DISCOS
Fugazi
Fugazi / Margin Walker
· 29 Out 2003 · 08:00 ·
Fugazi
Fugazi / Margin Walker
1988/89
Dischord


Sítios oficiais:
- Dischord
Fugazi
Fugazi / Margin Walker
1988/89
Dischord


Sítios oficiais:
- Dischord
Washington, DC é a capital do hardcore norte-americano desde há mais de duas décadas. A Dischord Records é um exemplo de resistência estóica e ausência de compromisso com os interesses especulativos do mercado de discos. Em 2000, a editora completava 20 anos de militância, facto assinalado no ano passado com a edição da colectânea comemorativa “20 Years of Dischord”. Arreigados à linfa desta criação, agora a atravessar a puberdade, estão desde sempre os Fugazi, uma vez que um dos seus vocalistas e guitarristas, Ian MacKaye, foi, ao lado de Jeff Nelson, o iluminado que a pariu.

Os Fugazi foram repescar os mandamentos que pulsavam nas artérias dos Minor Threat, uma amostra do naipe de percursores destes filhos bastardos do hardcore. Através das composições de ambas as formaturas, MacKaye declina(va) as experiências com drogas e álcool, faz(ia) um apelo à auto-consciência e cifra(va) a ideologia do colectivo num anti-establishment cerrado. Desde 1987 que os Fugazi mordem a mão que os alimenta, que recusam posicionar-se nas fileiras do comercialismo, declarado ou não. O seu activismo passa por tentar colocar no mercado os seus discos a dez dólares, preço que será sempre inflacionado pelas taxas alfandegárias, e dar actuações pelo preço de cinco dólares. Mas a atmosfera que os envolve, escrevinhada pelos media à luz de candeias frouxas, foi sempre um repositório de mitos e pretensas verdades. Para isto muito contribui a resistência da banda em conceder entrevistas a grandes publicações, porque, já alguém dizia, “corporate magazines still suck”.

Ian MacKaye era um diabrete do underground quando formou os Fugazi, sendo que já tinha integrado os Teen Idles, os supracitados Minor Threat e os Embrace – estes últimos fizeram eclodir o emocore, um subgénero responsável por introduzir alguma respirabilidade no modus operandi do hardcore. O impacto que os Fugazi despoletaram é o de uma granada lançada no quartel-general da indústria da música. Rasga tratados de influências e reorganiza os mapas culturais, declarando que a arte pode impor-se ao factor económico. Mas continuam a ser um culto, uma devoção silenciosa de fiéis que copiam traços mas erram atitudes. Os Fugazi são o equivalente em integridade a um Neil Young embrionário. Com a diferença de que eles nunca serão grandes, mas maiores que o mundo.

O primeiro EP, auto-intitulado, foi editado nos finais de 1988. Quem o ouviu conhece bem a forma como ‘Waiting Room’ se expande, identifica aquele silêncio de alguns segundos que deixa todas as partituras em suspenso para, logo depois, fazer borbulhar a toada ska e a ambiência reggae all over, o baixo como um pêndulo, as vozes alternadas de MacKaye e Guy Picciotto. Sem sequer considerarem a hipótese de soarem pomposos, os Fugazi elevam a música a um patamar de entrega e suor e excelência. As palavras são acusações e alertas, servindo de carrasco e farol, tornando o ouvinte uma presa do que escuta, irremediavelmente perdido nas garras da sociedade predatória. À guerrilha difamatória de ‘Bulldog Front’ segue-se o uivo de ‘Bad Mouth’ que o tempo escasseia porque é tempo de sermos quem somos e não o que fomos. Há ainda o ardor nos olhos de ‘Burning’, o sentido da morte em ‘Give Me the Cure’. E há a culpa, o peso da alma e a frustração feminina de sentir o seu corpo como um objecto, em ‘Suggestion’. ‘Glue Man’ é a visão turva de um agarrado, que tem na mente a sua cidade, que segura o seu lar na palma da mão.

O EP “Margin Walker” data de 1989, tendo sido, à semelhança do anterior, originalmente editado em vinyl, formato que a Dischord manteve em circulação. Abre com o tema-título, que arranha a futilidade e o desejo de evasão, prossegue com ‘And the Same’ a sugerir que as pessoas morrem porque querem, como forma de distracção. ‘Burning Too’ é um propulsor das consciências para a necessidade de salvar o planeta. Céus azuis e expansivos são o tecto do mundo em ‘Provisional’, enquanto os detritos se acumulam na sedimentar ‘Lockdown’. Em ‘Promises’, há palavras, confissões e simetrias. As palavras são promessas e as promessas são merda. É este registo introspectivo que sela o segundo exercício criativo dos Fugazi.

Em 1990, “13 Songs” revisitou os dois EPs numa edição que fica como marca-de-água da banda. As prestações em palco são energéticas, abrasivas, desenfreadas. Mas é conhecido o código de conduta dos Fugazi ao vivo, designadamente no que se refere à política anti-moshing. Muitas foram as situações em que MacKaye fez esmorecer as canções para refrear a assistência, chegando a oferecer o dinheiro de volta aos prevaricadores para que abandonassem o recinto. Entre edições regulares, o ano de 1999 conheceu a génese de um documentário, da autoria do amigo Jem Cohen, que reunia actuações e entrevistas com a banda. Através de “The Argument”, há dois anos, os Fugazi continuam a ser um dos mais importantes disjuntores da música independente moderna.
Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com

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