DISCOS
V/A
Discovered, Covered: The Late, Great Daniel Johnston
· 08 Out 2004 · 08:00 ·


Imagine uma página fragmentada em meia dúzia de vinhetas. Numa primeira, Hulk pasma perante um enorme sapo de pele em xadrez psicadélico e cachimbo na boca. Forma-se um balão de pensamento à volta da cabeça da aberração verde: "Só com a ajuda do Capitão América poderei fazer frente ao Sapo Cósmico...". O fundo da terceira vinheta exibe um padrão de losangos cor-de-rosa sem razão que o justifique. Hulk e o Sapo Cósmico trocam olhares ameaçadores. Uma figura feminina com pernas no lugar dos braços e vice-versa entra em cena para apaziguar a tensão entre os personagens. Acabam os três a beber um batido de alumínio à mesa de uma esplanada iluminada pelo sol da meia-noite. Nem sinal do Capitão América...
Nada disto faz muito sentido a menos que chegue até nós pela voz de Daniel Johnston, um dos mais lendários e estimados songwriters entre o bando indie. Ter garantido a militante admiração de gente como Kurt Cobain ou Paul Leary (o Butthole Surfer que chegou a colaborar com Johnson) foi apenas uma feliz e tão "americana" coincidência, pois o enfermo "cantautor" - afectado por uma delicada doença mental crónica que o torna bipolar no seu comportamento - nada fez para alcançar o estatuto de que goza hoje excepto ter oferecido as suas gravações caseiras a amigos e raparigas bonitas que encontrava ao balcão do McDonald's. Passou de herói local a celebridade nacional quando, em 1985, a MTV o elegeu como curioso epicentro da cena musical de Austin num programa que focava a cena local. O tiro saiu pela culatra, pois Johnston era muito mais que o flavour of the week pronto a ser domesticado pela industrial cadeia televisiva. O mais frágil dos renegados nada mudou ou fez para se acomodar à fama. Defendeu o seu universo das ameaças exteriores, como o Capitão América (o seu herói Marvel de eleição) faria. Talvez tenha sido essa natural incorruptibilidade que lhe valeu o culto de inúmeros ilustres que prestam aqui a sua homenagem. A comprová-lo aí está a antologia que comporta um esboço do que pode ser o seu best of e o disco de tributo simétrico.
A singularidade da música de Daniel Johnston reside na inimitável forma como inverte a lógica das coisas e transforma as pequenas insignificâncias em lúcidos estilhaços da realidade. Através de uma sensibilidade única, canta os mais complexos aspectos de uma forma tão simplista que pode ser entendida por qualquer criança. É natural que, numa primeira fase, contemplemos a música de Johnston como burro para palácio. Aos que optarem por manter firmes as suas defesas, todos estes contos de pernas para o ar assemelhar-se-ão a caracteres imperceptíveis que percorrem os ecrãs da "Matrix" na vertical. Johnston é a esfinge que - nos seus termos lo-fi - nos propõe aqueles enigmas de resolução tão óbvia e lógica que acabam por se tornar triviais e, por isso, remetidos ao esquecimento no enquadramento da vida labiríntica (mais do que às vezes julgamos). Cabe a cada um decidir a margem a ceder à desarmante influência de Daniel Johnston, na certeza de que o espelho que nos coloca à frente é tão somente aquele em que normalmente não reparamos.
Abordar a música de Johnston como se de uma novidade (daquelas que se mostram aos amigos para a risota) se tratasse, é um redondo erro. Remeter tão pura substância à marginalidade novelty é o mais básico instinto da moleza. Os paralelos que unem Johnston ao falecido Wesley Willis são por demais óbvios: uma essência que se estranha para depois se entranhar, uma semelhante forma de estar que se vai depurando à medida que nos tornamos apreciadores do "gosto adquirido" ("acquired taste" como lhe chamam os britânicos). Enquanto o prolífico Willis reflectia a sua concepção do mundo nas odes aos seus ídolos (Jello Biafra, entre muitos) munido do seu eterno teclado Casio, Daniel Johnston fá-lo através da inflexão minimalista.
