DISCOS
V/A
A Houseguest's Wish
· 23 Mar 2005 · 08:00 ·
V/A
A Houseguest's Wish
2004
Words on Music


Sítios oficiais:
- V/A
- Words on Music
V/A
A Houseguest's Wish
2004
Words on Music


Sítios oficiais:
- V/A
- Words on Music
No grande ecrã, Cubo apresentava uma premissa com tremendo potencial, mas revelava-se incapaz de camuflar a prestação quase tele-filme do seu “casting”. Battle Royale - a fantasia darwiniana do sobrestimado Takeshi Kitano - anexaria “prima” a “obra”, não fosse a teatralidade boçal dos que atiraram às urtigas uma ideia genial. A Houseguest’s Wish é, de forma equivalente, saudavelmente inglório. Coloca à prova a elasticidade de uma causa nobre e despista-se repetidamente na sua pretensão. A proeza, neste caso, é da responsabilidade da amistosa Words On Music, que, em vez de emparelhar artistas e respectivas interpretações, optou por reunir neste tributo dezanove traduções diferentes de uma mesma música dos influentes e vanguardistas Wire - “Outdoor Miner”.

Para compreender o que a Words On Music procura aqui homenagear, é necessário recuar até uma altura em que o punk começava a ser mais que três acordes favoráveis ao contágio do “pogo” e escarretas esvoaçantes. Os Wire pertenciam às fileiras dos que tinham respondido à chamada londrina de Joe Strummer e, a partir daí, rumado a paragens que do punk só aproveitara a matriz e pouco mais. Ao segundo disco – o imponente Chairs Missing -, os Wire já demonstravam categóricas provas de auto-suficiência e uma palete de registos (do rudimentar hino de dança ao experimentalismo ligeiro) que os demarcava instantaneamente dos apologistas da anarquia. Não creio que alguém de crista na pinha e alfinete de ama ao peito se atrevesse a entoar em sociedade o refrão de “Outdoor Miner”, a pérola pop que surge isolada em Chairs Missing.

A faixa mais adocicada do disco passara, à custa de um refrão que não desgruda, a ser vista como um afronta por parte de uma banda que, além de desafiar o punk enquanto instituição, atrevera-se a inserir um single capaz de domar uma nação entre hinos para consumo elitista. Como factor adicional à sua mística, refira-se o escândalo protagonizado pela EMI, que inflacionara de forma fraudulenta o volume de vendas do single para que este alcançasse os lugares cimeiros do prestigiado Top of the Pops. Como a barata que sobrevive ao holocausto, “Outdoor Miner” perdurou no apaixonado culto que lhe foi prestado e que neste disco encontra demonstração à altura.

Siga então a procissão de bem-aventurados devotos da causa mineira. Na dianteira patriarcal, destacam-se pela negativa as saudosas Lush, que despacham em piloto automático a matéria-prima, sem sombra do charme etéreo que fez delas uma das preciosidades do abençoado catálogo da 4AD. A abordagem dos Flying Saucer Attack é recomendável, ainda que demasiado submissa às coordenadas “shoegazer” que lhes servem de orientação. Não é, portanto, pelos nomes de maior prestígio que A Houseguest’s Wish vê a sua vontade cumprida.

Cabe então aos párocos salvar esta compilação do pecado do esquecimento. Sharron Kraus – esperança da “folk” (sombria, ao que parece) em ascendente – destaca-se por angular “Outdoor Miner” ao ponto mais extremo da sua candura, sem optar pela solução mais fácil. Em vez disso, conduz delicadamente - do sussurro à caminhada ribeirinha orquestrada por um banjo triunfal - a fabulosa criação pop dos Wire. Saliente-se também o mais “esquizo” dos tratamentos: a “instrumentalização” a cargo de uns Should (pertencentes ao catálogo da própria Words On Music) que não necessitaram de mais que um clarinete e uma guitarra sequestrada ao pôr-do-sol para garantirem um lugar no céu.

Dos pecadores não reza a história. Por aqui desfilam muitos aspirantes a novos Velvet Underground e toda uma segunda apanha de pós-rock. Não há paciência para tudo isto. Na certeza de que o original dos Wire é insuperável, a A Houseguest’s Wish valerá mais pela prospecção que impele do que propriamente pelo que oferece directamente. É um exercício de investigação assombrado pela saturação. Experimente o leitor escutar o refrão He lies on his side, is he trying to hide? /In fact it's the Earth, which he's known since birth. oitenta vezes durante uma hora e decerto que compreenderá o meu lamento.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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