DISCOS
Ulrich Schnauss
A Strangely Isolated Place
· 06 Ago 2003 · 08:00 ·
Ulrich Schnauss
A Strangely Isolated Place
2003
City Centre Offices


Sítios oficiais:
- City Centre Offices
Ulrich Schnauss
A Strangely Isolated Place
2003
City Centre Offices


Sítios oficiais:
- City Centre Offices
Afinal, o futuro previsto, que é antes de tudo o futuro da arte (porque esta mais não é que a vanguarda da civilização), não tem de ser necessariamente o totalitarismo high tech que se disfarça de Utopia na obra de Aldous Huxley, embora aquela comece no mais interior e frágil do ser humano: o embrião (que é condicionado de maneira a satisfazer as necessidades do estado). Afinal, as máquinas não são feitas apenas dos tentáculos poderosos e feitos de pedaços de metal enferrujado. Afinal ainda as controlamos, se bem que secretamente se dissolvam os velhos problemas do homem no irreconhecível ritmo da produção massificada que, como um pesadelo colectivo, se tornou paradigma biomecânico. Ainda as controlamos? Ou será que, sem nos apercebermos, tornámo-nos em máquinas vivas? Ou sempre o fomos, e com a ajuda destas - com a que escrevo, com a que navego, com que projecto o mundo - transformámos as noções da filosofia, de deus, da escala, da arte? É nesta que surgem os presságios de mudança, e por isso a refiro no início deste texto.
É em A Strangely Isolated Place que se pressente a utopia, de minúsculo "u", e a presença do homem na máquina. O homem podemos ser nós. Porque no caso de Ulrich Schnauss, a música não nos preenche. Nós é que a preenchemos com o que desejarmos, com o mais sagrado humano e com as moléculas do nosso tesouro interior. Com o que sobra da preciosidade e da candura. Às estruturas braquiais das máquinas, ao convite da linguagem binária e infinita (vão ser as máquinas que nos vão embalar na semi-eterna viagem interestelar), respondemos com a irregularidade e o ruídos das fotos amareladas e granuladas. Com as fotos, isto é, com as recordações esculpidas com o tempo, como sabia Marguerite Duras. Por enquanto, somos semi-crianças abandonadas num minúsculo conto de fadas de uma hora, um minuto e cinquenta segundos. Cabem lá todos os nossos passos. O medo, a angústia, a descoberta. Cabe lá o mar. Cabem as manhãs. E, a abraçar as árvores, o Verão.
Ulrich Schnauss saberá o que é o Verão para lá da Alemanha e da Berlim onde nasceu? Saberá o que é o Verão para além do quarto e do laptop? Ou o "Clear Day", o dia claro que transborda do suporte digital para o quarto, primeiro, e depois para o exterior, obrigando-nos a ver imensidões azuis claras onde existe a chuva, através de tempestades de ondas sonoras transmutadas em fotões e, assim, na própria luz, não passa de um conjunto de vectores, de cenários construídos para nos sossegarem no conforto da felicidade pré-estabelecida e da dissimulada estrutura maquinal Saberemos reconhecer o que é o Verão quando ele nos surge em forma de som? Quantos verões cabem entre os 20 e os 20 000 Hz, ou seja, nos limites da audição humana? E quantas horas de radiação recebemos ao ouvir "A Strangely Isolated Place"? E será que as hipotéticas dores de cabeça desaparecem com "Monday Paracetamol"? Ou desaparecemos nós, o nosso corpo, e sobra apenas o despojo da percepção? Ou ainda, aquele estende-se inerte, imune a todo e qualquer movimento cinco centímetros para além do limite da pele, qual receptáculo de um conteúdo precioso? Desta forma, soçobramos nos momentos-limite (Schnauss não se limita a uma só camada sonora homogénea: a sua música faz transparecer um vocabulário alargado, dos primeiros álbuns de Casino versus Japan a Manual ou Isan), mas o finíssimo limbo nunca se quebra (como o fio de saliva entre duas bocas), nunca se degrada, nunca morre. A viagem das máquinas há-de continuar sempre, e prolongar o nosso Verão. Para os nossos ouvidos, não existem nem máquinas nem homens. Apenas a textura pode deixar de ser rugosa, e a praia verdadeira. Mas a evocação emocional atinge territórios vastos,e territórios temporais também. O Verão durará cinco mil milhões de anos, tanto como o próprio Sol. Para nós, ele é, para todos os efeitos, eterno.
Nuno Cruz

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