Cria o seu teatrinho de fantoches para, involuntariamente, fazer disso uma implacável alegoria da vida. Tão implacável que quase se torna pragmática: cada canção um provérbio, os animais falam, o amor afinal até move montanhas. Tudo é tão convincentemente cristalino que o difícil é não acreditar na eventualidade de os Beatles se reunirem de novo por alturas do Apocalipse (uma das mais célebres profecias do songwriter). No fundo, estas minhas linhas são apenas cinzas de um livre arbítrio, pois não há forma absoluta de racionalizar por palavras a aura que uma música como "Walking the Cow" emana.
Prioridade ao segundo disco da antologia. Tudo o que aqui se encontra é igualmente indispensável e representativo, mas nem por isso viável substituto para uma reportório composto por mais de 400 composições. Reúne, nos seus espécimes, as múltiplas facetas de Johnston: da melancolia de banheira à solarenga melodia de manhã de fim-de-semana, do lo-fi de marca a músicas sujeitas a produção - termo que praticamente não existe no manual do songwriter. Há também lugar para as incursões pelo registo a cappella, onde a voz, já de si susceptível quando acompanhada por instrumentação, se projecta nua. Haverá como não atender à prece de alguém que descobriu ser vampiro em "Devil Town"?
Tal como não haverá certamente pessoa de escrúpulos que não se renda ao destrambelhado piano de "Don't Let the Sun Go Down on Your Grievence". Os clássicos sucedem-se uns após os outros. A consciência desperta em "Living Life", inflecte-se no pesadelo de "Death Scream". Johnston alcança picos vocais surpreendentes, vacila pontualmente (o que até fica bem) e renega com firmeza à condição de atracção de Circo em "Sorry Entertainer" e "Like a Monkey in a Zoo". Invariavelmente, a arma de Johnston é a metáfora. Usufrui também do piano agridoce, que domina e veicula grande parte do seu rendimento musical. Se tudo isto ficar aquém dos requisitos exigidos para lhe garantir a imortalidade, há sempre "Walking the Cow" - a mais ingénua e sublime das suas composições, aquela pela qual deverá ser recordado.
As faixas que compõem o tributo são obrigatoriamente versões, já que é praticamente impossível (além de um tremendo risco) reproduzir a música do maverick californiano através de covers (ainda que esta afirmação desafie o título do disco). Da mesma forma que o refrigerante mais vendido do mundo não conhece uma reprodução autêntica. A vibrante essência de Johnston só pode mesmo ser reinterpretada e jamais imitada à risca.
Aplauda-se a ambição dos TV on the Radio pela apropriação de "Walking the Cow". Desiluda-se aquele que esperar mais que um revestimento que vale apenas por assinalar a presença da nova coqueluche da Touch & Go. Bem mais interessante é a prestação do guru Calvin Johnson, que retoca "Sorry Entertainer" com a contenção ideal e inserção de uma linha de percussão a calhar. Bright Eyes expande a doçura de "Devil Town" até ao limite da sua criatividade folk. Podem também encontrar aqui as faixas bónus que faltam a Sea Change de Beck, e ao recente Real Gone do sagrado Tom Waits. "King Kong" ombrearia destemidamente com as faixas do segundo. A ficar algo de fora, teriam de ser os contributos dos Death Cab for Cutie - esticaram a corda do pretensiosismo até partir - e o insípido revivalismo da orquestra desengonçada que dá pelo nome de Starligh Mints. Ainda assim, o balanço é altamente positivo.
