DISCOS
The Gerogerigegege
Moenai Hai
· 06 Set 2016 · 10:20 ·
The Gerogerigegege
Moenai Hai
2016
Eskimo Records
Moenai Hai
2016
Eskimo Records
The Gerogerigegege
Moenai Hai
2016
Eskimo Records
Moenai Hai
2016
Eskimo Records
O regresso (ou a despedida?) do filho pródigo.
A música, e em especial o rock n' roll, precisa dos seus mitos. Precisa dos junkies, dos poetas, dos meros sonhadores, dos perversos e violentos. Precisa, como pão para a boca, daqueles que se descolam da normalidade e enfiam a arte numa caixa impossível de caracterizar, tão distinta que os seus nomes passam a ecoar por toda a eternidade como um exemplo do que poderíamos todos ser, acaso não vivêssemos numa sociedade que desaba constantemente sobre as nossas cabeças. Geramos mitos porque, no fundo, gostaríamos todos de fugir.
No caso do noise japonês e da sua variante rock mais celebrada - nomeadamente aquela presente no seminal Japrocksampler, de Julian Cope -, existe um mito em cada esquina, lendas que inventámos por curiosidade exótica ou por mera afinidade com a cultura, mesmo que não a compreendamos. Keiji Haino, os Rallizes Dénudés ou os Hanatarash de Yamantaka Eye são três delas. Pelo mistério, pela ausência de uma qualquer definição ocidental de "sanidade mental" ou, simplesmente, porque são homens que decidiram pegar num bulldozer e destruir uma sala de espectáculos em nome da arte. E, evidentemente, porque são homens que souberam fazer do rock n' roll um modo de vida ou, melhor ainda, souberam transformar as suas vidas em rock n' roll. Tal como os Gerogerigegege.
Na cena noise japonesa os Gerogerigegege sempre foram o lado mais infantil da coisa; desde o próprio nome (literalmente "vómito, diarreia, ahahah"), passando pelas escolhas pouco ortodoxas de locais para concertos (clubes gay/sado-maso) e pelo que se passava nesses mesmos concertos (masturbação, muita masturbação), até aos seus vários lançamentos, entre os finais dos anos 80 e o início da década seguinte. Com Juntaro Yamanouchi como único membro constante, os Gerogerigegege inspiraram-se nos Ramones, no Fluxus e na sua própria sexualidade desbragada para, entre outros álbuns, editar Showa - uma gravação de vários casais a fazer o doce amor ao som do hino nacional japonês -, Tokyo Anal Dynamite e Yellow Trash Bazooka - uma espécie de compêndios noisegrind completos com versões de Cure, Doors e os famigerados one two thwee foah! roubados a Dee Dee Ramone - e, melhor (ou pior? Ou será possível avaliá-lo nestes termos?) ainda, Night, que é nada mais nada menos que o som de alguém, bem, a cagar.
Não parece música, nem sequer noise? Eles sentiam o mesmo; o seu mais famoso slogan era ART IS OVER, proclamando o fim de toda e qualquer expressão artística, engolida pela líbido e pelo reflexo e por breves trechos de electricidade pura, não mais que trinta segundos. O problema, e sê-lo-à apenas para os Gerogerigegege, é que muitos viram ali obras de arte que mereciam ampla discussão e atenção (a parte menos má) ou, até, mereciam que se gastassem centenas e centenas de ienes ou dólares na sua aquisição (a parte terrível; se até o nojo pode ser comercializado, como escaparemos do capitalismo?). O que, conhecendo a fundo a postura de Juntaro em relação ao resto do mundo, uma postura de alienação consciente e anarquismo onanista, deve ter contribuído para o desaparecimento abrupto do projecto, em 2001.
Quinze anos depois, e após muita especulação sobre o que teria acontecido a Juntaro Yamanouchi, os Gerogerigegege voltam a editar um novo disco, Moenai Hai, após o músico ter dado prova de vida em 2013, através de um post no Twitter. E a escuta estabelece o motivo; o filho pródigo regressa a casa para se penitenciar, pedir perdão pelos anos de excesso. Sim, é verdade: Moenai Hai surpreende não por assinalar o regresso de um dos grandes mitos do noise, mas por não rebolar directamente nesse mesmo noise. Ao invés, rejeita a ebulição da electricidade e defende-se em paisagens mais ambientais, salvo uma excepção de quinze minutos que, até, foi composta há trinta anos. É um disco francamente calmo, especialmente para os padrões dos Gerogerigegege.
