DISCOS
Lasse Marhaug
Carnival of Souls EP
· 08 Dez 2005 · 08:00 ·
Lasse Marhaug
Carnival of Souls EP
2005
Thisco


Sítios oficiais:
- Lasse Marhaug
- Thisco
Lasse Marhaug
Carnival of Souls EP
2005
Thisco


Sítios oficiais:
- Lasse Marhaug
- Thisco
Faz sentido que abordar um disco tão obscuro – nas suas texturas e contornos – quanto Carnival of Souls implique explorar premissas pouco tradicionais. Assim também acontece porque Lasse Marhaug baseou esta sua peça de 20 minutos numa curta-metragem, The Letter de Tom Løberg, que terá percorrido apenas alguns festivais especializados. Dessa curta sabe-se que conta a história de um homem que, em idade avançada, decide enviar uma carta a si mesmo. A informação sobre o filme norueguês é de tal forma escassa que nem o todo poderoso IMBD esclarece muito. O fosso que impede de projectar – nem que apenas mentalmente – o filme, agrava-se quando se percebe que Carnival of Souls não aparenta grande vontade de se revelar de forma imediata. Em vez disso e a partir do seu autismo contorcido, a composição decide-se a uma gradual difusão de apontamentos abstractos mumificados por um glitch falciforme e frequências sonoras sufocantes. Tudo isto em forma de telegrama tripartido, que, por interesse na importação do músico ou nobreza de parte a parte, chegou às mãos sempre atentas da incansável label lisbonense, Thisco.

Para que se compreenda melhor a vocação de Lasse Marhaug, há que atender primeira à sua insaciabilidade no que diz respeito à desconstrução. Pois se há compositores empenhados em fazer deste mundo pó, Lasse Marhaug aponta a visceralidade do seu amplo trabalho ao dizimar total de galáxias. O compositor norueguês é tido como figura de proa do noise (e recebido como um semi-deus no Japão, onde o género é tão bem aceite) e merecedor de uma reputação que o aliou - ao vivo e em disco – a Pita, Alan Courtis (o argentino que o Animal Collective trouxe até cá recentemente), Lee Ranaldo (Sonic Youth) e ao incontornável Merzbow (para quem, de resto, Marhaug elaborou o design de alguns discos). São discos e discos apostados em antecipar o cataclismo. Haja coração para Marhaug...

Mas voltemos ao cerne da questão. Carnival of Souls é peremptório na sua imposição, ao ponto de poder vir a granjear culto e antipatias em partes iguais. Os antagonismos não se ficam por aqui. Entre o caos e a calma de morte, Lasse revela a sua leitura bipolarizada do filme norueguês apoiado numa mecânica semelhante à do peep-show: ostenta a estranheza dos crescendos percorridos com ruído e coloca termo ao contacto com descida de um véu ambient de aparência cadavérica. A limitação conceptual leva Carnival of Souls a dispor de um carácter auto-suficiente que o torna apreciável mesmo que isolado. Contudo, um terço de hora pouco ou nada revela sobre um compositor que tem a sua influência dispersa por centenas de discos (e tantos outras pontas soltas que podem ser obtidas na generosa página de mp3 - http://lassemarhaug.teks.no/ ). Carnival of Souls é apenas uma lápide no cemitério onde a melodia descansa sem paz.

À falta do termo mais óbvio que serviria os propósitos da analogia, o disco que a Thisco agora lança tem noutro Carnival of Souls - filme maldito tardiamente reconhecido -um objecto igualmente estranho com alguns traços em comum. A pequena jóia de 1962, que sobreviveu à marginalidade imposta por décadas em ecrãs de drive-in e inclusão em double features, era um complexo tratado sobre a sexualidade com a falsa aparência de filme rasca (filmado com dinheiro adquirido a filmes instrutivos ou de sensibilização social). Intercaladas com uma fragilidade de recursos que chega a meter dó (mas que só frisa a glória do seu orçamento reduzido), vão surgindo umas sequências de cortar a respiração – tal é a carga poética do preto e branco – em que vemos fantasmas a dançar num parque de diversões assombrado. Por contraste (ou nem por isso), são essas as sequências que a memória mais definidamente retém. O disco homónimo organiza pacientemente o seu timing. Oculta-se no falso silêncio como o peixe-areia e nas suas brechas de ruído revela as passagens subterrâneas que conduzem à descoberta do mestre da electrónica de corda ao pescoço, Lasse Marhaug.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

Parceiros