"Bonita" é, normalmente, daqueles adjectivos que se evitam. Acaba sempre preterido no confronto directo com os seus sinónimos. Não me recordo de momento mais acertado para dele abusar que agora. A música de Daniel Johnston é intrinsecamente bonita. Mais que isso: é muito bonita. A compilação que serve de pretexto a estas linhas será mais que suficientemente para comprová-lo. Vale nem que seja pelo contributo de intocáveis como Calvin Johnson ou Tom Waits. Vale, essencialmente, para nos dar a conhecer a obra de alguém a quem foi oferecido um dom ímpar em troca de uma porção de sanidade. Escreveu-se direito por linhas tortas.
Miguel ArsénioNada disto faz muito sentido a menos que chegue até nós pela voz de Daniel Johnston, um dos mais lendários e estimados songwriters entre o bando indie. Ter garantido a militante admiração de gente como Kurt Cobain ou Paul Leary (o Butthole Surfer que chegou a colaborar com Johnson) foi apenas uma feliz e tão "americana" coincidência, pois o enfermo "cantautor" - afectado por uma delicada doença mental crónica que o torna bipolar no seu comportamento - nada fez para alcançar o estatuto de que goza hoje excepto ter oferecido as suas gravações caseiras a amigos e raparigas bonitas que encontrava ao balcão do McDonald's. Passou de herói local a celebridade nacional quando, em 1985, a MTV o elegeu como curioso epicentro da cena musical de Austin num programa que focava a cena local. O tiro saiu pela culatra, pois Johnston era muito mais que o flavour of the week pronto a ser domesticado pela industrial cadeia televisiva. O mais frágil dos renegados nada mudou ou fez para se acomodar à fama. Defendeu o seu universo das ameaças exteriores, como o Capitão América (o seu herói Marvel de eleição) faria. Talvez tenha sido essa natural incorruptibilidade que lhe valeu o culto de inúmeros ilustres que prestam aqui a sua homenagem. A comprová-lo aí está a antologia que comporta um esboço do que pode ser o seu best of e o disco de tributo simétrico.
A singularidade da música de Daniel Johnston reside na inimitável forma como inverte a lógica das coisas e transforma as pequenas insignificâncias em lúcidos estilhaços da realidade. Através de uma sensibilidade única, canta os mais complexos aspectos de uma forma tão simplista que pode ser entendida por qualquer criança. É natural que, numa primeira fase, contemplemos a música de Johnston como burro para palácio. Aos que optarem por manter firmes as suas defesas, todos estes contos de pernas para o ar assemelhar-se-ão a caracteres imperceptíveis que percorrem os ecrãs da "Matrix" na vertical. Johnston é a esfinge que - nos seus termos lo-fi - nos propõe aqueles enigmas de resolução tão óbvia e lógica que acabam por se tornar triviais e, por isso, remetidos ao esquecimento no enquadramento da vida labiríntica (mais do que às vezes julgamos). Cabe a cada um decidir a margem a ceder à desarmante influência de Daniel Johnston, na certeza de que o espelho que nos coloca à frente é tão somente aquele em que normalmente não reparamos.
Abordar a música de Johnston como se de uma novidade (daquelas que se mostram aos amigos para a risota) se tratasse, é um redondo erro. Remeter tão pura substância à marginalidade novelty é o mais básico instinto da moleza. Os paralelos que unem Johnston ao falecido Wesley Willis são por demais óbvios: uma essência que se estranha para depois se entranhar, uma semelhante forma de estar que se vai depurando à medida que nos tornamos apreciadores do "gosto adquirido" ("acquired taste" como lhe chamam os britânicos). Enquanto o prolífico Willis reflectia a sua concepção do mundo nas odes aos seus ídolos (Jello Biafra, entre muitos) munido do seu eterno teclado Casio, Daniel Johnston fá-lo através da inflexão minimalista.
