DISCOS
DJ Mayonnaise
55 Stories...
· 23 Set 2004 · 08:00 ·
DJ Mayonnaise
55 Stories...
1999
Anticon


Sítios oficiais:
- Anticon
DJ Mayonnaise
55 Stories...
1999
Anticon


Sítios oficiais:
- Anticon
Na mais do que recomendável entrevista do site francês www.abcdrduson.com com Sole, Dose One, Sage Francis e Jel, alguns dos propulsores da Anticon, Sole diz que a editora é uma plataforma onde eles expressam as suas ideias e se manifestam contra a indústria musical, mas também contra a McDonald's, a escravatura mental e o sexismo, simplesmente porque não querem ser cúmplices. Já Sage Francis fala dessas entidades asquerosas que são os jornalistas, com a ressalva de que conhece alguns bons jornalistas de música na Europa. Alguns nem sabem distinguir entre Eminem e Chuck D, acusa Sole. (Nota irónica: o autor desta crítica já foi olhado de lado por supostamente ouvir Eminem quando, na verdade, era Sole que estava no seu mini disc). Por sua vez, Dose One fala do hip-hop como um melting-pot - a manta de retalhos a que os professores de Inglês frequentemente aludem -, um género que agrega influências de vários outros.

Mais do que fonte emissora de enunciados avulsos e arraçados, a Anticon é uma questão de perspectiva. Por que não ser diferente? DJ Mayonnaise é um histórico mas não faz parte da espinha dorsal da editora. Participou nalgumas edições memoráveis e dá uma ajuda aqui e ali, mas tem mais coisas com que se ocupar. Foi ao lado de DJ Signify que assinou o tema de abertura do pretensioso (mas obrigatório) compêndio Music for the Advancement of Hip Hop, uma das pedras basilares do catálogo da formiga. O tema chamava-se, então, "Propaganda (Intro)" e essa co-autoria torna ainda mais deliciosa a faixa "DJ Signify Can't Do This", do genérico 55 Stories..., o LP número 5 da editora, já fora de circulação. A sua importância é, por esta e outras razões, assinalável. O despique assumido (ou dissimulado) entre DJs é, aliás, uma constante no decorrer deste disco.

Mas a peça maior do cruzamento de linguagens é "Diggin in Moodswing's Crates", que começa assim:

Max - You never got into the whole CD revolution?
Jackie - Oh, I got a few. But I can't afford to start all over again. I mean, I invested too much time and money in my albums.
Max - Yeah, but you can't get new stuff on records.
Jackie - I don't get new stuff that often.

(Neste ponto, começa a soar uma velha canção do início dos 70.)

Max - This is pretty.
Jackie - Uh-huh.
Max - Who is this?

Eram os Delfonics, uma referência soul carregadinha de mel, mas DJ Mayonnaise interrompe aqui a citação, apropria-se do enredo e avança na sua proposta doentia. O diálogo é retirado de Jackie Brown, o filme de Quentin Tarantino que sucede cronologicamente a Pulp Fiction, mas que vadia em torno de Cães Danados, de 1992. DJ Mayonnaise faz aqui uma colagem mais do que pertinente - a célebre querela à volta do vinyl ou do laser é prato do dia entre a comunidade de turntablists.

A lógica de construção de blocos de som em espiral, com variáveis de ritmo que se repetem e vão serpenteando ao longo de uma pista secundária para depois assediarem o fluxo maior, é um recurso por demais utilizado em 55 Stories.... As nuvens de fumo que se desprendem das pontas e o odor dos cinzeiros emprestam um ar místico à coisa. Quase que dá para sentir o nó na tripa de quando se passa mais de metade da noite em ambientes de fumo intenso. Acutilantes scratches, loops que têm pouco de terráqueo e um flow vibrante, com direito a excitação de partículas por intensa exposição sonora, o disco até dava para animar uma festa não fosse a densidade quase, quase impenetrável. A propósito, "Swedish Orgy" promete mais do que cumpre e é na revisitação de "Divine Disappointment", originalmente pelo competente Alias, que o coito se consuma.

Envolvido numa atmosfera de fumo e ácidos, este disco escarafuncha o lifestyle associado às pistas de dança e ao DJing, uma associação demasiado irreflectida para fazer escola. A fuga para a frente e o distanciamento dessa conotação de vícios - álcool, drogas duras e sexo do tipo "one-night stand" - foram duas das premissas estruturantes da excelente e-zine londrina Absorb (www.absorb.org) que, infelizmente, agora fecha portas. De qualquer modo, DJ Mayonnaise trata as coisas com um humor corrosivo, como em "DJs Shouldn't Talk / Ozzy Rules", elementar choque de universos, que trata de destilar veneno e afastar os monstros da adolescência.

""Sample Here"" (assim mesmo com duplas aspas) não poderia ser mais explícito quanto ao modus operandi dos estetas da linguagem electrónica de hoje. É corte e costura para o bem e para o mal. E DJ Mayonnaise perfila-se como um dos mais interessantes gira-disquistas (pois, o termo é horrível) dos nossos dias. Se Shadow se permite deixar descendência, este será sempre o bastardo. Uma espécie de filho pródigo, que depois de fazer as suas tropelias, volta para os braços do pai. São os relógios do universo a ajustarem-se segundo passagens marcantes do Livro - para o caso tanto dá se é a Bíblia Sagrada ou o Corão. Estamos todos marcados num tempo de confrontação de ideologias. A música só pode ajudar, não ao entendimento dos povos - porque esse é utópico -, mas a qualquer outra coisa. No caminho do autocarro, por exemplo.
Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com

Parceiros