DISCOS
Saul Williams
MartyrLoserKing
· 08 Fev 2016 · 11:06 ·
Saul Williams
MartyrLoserKing
2016
Fader


Sítios oficiais:
- Saul Williams
- Fader
Saul Williams
MartyrLoserKing
2016
Fader


Sítios oficiais:
- Saul Williams
- Fader
A revolução 2.0 passou por aqui.
Um mineiro do Burundi vira hacker e usa MartyrLoserKing como a sua identidade cibernética. Só esta frase tão cheia de narrativa e simbolismo provoca um pequeno esgotamento nas cabeças menos familiarizadas com Saul Williams. O poeta, activista e rapper americano sempre foi um artista da hipertextualidade, no sentido mais contemporâneo do termo (o mundo como um imenso portal web com links para outras páginas) e numa acepção mais orgânica através das múltiplas hiperligações da música (afinal, não é só de hip-hop que se fala quando se fala de Williams).

Já no álbum de estreia, Amethyst Rock Star (2001), Saul Williams mostrava uma forte inclinação para o industrial, samplando Nine Inch Nails numa das faixas. Em 2007, foi o próprio Trent Reznor quem produziu The Inevitable Rise and Liberation of NiggyTardust! – e sim, a referência a David Bowie é mais do que evidente. É escusado falar disso. Mas eis-nos chegados agora a um disco que parece querer fazer a revolução na era dos zeros e uns. Mais ainda: fazê-la com um avatar que escangalha por completo o nome de um dos mais importantes activistas políticos de sempre.

MartyrLoserKing é título para fazer sorrir muitos e franzir o sobrolho de outros tantos. Mas Saul Williams não explora a polémica pela polémica. Pelo contrário: em “All Coltrane Solos at Once”, não se cansa de repetir o verso “fuck you, understand me”. E nós tentamos, palavra que sim, uma e outra vez. E de cada vez, há uma nova camada a destapar-se, um novo artifício de língua ou de estúdio que parecia impossível de discernir à audição desarmada. Mas lá está ele, aliás esteve sempre lá. E o problema é justamente esse: este é um disco muito cheio, talvez demasiado cheio.

Williams é um artista de fusão. Na música e no trabalho gráfico, entra tudo, todas as referências são bem-vindas: do apelo tribal (“The Noise Came From Here”) à adição digital (“The Bear / Coltan as Cotton”), do techno garagista politicamente engajado (“Think Like They Book Say”) à vénia ao hardcore de El Paso de início dos 00s (o verso “dancing on the corpses’ ashes” de “Ashes” é o mesmo de “Invalid Litter Dept.” dos At The Drive-In).

Mas voltemos ao Burundi e ao tal mineiro feito hacker. Por coincidência, o disco de Saul Williams chega numa altura em que um dos países mais pobres do mundo está do avesso por causa da reeleição de Pierre Nkurunziza para um terceiro mandato presidencial. As eleições de Julho do ano passado motivaram críticas da comunidade internacional, um boicote da oposição e um golpe de Estado falhado. Em “Burundi”, ao lado de Emily Kokal das Warpaint, Williams consegue atafulhar na mesma canção elementos tão díspares como o cachimbo de crack da Whitney Houston, o genocídio, um disco rígido, fábricas na China, capelas, sinagogas e mesquitas, Hitler e rabinos em Ramallah. E ainda um vírus informático – ou será civilizacional?

No final, a cabeça de quem ouve fica tão cheia de pistas sobrepostas num sortido rico de linguagens, numa Babel de artifícios sonoros e de mensagens panfletárias que leva muito tempo a processar tudo. Se MartyrLoserKing é um grande disco? É, sem dúvida. Na era da voragem informativa, da barragem incontida de posts e tweets avulsos, é um disco que reflecte este nosso tempo. Ora, essa contemporaneidade faz dele também um trabalho encantadora e paradoxalmente anacrónico. É assim na idade da Internet, com a diferença de que as notícias do jornal online de ontem nem para embrulhar peixe servem.
Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com

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