DISCOS
The Double
Loose In The Air
· 21 Dez 2005 · 08:00 ·
The Double
Loose In The Air
2005
Matador / Popstock


Sítios oficiais:
- The Double
- Matador
- Popstock
The Double
Loose In The Air
2005
Matador / Popstock


Sítios oficiais:
- The Double
- Matador
- Popstock
Antes de apontar o bisturi aos Double, importa rever o ano de 2005 tal como percorrido pela Matador Records - uma da mais robustas labels independentes (que, agora, pouco conservará desse espírito), vaca sagrada que amamentou e suportou exemplarmente as carreiras de gente como os Pavement, Jon Spencer Blues Explosion ou Lynnfield Pioneers (sim, essa obscura glória do hip hop no-wave). A Matador arriscou qualitativamente, cultivou uma base de familiaridade junto dos subsidiados, soube fazer dos seus talentos embaixadores de uma estética infalível e hoje colhe os frutos de tudo isso. Entretanto e chegada a idade propícia para investimentos, a label nova-iorquina decidiu-se por alternar 2005 entre lançamentos de pura rentabilização (caso das excelentes antologias de Belle and Sebastian e Yo La Tengo), petiscos da casa (Stephen Malkmus) e escassos discos assinados por novas aquisições (como estes Double ou os demolidores Early Man, saqueados à Monitor Records). Não parece descabido se alguém – com fome de reais novidades – lançar a questão que a casa-forte do indie colocava a si mesmo aos cinco anos: “What’s Up, Matador?”. De mãos nos bolsos cheios, provavelmente retorquirá: ”Aguenta-te com os Double.” Soa a resposta de recurso por parte de quem já não sente a mesma necessidade de surpreender própria dos verdes anos.

Contudo, a Matador sempre cumpre com tripla promessa Kinder: uma surpresa (mesmo que derivativa), um brinquedo (o disco é lúdico) e um doce (bem perto do final). Os Double são uma ameaça sem rosto, quatro músicos de refinado padrão tigrado decididos a esclarecer de vez que Nova Iorque é uma selva de emoções e Loose In The Fair fábula disso mesmo. O aspecto selvático do art work de Loose In The Air esclarece mais pela ausência do que propriamente pela revelação gráfica. À passagem do Chupa-Cabra, sobram panos rasgados por garras felinas e 43 minutos de rock de salão para contar história. Terão de servir os contornos que a criatura molda - em debandada - para que a imaginação lhe descubra um rosto mais ou menos exacto. Loose In The Air quase parece a teatralização de O Livro da Selva encenada por uma companhia que não se contenta com um rock escorreito, mas que também não se atreve à transgressão de delírios experimentais que a possa deixar a actuar para uma sala vazia. Loose In The Air não é carne, nem é peixe. É apenas voracidade.

Adivinha-se ao misticismo de algumas manifestações violentamente selectas que os Double tenham feito caça grossa da visceralidade (que conferem a faixas como “What Sound It Makes The Thunder”) e suspeita-se que, na hora de renovar o rubor aos glóbulos, não recusem o tratamento de hemodiálise com sangue Velvet Underground. Os resultados dos cruzamentos genéticos chegam a ser sublimes: o épico “Dance” encontra a besta anónima e a Fada Sininho a reverter o rumo à aurora com uma troca de beijos proibidos. Outros nem por si nascem tão abençoados: "Hot Air" podia até servir como faixa-tema a uma versão animada de King Kong gravada em conjunto pelos Flaming Lips e uns Liars em processo de desintoxicação, na ressaca de elixires enfeitiçados. Podia até ser brilhante, mas uma qualquer disfuncionalidade impede que assim seja. Ainda assim, o terceiro disco dos Double implode serenamente (“Busty Beasty” é docemente nostálgica como o sopro do amolador) antes de aterrar em rochoso chão firme. Ou seja, escapa agilmente a um adjectivo em forma de dardo que o reduza a um ramo no reino animal, mas acaba na mesma rede que outras espécies raras que conhecemos à Big Apple.

A apreciação global dependerá da perspectiva. A estrela porno Stacy Valentine recordava num documentário que o seu melhor dia de trabalho fora aquele em que, pela primeira vez, experimentou dupla penetração. Comovida, ligou à mãe para lhe dar conta da boa nova. Provavelmente será uma questão de hábito a que separa alguém de conviver harmoniosamente com a simultânea fixação da insinuante pop citadina e altiva forma de traduzir a boémia da Meca do mundo hip, Brooklyn. Loose In The Air é disco para o ano inteiro, mas nem por isso para todos os anos. Em certos casos, far-se-á notar como aquele balão que ganha volume ao lado de um ursinho de peluche indiferente. Nova Iorque no lugar do ar que qualquer disco insufla, o ursinho a representar a postura de quem passa bem sem o excedente pós-Interpol (quando a própria banda chega a ser, por si só, um excedente). Há muito tempo que a verdadeira Matador não está aqui.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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