O critĂ©rio de escolha, aplicado na colectânea Trying Hartz, diz muito sobre a postura de Daniel Smith e da sua Danielson Famile. Sob o pretexto de reavaliar a produtividade de uma dĂ©cada de mĂşsica, Trying Hartz poderia simplesmente satisfazer os fĂŁs com um conjunto de temas dispersos e alguns inĂ©ditos. Fosse essa a opção, e o mais provável era que o curioso se desinteressasse, mesmo antes de chegar Ă quarta ou quinta faixa. Convenhamos que nem o roteiro “clássico” de Danielson inspira uma adesĂŁo fácil: num dia normal, Daniel Smith, capitĂŁo da famĂlia ruiva, serve-se de um falsete Ăşnico para cantar tĂłpicos abertamente cristĂŁos, sem pudor na oscilação entre o registo eufĂłrico e o moderado, ou sequer tentando encarrilar as suas canções num estilo facilmente reconhecĂvel.
Goste-se ou nĂŁo, a verdade Ă© que Trying Hartz faz os possĂveis para congregar os indecisos e os cĂ©pticos que possam ainda nĂŁo ter dado o braço a torcer Ă Danielson Famile. Em dois discos completamente justificados, há espaço para momentos emblemáticos (“Body English” e “Rubbernecker”) e algumas versões ao vivo (todas fortes), alĂ©m dos inevitáveis temas que, na altura, ficaram arredados dos álbuns. Ă€ boa maneira de Daniel Smith, nada e ninguĂ©m fica de fora.
Por sua vez, a histĂłria do indie foi igualmente simpática no escasso tempo que tomou atĂ© chegar a Danielson. Tal como confirmam as balizas 1994 / 2004, associadas ao perĂodo compreendido em Trying Hartz, bastou uma dĂ©cada para que germinassem as primeiras revisões de uma carreira, que, ainda assim, bateu mais forte do lado de lá do Atlântico. Assim aconteceu nem que seja porque encontrar um homem (o prĂłprio Daniel Smith) a tocar guitarra com um traje de árvore (e os seus frutos) ainda Ă© uma imagem mais aceite nos Estados Unidos do que na maioria dos paĂses da Europa.
Esse e outros momentos marcam o passo do documentário Danielson: A Family Movie (Or, Make A Joyful Noise Here), retrato aprofundado de uma banda formada em famĂlia, com o intuito inicial de representar a tese acadĂ©mica de Daniel Smith (que, depois de um afastamento, redescobriu a vocação musical, desde sempre cultivada pelo seu pai). Em paralelo ao documentário, e desde que, em 2006, o fantástico álbum Ships marcou a viragem de página no livro Danielson (e a extensĂŁo da rede familiar), multiplicaram-se as reedições na Secretly Canadian de discos inicialmente lançados na Tooth & Nail, que, apesar da direcção cristĂŁ, nunca soube aproveitar totalmente o potencial do colectivo de Clarksboro (Nova JĂ©rsia) e, com isso, destacá-lo num catálogo dominado pelo punk-rock melĂłdico.
O azar sofrido na Tooth & Nail inverteu-se logo na estreia na Secretly Canadian. Quis o destino que fosse um dos mais diabĂłlicos produtores da actualidade, Steve Albini, o responsável por alguma da maturação (e credibilidade) acumulada por Danielson, durante a estadia num estĂşdio de Chicago, onde foi gravada parte de Fetch The Compass Kids. Recorde-se que, em tempos, Steve Albini alegou que tratava os Pixies como gado durante as sessões de Surfer Rosa (clássico reconhecido pelo aproveitamento da tensĂŁo), sendo essa apenas uma das farpas no seu longo historial. Apesar disso, num par de cenas de Danielson: A Family Movie Ă© possĂvel encontrar Albini a falar amigavelmente com Daniel Smith, nos bastidores do All Tomorrow Parties, festival em que Danielson actuou a convite do produtor.
Trying Hartz explica algum desse reconhecimento, por parte de tĂŁo ácido vigilante de autenticidade como Steve Albini: este conjunto de canções visa, em primeiro lugar, celebrar o nome do Senhor (repetidamente adorado na suite quase-prog “A No No”) e sĂł depois satisfazer um pĂşblico maior, atravĂ©s do revestimento pop. E o propĂłsito evangĂ©lico destas orações estilizadas Ă© admirável quando a escrita de canções se apresenta repleta de inventividade. A partir do momento em que desobedece ao dogma “verso, refrĂŁo, verso”, uma canção de Danielson assume as formas mais imprevisĂveis e inteligentes: a teatralização (entre muitas) de um episĂłdio de assĂ©dio, em “Pottymouth”; um concurso de pergunta-resposta improvisado na hora, durante a quase palpável “Don’t You Be the Judge”; folk espiritual em apologia aos benefĂcios da Boa omnipresença, tal como se escuta em “Southern Paws”. Como que por milagre, praticamente tudo resulta.
Os que recusarem Trying Hartz como empurrão para apanhar o barco Danielson, dificilmente conhecerão outra oportunidade como esta (ainda que, depois de Ships, só o melhor se espere da Famile). É verdade que a voz estridente de Daniel Smith é capaz de demover imediatamente quem encosta o ouvido ao portão, mas era também inevitável que a farta recompensa devolvida pela música de Danielson exigisse algum tipo de redenção. No fundo, encontram-se aqui aplicados, de modo distinto, os recursos instrumentais utilizados por Sufjan Stevens (o aprendiz que superou o mestre Daniel) no muito mais consensual Illinoise. Basta alguma adaptação e um come on para que estas orações arrecadem mais um para junto dos corações.