DISCOS
The Lucy Show
Mania
· 04 Mar 2006 · 08:00 ·
The Lucy Show
Mania
2005 [Reedição]
Words on Music


Sítios oficiais:
- The Lucy Show
- Words on Music
The Lucy Show
Mania
2005 [Reedição]
Words on Music


Sítios oficiais:
- The Lucy Show
- Words on Music
À falta de melhor pretexto para progredir na ordem numérica que lhe orienta o catálogo, a Words on Music vai recuperando aos anos 80 discos descatalogados que, na óptica da label, permanecem ainda por celebrar. Na senda de evangelizar quem aprecie os nomes contemporâneos que editam pela Words, procura-se fazer justiça a um objecto amaldiçoado por condicionantes próprias do seu tempo – neste caso, a orfandade súbita que por duas vezes levou a que os Lucy Show ficassem sem label ou patrono que ateasse a chama ao buzz que vinham a gerar. Apesar da péssima capa, Mania é digno de ser lustrado, pois iliba-o uma fluida alternância de estilos de denunciar a década de origem e, além disso, contém armazenada uma inoxidável power pop que a Vagrant tratou de rentabilizar durante a década passada. Porém, daí a ser merecedor de uma edição comemorativa que, além de incluir o disco na íntegra, adorna-o com raridades e um videoclip, vai o intervalo entre a fronteira do Canadá e México. Isto quando nem sequer metade dos aditamentos garante peculiar interesse que não documental ou o tradicional – e tão nosso – “encher de chouriços”. Mania funciona bem melhor enquanto artefacto bruto limitado a dez faixas. O excesso que traz acumulado alimenta a suspeição de que o Lucy Show não sobreviveria ileso a muitos mais intervalos. Assim, vai-lhes valendo o mito.

Parece apostada a mecenática label, que agora reedita Mania, em promovê-lo como tijolo útil à consolidação da ideia de que o indie já tem direito a um espólio a que se recua em modo RTP Memória (como que para compreender melhor o que se lhe seguiu), à divisão em velha e nova escola (que desde há muito é aplicada ao hip-hop). Assim já acontecia com a reedição dos discos dos For Against, com a diferença de que os últimos soavam a banda americana sob cerrada influência brit, enquanto que, inversamente, os Lucy Show – sedeados em Londres durante o activo - acusam em demasia o gosto pelo college rock norte-americano (talvez magnetizados pelo apego às raízes canadianas). Entre afamadas performances na capital inglesa e a predilecção iluminada de John Peel pelo single “Million Things”, foi ganhando ritmo um ping-pong de reputação que haveria de cessar abruptamente sem que os Lucy Show viessem a recolher louros a qualquer uma das margens do Atlântico. A versão revista e aumentada de Mania incube-se de descrever um glorioso colapso, que se deveu muito mais ao ingrato rumo ditado pela indústria do que propriamente a implicações geradas pela música em si.

Os factores externos à música parecem, aliás, ter sido os mais prováveis pregos a pressionar o tampo contra a base do caixão. Isto porque o dom para a escrita de canções – quimicamente desenvolvido por Rob Vandeven e Mark Bandola – não se estende à fotogenia das imagens que comporta Mania. Quase se parece o duo dinâmico com um par de astrólogos alucinados acabados de chegar a um bar mitzvah. Não surpreende portanto que o segundo longa-duração dos Lucy Show demonstre descomplexadamente os traços musicais que dele fazem um acervo de hinos reivindicativos do direito à alienação (ora firmamente rebeldes, ora introspectivos). Mais por isso, do que propriamente por apropriação dos moldes renunciados pela simplicidade do género, pode-se mencionar o pós-punk enquanto padrão no caso dos Lucy Show (que, ainda assim, acusam uma aparência demasiado clean para a categorização). “View From the Outside” nem sequer dispõe de uma linha de baixo particularmente empolgante (como manda o pós-punk), mas conta com um lancinante riff capaz de trespassar a monolítica presença de uma bateria limitada a um compasso que se programaria a uma caixa de ritmos em 2 minutos. Pior mesmo só “New Message”, que, apesar da presença da trompeta de Roddy Lorimer (colaborador dos Waterboys, Spiritualized, Blur), quase se assemelha ao que poderia ter resultado de uma encomenda publicitária da Martini dirigido à dupla Bill & Oates (She’s a maneater...). Escutar-lhe os anos 80 chega a ser mórbido.

O romantismo fica bem à Words on Music, mas não representará Mania uma epifania ou ressurreição que leve os joelhos ao contacto com o chão. Em vez disso, contribui para o impasse que actualmente eclipsa a label sedeada no Minnesota - como se se encontrasse suspenso ao lado das notas musicais que os discos de Coastal ou Lorna (assalariados da Words) derramam em contenção gota-a-gota. Longe de ser um mero capricho de agregação saudosista, Mania compreende um naipe de argumentos que lhe valem uma escuta (arqueológica?), mas padece de uma determinante e decisiva qualidade singular que justifique o seu desenterramento após 20 anos. Fica por irromper a ténue fronteira que separa um objecto de culto da obra-prima que lhe apregoam.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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