disso, qualquer verbalização constituiria excesso quando imposta a um disco que necessita de disponibilizar espaço que valha a uma produção que virtualiza espaços ora directamente evocativos (Veneza está escancarada no acordeão de “Martino’s”), ora fisicamente vagos (a desorientada “Wise Coward” descreve a reaquisição de sentidos nos seus tons dissonantes). Os ritmos são sincopados conforme a pulsação resultante de cada momento - “Too Often” encurta o espaço entre batida e o metal dos pratos, enquanto tenta reconstituir a sensualidade a uma qualquer ocasião apenas com piano. Modern Romance descreve o sentimento a dois aficionados por música, agora a braços com o dilema que resulta de um permanente flirt com a linha do horizonte de qualquer cidade cuja luminosidade seja propícia à paixão. Talvez porque se escuta parte da noite espanhola à sua boémia, desde cedo me pareceu ser este o disco certo para convencer Ernest Hemingway – rejuvenescido e transporto para a actualidade – a aliar a escrita à pontual entrega a um laptop. Os sinos dobram por Modern Romance.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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