Desilusão? Nada nisso - muitos de nós, fãs, aguardávamos por uma prova que fosse de que o mito não se havia simplesmente ido embora, tal qual o fazemos com Takeshi Mizutani e os Rallizes Dénudés. E Moenai Hai, mesmo sem os one two thwee foah!, mesmo sem o sémen e o sujo, é um disco interessante q.b. para voltar a alimentar a importância que têm (tiveram?) os Gerogerigegege na nossa própria formação musical. O noise pode salvar vidas. Há que o repetir até à exaustão.
Uma exaustão sentida pelo próprio Juntaro, que logo na primeira faixa do disco, "Out of Saiga", sai do conforto da sua própria solidão e decide ir experimentar o "mundo real", feito de comboios que passam, velhos japoneses que soam mais ou menos embriagados e passos apressados, antes de uma gigantesca nuvem negra sobrevoar toda a paisagem e trazer consigo o som estridente da musique concrète. Já não há espaço para a infantilidade na invenção. O mundo dos Gerogerigegege soa agora estranhamente académico. Que terá acontecido nestes últimos quinze anos, afinal?
Não sabemos - mas sabemos que o projecto não rejeitou liminarmente o seu passado, porque logo a seguir vem um tema homónimo, o tal com trinta anos, uma descarga violenta de noise rock que é o lembrete de que precisávamos: os Gerogerigegege eram (são?) lendas, eram o rock n' roll. Tristemente, soa não a um resquício do que poderia ter sido o shoegaze caso os britânicos tivessem tido um pouco mais de testosterona, mas a uma elegia. Existe a sensação, ao longo destes quinze minutos e vinte segundos de riff circular e ruído bruto, que não mais voltaremos a ouvi-los desta forma. Seja porque abandonaram o noise ou abandonaram este mundo...
E é sob essa perspectiva que entramos em "Tokyo: Sea Of Losers / Donors For USA" e "Final Tuning", dark ambient introspectivo e ligeiramente tenebroso (a primeira) e uma sucessão de notas flutuando no nada após um espasmo noise (a segunda). O fim de toda a actividade dos Gerogerigegege contido nestes sons escuros, como se se estivessem a preparar para ir embora não durante outros quinze anos mas para sempre. O que, para um melómano e fã de longa data de uma banda, é uma tristeza inexpressável. Mas, quem sabe? Pode ser que seja um anúncio à la Swans - Moenai Hai enquanto final de um primeiro volume e início de um segundo. Seja qual for a ideia-chave por detrás deste álbum - impossível de definir sem especulações várias -, só esta verdade interessa: que bom é saber que os Gerogerigegege ainda tinham forças.
Paulo CecÃlioNo caso do noise japonês e da sua variante rock mais celebrada - nomeadamente aquela presente no seminal Japrocksampler, de Julian Cope -, existe um mito em cada esquina, lendas que inventámos por curiosidade exótica ou por mera afinidade com a cultura, mesmo que não a compreendamos. Keiji Haino, os Rallizes Dénudés ou os Hanatarash de Yamantaka Eye são três delas. Pelo mistério, pela ausência de uma qualquer definição ocidental de "sanidade mental" ou, simplesmente, porque são homens que decidiram pegar num bulldozer e destruir uma sala de espectáculos em nome da arte. E, evidentemente, porque são homens que souberam fazer do rock n' roll um modo de vida ou, melhor ainda, souberam transformar as suas vidas em rock n' roll. Tal como os Gerogerigegege.
Na cena noise japonesa os Gerogerigegege sempre foram o lado mais infantil da coisa; desde o próprio nome (literalmente "vómito, diarreia, ahahah"), passando pelas escolhas pouco ortodoxas de locais para concertos (clubes gay/sado-maso) e pelo que se passava nesses mesmos concertos (masturbação, muita masturbação), até aos seus vários lançamentos, entre os finais dos anos 80 e o início da década seguinte. Com Juntaro Yamanouchi como único membro constante, os Gerogerigegege inspiraram-se nos Ramones, no Fluxus e na sua própria sexualidade desbragada para, entre outros álbuns, editar Showa - uma gravação de vários casais a fazer o doce amor ao som do hino nacional japonês -, Tokyo Anal Dynamite e Yellow Trash Bazooka - uma espécie de compêndios noisegrind completos com versões de Cure, Doors e os famigerados one two thwee foah! roubados a Dee Dee Ramone - e, melhor (ou pior? Ou será possível avaliá-lo nestes termos?) ainda, Night, que é nada mais nada menos que o som de alguém, bem, a cagar.
