DISCOS
Donatto Dozzy
Plays Bee Mask
· 27 Jan 2014 · 14:55 ·
Donatto Dozzy
Plays Bee Mask
2013
Spectrum Spools


Sítios oficiais:
- Donatto Dozzy
- Spectrum Spools
Donatto Dozzy
Plays Bee Mask
2013
Spectrum Spools


Sítios oficiais:
- Donatto Dozzy
- Spectrum Spools
Vaporwave para além de si próprio.
Um dos resultados práticos mais relevantes do século XX, tanto a nível artístico como tecnológico, é o esbatimento das fronteiras entre diferentes géneros e expressões, antes considerados mais ou menos estanques. E mesmo que queiramos endossar responsabilidades por esse facto, não poderemos nunca atribuí-las em exclusivo a determinada entidade, momento ou movimento, precisamente pela crescente convergência, interacção e até interdependência entre eles. Este envolvimento artístico progrediu em complexidade ao longo do século, mas pode ser encontrado desde os trabalhos plásticos dos dadaístas, à reapropriação da cultura pop mais “baixa” e comercial de Warhol e continuadores, à inclusão cada vez mais proeminente de referências a essa mesma cultura na “alta” literatura contemporânea, presente desde a geração beat, mas refinada nos últimos 30 anos por autores como DeLillo e os seus seguidores. Quanto à questão da tecnologia, falar hoje na proliferação dos meios de massificação da distribuição de informação, arte, entretenimento e cultura em geral como, em primeira instância, a TV e posteriormente a Internet, é chover no molhado. Terá apenas interesse como sinalizador de uma época em que quase tudo está disponível a toda a hora. Em que tudo é ou pode instantaneamente passar a ser familiar. Neste contexto, o papel da arte deixa de ser o de apresentar ao público algo que nunca tenha visto, para passar a ser o de desfamiliarizar e recontextualizar referentes reconhecíveis.

Na música estas questões são transversais e por demais evidentes. Em primeiro lugar, os seus géneros mais relevantes estão em permanente intercâmbio de ideias, significantes e fórmulas; em segundo, a tendência para a reciclagem de temas e formas de fazer música é uma das mais preponderantes na história da música do século passado – e de tal forma que não faz verdadeiramente sentido afirmar que se tenha acentuado nos últimos tempos; por último, como nas outras expressões artísticas, há um crescente diálogo entre campos anteriormente considerados distantes. Evidência recente disso foi o movimento a que se poderia chamar diáspora-drone, quando num período relativamente curto, uma série de músicos ligados a estilos mais ou menos extremos, mas geralmente arrítmicos, começaram a descobrir as potencialidades da música de dança. Daí surgiram projectos como os que se vieram a congregar na órbita da Not Not Fun/100% Silk, mas também ao que depois se apelidou de pop hipnagógico. A natureza deste género foi sobejamente explorada nos últimos 3/4 anos, definindo-o como baseado na evocação estado de semiconsciência nostálgico e, por conseguinte, ancorado firmemente em território retro. Os testemunhos mais fidedignos deste passo encontram-se em trabalhos como os que Ferraro, Lopatin ou Mehran lançaram antes de o primeiro editar “Far Side Virtual”, em 2011, quando aconteceram os primeiros passos daquilo a que se chamaria vaporwave, protagonizado por Internet Club, Laserdisc Visions ou Mediafired. Essa etiqueta para o género torna-se particularmente adequada não só pelo tom vaporoso de muita dessa música, mas também pela proximidade com o termo vaporware, originalmente usado para designar produtos de software que apesar de serem anunciados, não chegavam a ser postos à venda: uma espécie de vapor do capitalismo tecnológico dos anos 1990, que alimenta a iconografia associada à música. Em julho de 2012, Will Burnett (Internet Club), em entrevista a Adam Harper publicada na DUMMY, explicava que pretendia com isso gerar “a desfamiliriazição de coisas a que estamos tão habituados que já nem reparamos” [tradução minha].

Chris Madak, enquadra-se mais facilmente na primeira vaga: os primeiros trabalhos sob o pseudónimo Bee Mask (compilados em “Living’s Just Defying the Ocean, 2006, e “Elegy for Beach Friday”, 2011), editados na década passada, dedicavam-se sobretudo a um certo esoterismo drone. Porém, em 2012, quando gravou “When we were Eating Unripe Pears”, transparecia já uma forte influência do techno de headphones, disciplinado e reflexivo. Foi também nesse ano, num intervalo das gravações de “Pears”, que gravou o 12 polegadas “Vaporware/Scanops”, com as colaborações de Arthur Ashin (Autre ne Veut) e Katherine Brady. Não é claro que, ao nível de intenções, Madak quisesse deliberadamente jogar com a questão do vaporwave/ware, porque não adopta as convenções mais típicas do género: não só não há samples de vídeos do Youtube como Madak e colaboradores criaram todos os elementos usados; em vez da habitual profusão de faixas curtíssimas, há apenas duas bastante longas (13m23 e 15m45); e há uma total ausência de referências à cultura japonesa, habituais no vaporwave, por via da expansão comercial nipónica na época de referência.

Todavia, foi em Tóquio, quando actuou na edição de 2012 do festival Labyrinth, que partilhou palco com Outer Space, Atom™, ou, mais importante para o caso, Donato Dozzy. Conta-se que o DJ italiano, em actividade desde 1983, mas dedicado desde 2004 à produção de música de dança com propensão espacial e afinidade para a convergência estilística (demonstrada, por exemplo, em “K”, 2010), ficou particularmente impressionado com o início da actuação de Bee Mask, precisamente com “Vaporware”. Tanto, que quando foi desafiado pela Spectrum Spools para fazer uma remistura dessa faixa, acabou por fazer antes sete temas novos (num total de 34 minutos), usando o tema original como ponto de partida e matéria-prima principal. Aliás, é precisamente para isso que aponta o título do álbum.

O trabalho de Dozzy sobre o original foi de uma minúcia de ourives, e teve um resultado riquíssimo. Onde Madak constrói uma peça única, baseada na constante sobreposição de camadas e no efeito conjunto que estas criam, em “Plays Bee Mask”, Dozzy traz cada um desses elementos para a ribalta, isolando-os ou atribuindo-lhes novo contexto. Onde o original revela atracção pela dissonância e ruído, Dozzy acrescenta a sua própria assinatura na mestria de escolha e corte de loops para melhor atingir um efeito hipnótico (em especial em Vaporware 3), e por uma noção de melodia própria (Vaporware 7, por exemplo). Onde o músico americano faz o tema progredir incessantemente, o italiano fá-los repetirem-se ciclicamente mas sem um padrão óbvio, criando uma sensação de incerteza sobre quando os tínhamos ouvido antes: agora mesmo, noutra faixa de “Plays Bee Mask”, ou no tema original. Os depoimentos de Dozzy sobre o álbum vão na direcção de que procurava explorar a abstracção mais do que propriamente a desfamiliarização do som da faixa original, mas a verdade é que atinge esse efeito. Talvez de forma inconsciente, Donato Dozzy dá um nó ao vaporwave, e lança-lhe pistas sobejamente interessantes.
Afonso Biscaia
joseafonsobiscaia@gmail.com

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