DISCOS
Miguel
Kaleidoscope Dream
· 29 Out 2012 · 23:42 ·
Miguel
Kaleidoscope Dream
2012
RCA


Sítios oficiais:
- Miguel
- RCA
Miguel
Kaleidoscope Dream
2012
RCA


Sítios oficiais:
- Miguel
- RCA
Sem preocupações vãs de fazer "avançar" o R&B, é de um disco brilhante que se trata.
Não deixa de ser uma manobra completamente desnecessária e algo falaciosa, recorrer constantemente a comparações com Channel Orange do Frank Ocean – para não esticar mais a corda do sensacionalismo R&B centrado num cânone indie – em quase toda a escrita que tem vindo a aparecer sobre este segundo álbum do Miguel. Antes de Kaleidoscope Dream, havia já um buzz consistentemente edificado num bom primeiro álbum de onde saiu a enorme “Sure Thing”, na série de EP's Art Dealer Chic e no simples facto de que “Adorn” se tornou um êxito muito para além do circuito limitativo de Tumblrs (sic). Prova cabal de alguma ignorância consciente em torno daquilo que verdadeiramente interessa no R&B, mas que por via de contextualizações inanes acaba por fazer incidir alguma luz, mais do que merecida, sobre Kaleidoscope Dream.

Disco praticamente imaculado, onde apenas “Pussy is Mine” se revela desnecessária naquele enquadramento acústico e pseudo-inacabado - ”Are we really recording right now? Oh shit” -, Kaleidoscope Dream segue a escola de pensamento do Álbum no sentido clássico do termo. Pensado para funcionar como um todo coerente, sem recurso a entradas inusitadas pelo crossover com a Eurodance ou pela letargia pretensiosa da balada anti-anacrónica; que poderiam fazer tender a sua aceitação ora para uma massificação lacónica - “Scream” do Usher como exemplo recente –, ora para o encantamento crítico do agora. Como tal, Miguel Pimentel decidiu carregar a sua própria cruz, imune a grandes pressões externas detectáveis e com passadas seguras em direcção àquilo que será a sua visão.

Mesmo as três canções já conhecidas da trilogia Art Dealer Chic, têm o seu espaço: “Adorn” aparece na sua versão definitiva de três minutos como ponto de entrada perfeito, “Arch & Point” mantém todo o seu esplendor épico e “Candles in the Sun” fecha o álbum com novos arranjos, prescindindo do impulso rítmico em abono de uma aparente contenção com vista panorâmica. Desviante das formas mais acertadas, em “Don't Look Back” a tempestade de percussão e guitarras dissolve-se numa interpolação soluçante de 'Time of the Season” dos Zombies. Acertando com o rock de um modo pouco habitual para artistas R&B, demasiado vidrados na emoção balofa dos Coldplay, “Use Me” enche o estádio sem precisar de explosões de vazio. O humano para além das luzes e da multidão: “Forgive me / It's the very first time / That I'm nervous / Can I trust you, huh?”. “The thrill” é levada em ombros pelas guitarras, mas passada a desconfiança inicial, está-se bem longe dos excessos power-pop dos N.E.R.D. na versão “real” de In the search of... ou do MOR mais bastardo.

“Dou You...” começa com uma guitarra acústica antes de se deixar levar numa brisa psicadélica, com uma letra onde a pergunta ”Do you like drugs?” se revela afinal um chamamento sexual com a conclusão ”I wanna do you like drugs tonight”. Psicadelismo que paira por “Kaleidoscope Dream” em todas as frentes: sintetizadores narcóticos, cordas esquivas, cascatas de vozes vindas de todo o lado e um imaginário pejado de alusões surreais. O contínuo lógico das experiências feitas no Paisley Park, com todo esse arsenal harmónico enredado numa linha baixo viciosa. Instrumento esse que tem neste álbum inúmeros motivos para se sentir orgulhoso, como as melodias líquidas na celebração de “Where's the Fun in Forever?”.

Ao longo de todo o disco, e mesmo nos seus momentos mais eufóricos, o cantor californiano nunca se deixa levar em escaladas histriónicas ou desvarios de virtuosismo, deixando que a voz habite as canções em vez de as levar por caminhos mais pantanosos. Fazendo emergir a personalidade que apenas a espaços se fazia sentir em All I Want is You, Kaleidoscope Dream abraça um legado que não deixa de ser evocativo dos grandes, mas nunca resvala para o facsimile ou para a acoplagem referencial. Os nomes a atirar poderão ser vários, e os esquemas mentais mais ou menos refundidas. Por isso, qual a necessidade de estabelecer relações vazias com algo sem interesse?*

* Com plena noção de que ao falar nisso – mesmo que de forma não-comparativa e não-contextual – estou a incorrer no mesmo erro. Círculos viciosos?
Bruno Silva
celasdeathsquad@gmail.com

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