DISCOS
Mola Dudle
O futuro só se diz em particular
· 30 Dez 2003 · 08:00 ·
Mola Dudle
O futuro só se diz em particular
2003
AnAnAnA


Sítios oficiais:
- AnAnAnA
Mola Dudle
O futuro só se diz em particular
2003
AnAnAnA


Sítios oficiais:
- AnAnAnA
2001. Nanu e Miguel Cabral dão à luz o projecto Mola Dudle. A ambição da dupla, na altura, procurava responder a um desejo aceso de cruzar a música com outras manifestações artísticas como, por exemplo, o cinema. Os CTT, esse tradicional medium, permitiram que Nanu e Miguel pudessem escutar as ideias um do outro, em locais tão distantes como Sintra e Tavira.

Mobília - o primeiro registo, editado também pela Ananana – resultou, deste modo, numa espécie de compêndio de «micro-canções» - como lhe chamou Nanu, em entrevista recente ao DN+ – assentes num incesto pouco provável entre sons digitais e sons emitidos por objectos reais (estores, talheres, lápis, escova de dentes, etc).

2003. O futuro só se diz em particular chega aos escaparates, após dois anos de labuta. Nanu e Miguel Leiria Pereira - o entretanto recrutado contrabaixista, ao qual Miguel Cabral passou a estafeta nos comandos do projecto –rodearam-se de gente como Manuela Azevedo (Clã), Armando Teixeira (Balla, Bulllet e Bizarra Locomotiva), Nuno Rebelo (Mler Ife Dada) e Mário Barreiros (produtor de álbuns de Pedro Abrunhosa e dos Clã, a título de exemplo) e propuseram-se a dar um passo em frente: construir verdadeiras canções, a partir de um conceito que, mesmo em plena alvorada do século XXI, continua a fazer sentido.

Recuemos, então, algumas décadas atrás e obtemos os ambientes d’O futuro só se diz em particular. Estacionamos nos loucos anos 20. Vivemos os dias da rádio, a ascenção do culto do mundo do espectáculo, as novas tendências da moda, o glamour, o cinema, o cabaret. Somos uma massa.

É este o imaginário que os Mola Dudle se propuseram a recriar neste trabalho, o de «um tempo perdido», nas palavras de Nanu, que evoca anseios que não distam muito dos anseios vividos na era do virtual - dos telemóveis de terceira geração, da banda-larga e do emprego on-line. Neste sentido, O futuro só se diz em particular deixa de ser um mero objecto musical. Passa a suportar a ideia de um trabalho de pesquisa, resultado de uma recolha de textos em revistas, livros e filmes da época (da revista feminina ABC ao filme O Expresso de Xanguai, de Joseph Von Sternberg), procurando responder à questão «o que se desejava do futuro num tempo passado?» e chegando à conclusão de que a resposta está no presente.

Alguém esfolheia um livro, enquanto uma valsa em menor se pronuncia. Assobia a melodia. Fecha o livro. Passeia-se até à porta. Sai.

É deste modo que O futuro só se diz em particular nos chega ao ouvido nos seus noventa e nove segundos iniciais: misteriosamente e em tons sépia. A valsa inicial dá lugar à primeira verdadeira canção. «Tecidos da estação», assim se manifesta pela primeira vez a voz exótica e elástica – nem sempre agradável – de Nanu. O discurso, esse, remete-nos para alguns conselhos de estética inscritos num artigo de 1928, na revista ABC («num salão banhado em luz há que alegrar essas cores»).

Musicalmente, até ao derradeiro instrumental «Post-scriptum», a violino e guitarra a acústica triste, atravessamos os anos 20 ladeados de uma diversidade de «músicas» capazes de se cruzarem sem preconceitos – da electrónica mais contemporânea à chanson française, passando pela valsa, pelo jazz, pelo funk, pela música clássica ou pela pop.

Dentro da categoria das grandes e interessantes canções, há o funk experimental – a lembrar os primeiros tempos dos Zen – de «Redrock One: Um» (que aborda, na letra, códigos de comunicação entre pilotos, durante a II Guerra Mundial), a elegante chanson française que é «Phonoscènes pour Chronophone» e a belíssima balada «Árvore», na qual nos lembramos porque é que a voz de Manuela Azevedo está no topo das melhores vozes femininas nascidas e erguidas em Portugal.

De resto, O futuro só se diz em particular encontra-se num ponto de equilíbrio que jamais tende para a mediocridade mas raramente chega à excelência. Vive de momentos musicais geralmente ricos que, no entanto, nem sempre são acompanhados à altura pela voz de Nanu.

Todavia, O futuro só se diz em particular é um álbum/trabalho de pesquisa que não merece o esquecimento, porque avançar no tempo exige, por vezes, reflectir sobre o que está para trás e porque da comunhão entre o passado e o presente pode nascer algo de muito grande. Não é pioneiro (os Balla e os Belle Chase Hotel por vezes movem-se nestas águas), mas é original no modo como se manifesta – ora sarcastica, ora exoticamente. Só por isso já merecia um lugar digno e asseado na prateleira de álbuns editados em território nacional na recta final de 2003.
Tiago Carvalho
tcarvalho@esec.pt

Parceiros