Cria o seu teatrinho de fantoches para, involuntariamente, fazer disso uma implacável alegoria da vida. Tão implacável que quase se torna pragmática: cada canção um provérbio, os animais falam, o amor afinal até move montanhas. Tudo é tão convincentemente cristalino que o difícil é não acreditar na eventualidade de os Beatles se reunirem de novo por alturas do Apocalipse (uma das mais célebres profecias do songwriter). No fundo, estas minhas linhas são apenas cinzas de um livre arbítrio, pois não há forma absoluta de racionalizar por palavras a aura que uma música como "Walking the Cow" emana.
Prioridade ao segundo disco da antologia. Tudo o que aqui se encontra é igualmente indispensável e representativo, mas nem por isso viável substituto para uma reportório composto por mais de 400 composições. Reúne, nos seus espécimes, as múltiplas facetas de Johnston: da melancolia de banheira à solarenga melodia de manhã de fim-de-semana, do lo-fi de marca a músicas sujeitas a produção - termo que praticamente não existe no manual do songwriter. Há também lugar para as incursões pelo registo a cappella, onde a voz, já de si susceptível quando acompanhada por instrumentação, se projecta nua. Haverá como não atender à prece de alguém que descobriu ser vampiro em "Devil Town"?
Tal como não haverá certamente pessoa de escrúpulos que não se renda ao destrambelhado piano de "Don't Let the Sun Go Down on Your Grievence". Os clássicos sucedem-se uns após os outros. A consciência desperta em "Living Life", inflecte-se no pesadelo de "Death Scream". Johnston alcança picos vocais surpreendentes, vacila pontualmente (o que até fica bem) e renega com firmeza à condição de atracção de Circo em "Sorry Entertainer" e "Like a Monkey in a Zoo". Invariavelmente, a arma de Johnston é a metáfora. Usufrui também do piano agridoce, que domina e veicula grande parte do seu rendimento musical. Se tudo isto ficar aquém dos requisitos exigidos para lhe garantir a imortalidade, há sempre "Walking the Cow" - a mais ingénua e sublime das suas composições, aquela pela qual deverá ser recordado.
As faixas que compõem o tributo são obrigatoriamente versões, já que é praticamente impossível (além de um tremendo risco) reproduzir a música do maverick californiano através de covers (ainda que esta afirmação desafie o título do disco). Da mesma forma que o refrigerante mais vendido do mundo não conhece uma reprodução autêntica. A vibrante essência de Johnston só pode mesmo ser reinterpretada e jamais imitada à risca.
Aplauda-se a ambição dos TV on the Radio pela apropriação de "Walking the Cow". Desiluda-se aquele que esperar mais que um revestimento que vale apenas por assinalar a presença da nova coqueluche da Touch & Go. Bem mais interessante é a prestação do guru Calvin Johnson, que retoca "Sorry Entertainer" com a contenção ideal e inserção de uma linha de percussão a calhar. Bright Eyes expande a doçura de "Devil Town" até ao limite da sua criatividade folk. Podem também encontrar aqui as faixas bónus que faltam a Sea Change de Beck, e ao recente Real Gone do sagrado Tom Waits. "King Kong" ombrearia destemidamente com as faixas do segundo. A ficar algo de fora, teriam de ser os contributos dos Death Cab for Cutie - esticaram a corda do pretensiosismo até partir - e o insípido revivalismo da orquestra desengonçada que dá pelo nome de Starligh Mints. Ainda assim, o balanço é altamente positivo.
"Bonita" é, normalmente, daqueles adjectivos que se evitam. Acaba sempre preterido no confronto directo com os seus sinónimos. Não me recordo de momento mais acertado para dele abusar que agora. A música de Daniel Johnston é intrinsecamente bonita. Mais que isso: é muito bonita. A compilação que serve de pretexto a estas linhas será mais que suficientemente para comprová-lo. Vale nem que seja pelo contributo de intocáveis como Calvin Johnson ou Tom Waits. Vale, essencialmente, para nos dar a conhecer a obra de alguém a quem foi oferecido um dom ímpar em troca de uma porção de sanidade. Escreveu-se direito por linhas tortas.
migarsenio@yahoo.com
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