DISCOS
The Tiger Lillies with The Kronos Quartet
The Gorey End
· 04 Jan 2005 · 08:00 ·
The Tiger Lillies with The Kronos Quartet
The Gorey End
2003
Emi


Sítios oficiais:
- The Tiger Lillies with The Kronos Quartet
- Emi
The Tiger Lillies with The Kronos Quartet
The Gorey End
2003
Emi


Sítios oficiais:
- The Tiger Lillies with The Kronos Quartet
- Emi
A canção introdutória de The Gorey End, encerra com um aviso aos incautos: «Prepare for tears». E assim o fazemos – para ouvir logo de seguida uma listagem alfabética de crimes e suicídios interpretados por uma voz de Farinelli acompanhada de música de feira ambulante. Bem-vindos ao universo mórbido – e delirante! – de Edward Gorey e dos Tiger Lillies, no qual violinos e gargalhadas histéricas são a banda sonora ideal para um bom rigor mortis.

Raras vezes terá o encontro da literatura com a música produzido resultados tão surpreendentes. Falecido em 2000, Edward Gorey tornou-se um autor de culto com a publicação de dezenas de obras de nonsense na melhor tradição vitoriana de Edward Lear e Lewis Carroll. Em títulos tão sugestivos como The Epileptic Bycicle ou The Glorious Nosebleed, o absurdo é primo do macabro. Foi precisamente essa combinação que assegurou a fama de Gorey nas últimas décadas.

Conta-se que a encenação que os Tiger Lillies levaram a cabo do clássico de Heinrich Hoffmann Shockheaded Peter terá impressionado de tal modo Gorey que este lhes teria proposto adaptar a sua própria obra em música. Aceite a proposta, o autor enviou à trupe londrina formada por Martyn Jacques, Adrian Huge e Adrian Stout uma caixa com manuscritos inéditos, a partir dos quais seleccionariam os poemas mais adequados a esse exercício de tradução.

Sendo o imaginário dos Tiger Lillies bastante próximo do de Gorey, a selecção e montagem dos textos não foi difícil; para um grupo que confessou manter sexo com ovelhas e cantado no passado loas ao amor necrófilo, histórias como a da jovem sonhadora Daisy e o seu triste fim como prostituta vítima de uma doença venérea («Trampled Lilly») seria um conto para criancinhas. A morte prematura de Gorey em 2000 parecia ter colocado um ponto final às expectativas que se tinham gerado em torno do projecto (ao qual Terry Gilliam havia mesmo chegado a associar-se). Contudo, a garantia da participação dos Kronos Quartet, três anos mais tarde, resgatava finalmente o trabalho da prateleira.

Quando falamos de álbuns cujo centro é a ficcionalização do crime e da violência, é quase obrigatória a evocação das Murder Ballads de Nick Cave. Se aí se pretendia registar as pulsões primárias que movem o criminoso (veja-se o mantra do arrepiante «The Curse of Millhaven»: «All God’s children they all have to die / La la la la La la la lie / I’m happy as a lark and everything is fine»), The Gorey End joga num campeonato completamente diferente. Aqui, o teatro é tudo e tudo, incluindo a mais hedionda morte, é objecto de ridículo. A curta duração da generalidade das canções e a voz tocada a hélio de Jacques, debitando os mais disparatados versos sem uma única hesitação, reduzem ao osso a comédia absurda das histórias de Gorey. Na valsa de condenados intitulada «Besotted Mother» (história da bebé Florabelle e do seu casaco de pele de coelho, estraçalhados por uma matilha de cães selvagens), Jacques e os seus amigos explodem em latidos e rosnidos, eliminando qualquer possibilidade melodramática. Ao contrário de Cave, não há aqui lugar para a ironia trágica pela simples razão de não existir tragédia.

A pose histriónica de Martyn Jacques e o gemido feito fantasma das cordas dos Kronos (em faixas como «Learned Pig») são motivos mais do que suficientes para tornar este álbum num número de cabaret com tanto de esquizofrénico quanto de genial. E ainda que Edward Gorey não tenha vivido para ouvir o resultado desta colaboração (ou precisamente por isso?), esta câmara de gás hilariante permanecerá como a merecida homenagem à sua obra. Prepare for tears? Preparem antes os estômagos para uma boa dose de gargalhadas – e, no meu caso, duas mãos-cheias de canções para tocar em loop na minha rádio mental nos próximos tempos.
Nuno Quintas

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