DISCOS
High on Fire
Blessed Black Wings
· 18 Jan 2005 · 08:00 ·
High on Fire
Blessed Black Wings
2005
Relapse


Sítios oficiais:
- High on Fire
- Relapse
High on Fire
Blessed Black Wings
2005
Relapse


Sítios oficiais:
- High on Fire
- Relapse
Confesso que já fui um aficionado (vulgo: "cromo") das cartas coleccionáveis "Magic: The Gathering". Hoje procuro comprador para o meu Dragão de Shiva e Gorro do Bufão. Além de ter mantido o meu mealheiro vazio durante alguns anos, gosto de acreditar que o vício desenvolveu a minha capacidade estratégica, raciocínio matemático e o conhecimento referente a mitologias várias (ainda que transfiguradas). É óbvio que nada mudou em relação aos dois primeiros factores, mas fiquei a saber o que são - preparem-se - Dragonetes, Mantícoras, Grifos e Magimodeladores (na verdade, acho que ainda não sei o são estes últimos). Blessed Black Wings reavivou toda essa minha noção do fantástico medieval, não só porque a ilustração que lhe serve de capa facilmente encontraria lugar numa carta de "Magic", como também - devido à forma como me afeiçoei à sua intensidade - por me ter conduzido a um desenho de Phil Foglio que figurava na carta "Sulfurous Springs" (que podem ver aqui: http://www.findmagiccards.com/Cards/IA/Sulfurous_Springs.html). Após progressiva familiarização, dei por mim a conviver alegremente com Gárgulas e Diabretes, que me tentavam convencer de que a interpretação de Jeremy Irons em Masmorras & Dragões não tinha sido assim tão execrável. Mantenho a minha opinião.

Matt Pike provavelmente nunca terá jogado "Magic", mas traz associadas ao seu nome credenciais (discos tão importantes para o stoner como Holy Mountain e Jerusalem, enquanto Sleep) suficientes para que qualquer lançamento dos High on Fire (e este já é o terceiro longa-duração) seja recebido com expectativas amenas e avolumada quantidade de saliva. Pike conheceu nos tempos dos Sleep a amarga sensação de que, aos poucos, a indústria vinha tomando as rédeas da sua banda: o duelo com a London Recordings em torno de Jerusalem foi interminável (a discográfica queria tornar o que era um disco de uma só faixa de 52 minutos em algo mais comercial) e uma faixa da banda acabou na banda-sonora de Gummo - um dos filmes malditos de Harmony Korine - sem se saber bem como. A sonolência foi consumida pelas chamas, os monolíticos drones deram lugar a uma sonoridade muito mais directa, e Matt Pike (além de guitarrista, assume aqui as vocalizações) parece muito mais motivado e senhor do seu nariz nesta segunda pele. Os resultados estão à escuta.

No seu trocadilho mais ou menos óbvio, o mote "Devilution" esclarece prontamente a intenção do disco: agradar sem reservas a quem não teme o peso do rock que o chifrudo inspira. Pois que se aguentem aqueles que já não têm estaleca para esta cavalgada de proporções sobrenaturais. Que se cuidem os fãs de Herman's Hermits ainda vivos: são industriais as doses de electricidade (atenção: a produção é do inimitável Steve Albini) que Blessed Black Wings gera em prol do headbanging.

A velocidade da mafarrica locomotiva é tal que à segunda faixa já se soltam os primeiros parafusos. O ponteiro não abandona as marcas máximas ("Silver Back" é quinta a fundo) até conhecer a redenção na última faixa. Só o melhor combustível se adequaria às exigências de um motor tão lubrificado como este. Adicione-se numa mesma fórmula a frontalidade cospe-fogo dos Slayer, a omnipresença dos Motorhead e o sludge bastardo dos Melvins, e os resultados são os esperados: um stoner mutante capaz de fazer escola.

Matt Pike é o mítico líder que, com a sua voz e guitarra, comanda as tropas rítmicas. O que representa "To Cross the Bridge" senão o grito de guerra que antecede a carnificina da batalha? A convicção com que os músicos maneiam os seus instrumentos parece ser a mesma com que Alexandre, o Grande, decepava cabeças e membros, e aqui nem sequer há tempo para interlúdios de índole gay. Se assim fosse, este disco pertenceria a uma daquelas bandas que recorrem às guitarras acústicas para amansar o bicho. Não creio que algum combatente alexandrino se tenha recordado de uma antiga paixoneta ou de um primo falecido em plena batalha. Feita a contagem de vítimas e o desejo de morbidez satisfeito, a coagulação acaba por surgir no triunfal "Sons of Thunder".

Apetece dizer maravilhas de qualquer disco em que a entrega seja tão perceptível como aqui (a Matt Pike não se conhece outro comportamento), mas, apesar de ser magnífico nos melhores momentos, o impacto das faixas que integram Blessed Black Wings é demasiado variável (note-se o fosso que existe entre "Brother in the Wind" e o lugar-comum "Cometh Down Hessian", por exemplo). O disco sucumbe perante o desequilíbrio e morre na praia das suas aspirações. Nós já vamos morrendo de ansiedade pelo que o futuro reserva a estes High on Fire.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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