DISCOS
Danielson
Trying Hartz
· 31 Mar 2009 · 11:16 ·
Danielson
Trying Hartz
2008
Secretly Canadian / Flur


Sítios oficiais:
- Danielson
- Secretly Canadian
- Flur
Danielson
Trying Hartz
2008
Secretly Canadian / Flur


Sítios oficiais:
- Danielson
- Secretly Canadian
- Flur
Caso atípico do indie norte-americano (e cristão) conhece merecido compêndio de uma década feita de canções invejavelmente genuínas.
O critério de escolha, aplicado na colectânea Trying Hartz, diz muito sobre a postura de Daniel Smith e da sua Danielson Famile. Sob o pretexto de reavaliar a produtividade de uma década de música, Trying Hartz poderia simplesmente satisfazer os fãs com um conjunto de temas dispersos e alguns inéditos. Fosse essa a opção, e o mais provável era que o curioso se desinteressasse, mesmo antes de chegar à quarta ou quinta faixa. Convenhamos que nem o roteiro “clássico” de Danielson inspira uma adesão fácil: num dia normal, Daniel Smith, capitão da família ruiva, serve-se de um falsete único para cantar tópicos abertamente cristãos, sem pudor na oscilação entre o registo eufórico e o moderado, ou sequer tentando encarrilar as suas canções num estilo facilmente reconhecível.

Goste-se ou não, a verdade é que Trying Hartz faz os possíveis para congregar os indecisos e os cépticos que possam ainda não ter dado o braço a torcer à Danielson Famile. Em dois discos completamente justificados, há espaço para momentos emblemáticos (“Body English” e “Rubbernecker”) e algumas versões ao vivo (todas fortes), além dos inevitáveis temas que, na altura, ficaram arredados dos álbuns. À boa maneira de Daniel Smith, nada e ninguém fica de fora.

Por sua vez, a história do indie foi igualmente simpática no escasso tempo que tomou até chegar a Danielson. Tal como confirmam as balizas 1994 / 2004, associadas ao período compreendido em Trying Hartz, bastou uma década para que germinassem as primeiras revisões de uma carreira, que, ainda assim, bateu mais forte do lado de lá do Atlântico. Assim aconteceu nem que seja porque encontrar um homem (o próprio Daniel Smith) a tocar guitarra com um traje de árvore (e os seus frutos) ainda é uma imagem mais aceite nos Estados Unidos do que na maioria dos países da Europa.

Esse e outros momentos marcam o passo do documentário Danielson: A Family Movie (Or, Make A Joyful Noise Here), retrato aprofundado de uma banda formada em família, com o intuito inicial de representar a tese académica de Daniel Smith (que, depois de um afastamento, redescobriu a vocação musical, desde sempre cultivada pelo seu pai). Em paralelo ao documentário, e desde que, em 2006, o fantástico álbum Ships marcou a viragem de página no livro Danielson (e a extensão da rede familiar), multiplicaram-se as reedições na Secretly Canadian de discos inicialmente lançados na Tooth & Nail, que, apesar da direcção cristã, nunca soube aproveitar totalmente o potencial do colectivo de Clarksboro (Nova Jérsia) e, com isso, destacá-lo num catálogo dominado pelo punk-rock melódico.

O azar sofrido na Tooth & Nail inverteu-se logo na estreia na Secretly Canadian. Quis o destino que fosse um dos mais diabólicos produtores da actualidade, Steve Albini, o responsável por alguma da maturação (e credibilidade) acumulada por Danielson, durante a estadia num estúdio de Chicago, onde foi gravada parte de Fetch The Compass Kids. Recorde-se que, em tempos, Steve Albini alegou que tratava os Pixies como gado durante as sessões de Surfer Rosa (clássico reconhecido pelo aproveitamento da tensão), sendo essa apenas uma das farpas no seu longo historial. Apesar disso, num par de cenas de Danielson: A Family Movie é possível encontrar Albini a falar amigavelmente com Daniel Smith, nos bastidores do All Tomorrow Parties, festival em que Danielson actuou a convite do produtor.

Trying Hartz explica algum desse reconhecimento, por parte de tão ácido vigilante de autenticidade como Steve Albini: este conjunto de canções visa, em primeiro lugar, celebrar o nome do Senhor (repetidamente adorado na suite quase-prog “A No No”) e só depois satisfazer um público maior, através do revestimento pop. E o propósito evangélico destas orações estilizadas é admirável quando a escrita de canções se apresenta repleta de inventividade. A partir do momento em que desobedece ao dogma “verso, refrão, verso”, uma canção de Danielson assume as formas mais imprevisíveis e inteligentes: a teatralização (entre muitas) de um episódio de assédio, em “Pottymouth”; um concurso de pergunta-resposta improvisado na hora, durante a quase palpável “Don’t You Be the Judge”; folk espiritual em apologia aos benefícios da Boa omnipresença, tal como se escuta em “Southern Paws”. Como que por milagre, praticamente tudo resulta.

Os que recusarem Trying Hartz como empurrão para apanhar o barco Danielson, dificilmente conhecerão outra oportunidade como esta (ainda que, depois de Ships, só o melhor se espere da Famile). É verdade que a voz estridente de Daniel Smith é capaz de demover imediatamente quem encosta o ouvido ao portão, mas era também inevitável que a farta recompensa devolvida pela música de Danielson exigisse algum tipo de redenção. No fundo, encontram-se aqui aplicados, de modo distinto, os recursos instrumentais utilizados por Sufjan Stevens (o aprendiz que superou o mestre Daniel) no muito mais consensual Illinoise. Basta alguma adaptação e um come on para que estas orações arrecadem mais um para junto dos corações.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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