DISCOS
Mary Anne Hobbs
Evangeline
· 10 Set 2008 · 08:00 ·
Mary Anne Hobbs
Evangeline
2008
Planet Mu


Sítios oficiais:
- Mary Anne Hobbs
- Planet Mu
Mary Anne Hobbs
Evangeline
2008
Planet Mu


Sítios oficiais:
- Mary Anne Hobbs
- Planet Mu
Embaixadora destacada do dubstep revela soluções para a ressaca numa selecção abrangente (e excessivamente longa) de electrónica obscura entretanto apadrinhada.
Pese embora o risco de comparar a obra de uma lenda falecida à de alguém ainda vivo, são evidentes as semelhanças que aproximam os britânicos John Peel e Mary Anne Hobbs, enquanto divulgadores excepcionalmente incansáveis de música, veiculada principalmente através da rádio e tantas vezes seleccionada através de um critério pessoal (quase de autor), mais do que por obediência a uma nova tendência contemporânea ou hype instalado. Tecer elogios ao nome de John Peel, assim como à instituição que colocou de pé, durante a estadia recordista de quase quatro décadas na Radio 1 da BBC, obriga à consideração dos pilares sobre os quais ambos assentaram: um apurado e insaciável gosto por música e um alcance visionário favorável à observação dos primeiros passos da espécie rara, antes de esta se encontrar na mira de um público maior.

John Peel sempre fez por ser o fundador das suas próprias tendências. Sem se deixar prender pelas teias que atrapalham os imitadores, Mary Anne Hobbs confirmou o seu lugar na mesma Radio 1 da BBC, onde tem vindo a dirigir com sucesso o programa Breezeblock, muito por causa de ser exemplar herdeira dessa cultura de DJ que procura descobrir e dar conhecer, em vez de apenas saciar as massas com os mesmos êxitos repetidos. É verdade que a aparência atraente – loura e bem desenhada - e uma voz simpática – de amigalhaça incapaz de negar o convite para um pint - amparam a popularidade de Mary Anne Hobs junto do público britânico, que já se habituou a encontrá-la a apresentar entregas de prémios, mas não deve ser esse excesso de saúde responsável pela diminuição do desempenho de alguém permanentemente atento à electrónica urbana mais empenhada em desbravar caminho. Trata-se, afinal, de uma senhora geralmente reconhecida pela internacionalização do dubstep, coincidente com a transmissão do programa Dubstep Warz em Janeiro de 2006, e como principal responsável por sessões de Breezeblock na companhia de Burial, Benga ou Loefah ou de gente tão aclamada como os Beastie Boys ou Radiohead.

Alguém capaz de criar laços tão fortes com os produtores e os géneros que trabalham, acaba muito naturalmente por ter também o seu nome na lombada de discos reservados à música que normalmente celebra. Depois de ter escolhido o alinhamento para Warrior Dubz, compilação que documentava o momento dubstep tal como estoirado na sessão supramencionada, Mary Anne Hobbs aborda agora o seu principal “ganha pão” dos últimos anos como fenómeno em fase de rescaldo: a compilação Evangeline, ao contrário da sua antecessora, não ambiciona servir como manual de “quem é quem” dentro de um cenário efervescente, mas apenas oferecer mais algum tempo de antena a um grupo limitado de protegidos, que, por sua vez, devolve a gratidão sob a forma de faixas exclusivas (11 das 16 incluídas). Evangeline vale, além disso, como amostra eclética de electrónica capaz de transparecer a actualidade britânica após a passagem do furacão dubstep, sem cometer o pecado de solicitar os exemplos mais óbvios para tal efeito. A diversificação desse mote passa por atmosferas noir coloridas por fantasia digital, mergulhos suicidas filmados em delay dub, nós rítmicos de desenho étnico que nunca se afastam por completo do que é possível reproduzir organicamente. Pontos também para o arrojo que exige a inclusão de uma peça tão isolada nas suas peculiariedades como é o caso de “Theory of Machines”, a cargo de Ben Frost. Até porque os mais interessados na vertente dub da coisa podem não estar preparados para a violência do embate entre uma guitarra e uma muralha de ruído, que resulta depois num ritmo tão rude como as pedras tortas da calçada.

Com todos estes aspectos positivos em mente, não é de ânimo leve que se enumeram as duas anomalias que condenam Evangeline: em primeiro lugar, a inexplicável inclusão do medonho reggae festivo de “Up in the VIP”, crime nauseante da responsabilidade de Tes Le Rok (segredo de Helsínquia?) e Uncle Sam, e, em segundo, a duração de maratona da compilação nem sempre capaz de evitar alguns bocejos por efeito de uma ou outra “bola ao poste”. Para quem não estiver na sua sintonia, Evangeline excede alguns limites. A certa altura, parece repetir as mesmas sensações de aborrecimento que, em tempos, afectavam os falsos finais consecutivos de A.I. - Inteligência Artificial de Spielberg. Ambos constituem demandas - em toada sci-fi - rumo a uma identidade: A.I. procura humanidade num clone robótico, Evangeline condensa a vitalidade sobrante do dubstep. Ambos são incapazes de convocar um ponto final antes de se tornarem saturantes.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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