DISCOS
U.N.K.L.E.
Never Never Land
· 02 Out 2003 · 08:00 ·
U.N.K.L.E.
Never Never Land
2003
Mo'Wax


Sítios oficiais:
- Mo'Wax
U.N.K.L.E.
Never Never Land
2003
Mo'Wax


Sítios oficiais:
- Mo'Wax
1994. Londres, Inglaterra. Mais uma resenha de experimentalismo a atravessar a fina epiderme da Terra do Nunca. Uma promessa aguardada pela crítica, antecipada até cair moribunda pela exposição descomedida. Mas, deixando de parte a lógica mercantilista e retalhista da imprensa de música, o que sobra é um punhado de canções sinuosas, descompassadas, pretensamente acidentais mas necessariamente meticulosas, fruto de artifícios vários em estúdio. Os U.N.K.L.E. são um satélite a despontar da Mo’Wax, uma editora que marcou as coordenadas do renascimento do downtempo e do break beat para meados dos 90. James Lavelle é o cérebro da Mo’Wax, que formou quando ainda tinha borbulhas na cara, com o intuito de afrouxar o avanço escalonado do acid jazz e dos ventos do Norte bretão. É também a mola impulsionadora desse filho da mãe, esse bastardo da crítica, essa obra inacabada porque cega à nascença pelas luzes dos projectores. A composição triádica do projecto envolvia, na sua fase inicial, os esforços de Lavelle, de um seu amigo de infância Tim Goldsworthy e do produtor Kudo, da etiqueta nipónica Major Force e membro dos psicadélicos Skylab. Mas os U.N.K.L.E. não fecharam as comportas às correntes que vinham de fora e absorveram influências de diferentes direcções, qual esponja selectiva mas algo melindrada por pertencer, desde muito cedo, à nova selecção de esperanças dos media.

O som desmantelado que se pode escutar em “Psyence Fiction” (1998) é uma encruzilhada de bússolas referenciais que facilitam o barómetro da crítica. E este aponta para a cena de Sheffield de finais dos anos 80 e para o hip-hop e o electro de Nova Iorque. Para o acid jazz inglês e para o acid house e o techno que redefiniam a topografia do mundo. Lavelle era, então como agora, um pedagogo da contracultura londrina, um charlatão de conceitos que usa como marca-de-água nas suas composições, chegando a ser colunista da publicação Straight No Chaser. Ele desenha esboços vagos, partituras soltas suspensas por batidas e arranjos conceptuais, que depois entrega aos seus parceiros com vista à expansão e apuramento artísticos. Dois anos antes da estreia seminal num longa-duração, os U.N.K.L.E. notabilizaram-se pelos trabalhos de remistura que fizeram para a Jon Spencer Blues Explosion e os Tortoise. Mas “Psyence Fiction” não emergiria dos calabouços intelectuais de James sem antes Goldsworthy e Kudo serem substituídos pelo magnata do turntablism DJ Shadow, que tem em “Endtroducing...” um manifesto de intenções a incidir sobre o hip-hop e a electrónica. O painel de convivas presentes em disco ofusca, em certa medida, o alcance do projecto. As imagens que se mantêm mais recortadas na memória do mundo são as do vídeo para o tema ‘Rabbit in Your Headlights’ (com Thom Yorke na voz), que mostram um obstinado mendigo a caminhar apressado num túnel com intenso trânsito. O inveterado senhor é atropelado diversas vezes até estender os braços e apresentar uma figura maior que a vida, incapaz de sofrer mazelas físicas. Mas também Kool G. Rap, Richard Ashcroft, Alice Temple, Badly Drawn Boy, Mark Hollis e Mike D (dos Beastie Boys) assinaram a folha de presença.

Desta vez, já sem DJ Shadow, os U.N.K.L.E. tiveram que se revezar num “Never Never Land” reescrito a uma chama mais tosca do candelabro mediático. O afrouxamento das expectativas ou o simples destorcer das manobras de antecipação afastaram as colisões retorcidas entre o rap e o rock, os interlúdios, os samples anárquicos, os vocais fragmentados. O multi-instrumentista Richard File, experiente sombra no trabalho de estúdio, refinou as arestas da abordagem anterior e edificou um som mais limpo e polido, mais coeso também porque relacional e circular. As camadas sobrepostas são quase manifestações reticulares a exigir que um olhar mais atento as possa destrinçar e lhes acrescente outras pinceladas ébrias e disformes. O trabalho de detalhes é aferido até à sua mais ínfima fracção, Lavelle segmentou as distintas linguagens na conversação dos sons e das ideias. A conjuntura do disco deixa-se penetrar por assaltos sonoros, suaves mas intimidantes, profundos, irascíveis e muito agarrados ao baixo. Logo de início, torna-se claro que não se pretende aqui revisitar “Psyence Fiction” e o disco abre com um discurso soturno a falar de mudanças. Está criada a Via Láctea desfigurada dos U.N.K.L.E., extremamente aditiva e sideral, que prende o ouvinte de circunstância ao resto da escuta e tranquiliza o admirador mais atento. ‘Eye for an Eye’ é melodia em estado bruto, algo acústica, algo densa, muito insana. Robert “3D” del Naja (dos Massive Attack) assume, em ‘Safe in Mind’, um registo de voz evocativo de uma certa paranóia sobre uma muralha de sintetizadores e linhas de baixo. A negritude sobe à tona com ‘Panic Attack’, um acesso de densidade e de uma religiosidade mal disfarçada ou intencionalmente descoberta. Este foi o disco em que Ian Brown e Mani colaboraram pela primeira vez desde os Stone Roses. O primeiro soa a ele próprio em ‘Reign’, que parece uma desconstrução velada do seu trabalho a solo, mas já sem a explanação obsessiva da sigla ‘F.E.A.R.’. Jarvis Cocker (Pulp), Brian Eno, Josh Homme (Queens of the Stone Age) e Joel Cadbury (dos South) são os restantes colaboradores. “Never Never Land” é um ensaio histórico com matérias pulsantes e uma atmosfera mais rarefeita de cruzamentos sonoros, com partículas rítmicas pouco perceptíveis. E a atestar que aqueles que não aprendem com a História repetem os seus erros.
Hélder Gomes
hefgomes@gmail.com

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