Não parece música, nem sequer noise? Eles sentiam o mesmo; o seu mais famoso slogan era ART IS OVER, proclamando o fim de toda e qualquer expressão artística, engolida pela líbido e pelo reflexo e por breves trechos de electricidade pura, não mais que trinta segundos. O problema, e sê-lo-à apenas para os Gerogerigegege, é que muitos viram ali obras de arte que mereciam ampla discussão e atenção (a parte menos má) ou, até, mereciam que se gastassem centenas e centenas de ienes ou dólares na sua aquisição (a parte terrível; se até o nojo pode ser comercializado, como escaparemos do capitalismo?). O que, conhecendo a fundo a postura de Juntaro em relação ao resto do mundo, uma postura de alienação consciente e anarquismo onanista, deve ter contribuído para o desaparecimento abrupto do projecto, em 2001.
Quinze anos depois, e após muita especulação sobre o que teria acontecido a Juntaro Yamanouchi, os Gerogerigegege voltam a editar um novo disco, Moenai Hai, após o músico ter dado prova de vida em 2013, através de um post no Twitter. E a escuta estabelece o motivo; o filho pródigo regressa a casa para se penitenciar, pedir perdão pelos anos de excesso. Sim, é verdade: Moenai Hai surpreende não por assinalar o regresso de um dos grandes mitos do noise, mas por não rebolar directamente nesse mesmo noise. Ao invés, rejeita a ebulição da electricidade e defende-se em paisagens mais ambientais, salvo uma excepção de quinze minutos que, até, foi composta há trinta anos. É um disco francamente calmo, especialmente para os padrões dos Gerogerigegege.
Desilusão? Nada nisso - muitos de nós, fãs, aguardávamos por uma prova que fosse de que o mito não se havia simplesmente ido embora, tal qual o fazemos com Takeshi Mizutani e os Rallizes Dénudés. E Moenai Hai, mesmo sem os one two thwee foah!, mesmo sem o sémen e o sujo, é um disco interessante q.b. para voltar a alimentar a importância que têm (tiveram?) os Gerogerigegege na nossa própria formação musical. O noise pode salvar vidas. Há que o repetir até à exaustão.
Uma exaustão sentida pelo próprio Juntaro, que logo na primeira faixa do disco, "Out of Saiga", sai do conforto da sua própria solidão e decide ir experimentar o "mundo real", feito de comboios que passam, velhos japoneses que soam mais ou menos embriagados e passos apressados, antes de uma gigantesca nuvem negra sobrevoar toda a paisagem e trazer consigo o som estridente da musique concrète. Já não há espaço para a infantilidade na invenção. O mundo dos Gerogerigegege soa agora estranhamente académico. Que terá acontecido nestes últimos quinze anos, afinal?
Não sabemos - mas sabemos que o projecto não rejeitou liminarmente o seu passado, porque logo a seguir vem um tema homónimo, o tal com trinta anos, uma descarga violenta de noise rock que é o lembrete de que precisávamos: os Gerogerigegege eram (são?) lendas, eram o rock n' roll. Tristemente, soa não a um resquício do que poderia ter sido o shoegaze caso os britânicos tivessem tido um pouco mais de testosterona, mas a uma elegia. Existe a sensação, ao longo destes quinze minutos e vinte segundos de riff circular e ruído bruto, que não mais voltaremos a ouvi-los desta forma. Seja porque abandonaram o noise ou abandonaram este mundo...
E é sob essa perspectiva que entramos em "Tokyo: Sea Of Losers / Donors For USA" e "Final Tuning", dark ambient introspectivo e ligeiramente tenebroso (a primeira) e uma sucessão de notas flutuando no nada após um espasmo noise (a segunda). O fim de toda a actividade dos Gerogerigegege contido nestes sons escuros, como se se estivessem a preparar para ir embora não durante outros quinze anos mas para sempre. O que, para um melómano e fã de longa data de uma banda, é uma tristeza inexpressável. Mas, quem sabe? Pode ser que seja um anúncio à la Swans - Moenai Hai enquanto final de um primeiro volume e início de um segundo. Seja qual for a ideia-chave por detrás deste álbum - impossível de definir sem especulações várias -, só esta verdade interessa: que bom é saber que os Gerogerigegege ainda tinham forças.
pauloandrececilio@gmail.com
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