DISCOS
Subtle
Yell & Ice
· 25 Dez 2007 · 08:00 ·
O grandioso hip-hop de For Hero, For Fool, o fabuloso último disco dos Subtle, conhece compêndio à altura, admitindo a adesão de convidados de luxo.
A descaracterização que pode infligir uma vulgar remistura constitui um risco redobrado quando tem por matéria-prima uma iguaria de características tão específicas como a voz de Doseone, enigmático objecto de estudo sobre o qual muito já foi dito e muito haverá ainda a acrescentar. Partem incompatíveis a típica remistura e o MCing alienígena de Doseone por motivo de tudo o que no segundo resulta somente se permanecer contínuo e indivisível: uma sobrenatural fluência verbal que se move como um lince, que se revela como manifestação divina e que supera as condicionantes humanas ao soar como se partisse de um ser entregue ao mais puro nirvana. Assim se move um Doseone que um dia foi crucial à escalada do colectivo anticon. (conhecido pelo avanço conferido aos moldes do hip-hop na label do mesmo nome) e que agora ocupa os seus dias à frente de uns Subtle que, na sua matriz genética, garantem espaço ao género que serve de mote, sem deixarem de parte a hipótese de fundir isso com um rock de dilatado diâmetro que o torna adaptável a cenários de ficção-científica.
Mesmo que a flexibilidade musical dos Subtle promova os seus instrumentais a alvos preferenciais de quem remistura, não é menos verdade que a complexidade labiríntica da poesia de Doseone só muito dificilmente se conjuga bem com a malvadez fragmentária de um obreiro qualquer. A partir daí, aplaude-se o perspicaz conceito que leva o generoso mini-álbum Yell & Ice a recriar os temas incluídos no segundo longa-duração For Hero, For Fool sem banalizar ou violar as premissas sobre as quais o último se fez monumento de imaginação - antes reaproveitando-as para a inauguração de felizes coincidências provocadas pela inclusão em jogo (mesmo assim, dominado pelos Subtle) de membros dos Wolf Parade, TV on the Radio, The Notwist, Why? – reactivando, com este último, a célula cLOUDDEAD da anticon., se bem que apenas temporariamente. O conceito praticado abrange também o personagem Hour Hero Yes, identificado pelo rosto às listas sem boca nem nariz, que mais não é do que uma criação a cargo de Doseone que, muito provavelmente, procurará nela um elo adicional que una em transversalidade a trilogia que começou em A New White, continua em For Hero, For Fool, acumula complementos em lançamentos paralelos como Whishingbone e Yell & Ice e que conhecerá a sua conclusão num futuro terceiro disco.
A partir de certa altura, torna-se óbvio que contribui para a integridade de Yell & Ice o facto da sua elaboração ter sido confiada a músicos que mantêm alguma espécie de ligação afectiva com os Subtle. Sem tornarem esta iniciativa numa aparatosa acção de caridade, os participantes externos tiveram a atenção de auxiliar uns Subtle que têm sofrido demasiados azares ultimamente – surgem à cabeça um acidente em digressão que deixou um dos seus membros tetraplégico e um furto em Barcelona que encarregou às mãos do alheio vário equipamento, dinheiro e inestimáveis demos da banda. Para seu bem, Yell & Ice não se transformou num lacrimoso conto de fadas TVI e bem pode empinar o nariz se assim o entender, tal é o brilho autónomo dos disfarces que descobriu para os seus iniciais modelos de futurismo cromático colorido. Sente-se a subida que sofre a parada quando o já de si premente ritmo do original “Nomanisisland” passa a ser autêntico murro no estômago quando conhece a medonha companhia da autoritária presença que domina “Not”. Companhias desencontradas eram mesmo as vozes de Doseone (o mais fulminante) e de Tunde Adebimpe (o Tv on the Radio que é determinante entidade em segundo plano) que, no golpe de destino registado em “Deathful”, orientam a receita de tudo o que basta a Yell & Ice para se manter apontado ao infinito estelar: um compassado embate entre formas tomadas a recantos mais estranhos do rock e hip-hop, tornado mais magnifico por efeito da presença de duas ou mais vozes endeusadas (perto das que possamos imaginar aos Vigias do universo Marvel). “Deathful” é página arrancada a uma banda-desenhada que a esquizofrenia formou no mais lúcido dia do seu calendário.
Yell & Ice é, afinal, disco de hip-hop pronto a deixar a interrogação e espanto escancarados no rosto de quem possa achar que a vanguarda do género se encontra nos Da Weasel. É sobretudo um exemplo a seguir, atendendo a que consegue ser um compêndio a abarrotar de ideias sem que isso o force a soterrar a essência da fonte original. A bem da verdade, importaria também referir que um critério mais simplório não observaria com muitos bons olhos todas as ocasiões em que Yell & Ice se deslumbra com os seus recursos e os eleva ao cubo, produzindo todas aquelas batidas de envergadura industrial que muito soam ao choque ritmado de dois planetas. Sobra como justificação para isso a certeza de que, inversamente, Doseone e a realidade mundana representam dois planetas bem distantes. Yell & Ice conspira e consente isso mesmo, convidando a que todos se mantenham em órbita.
Miguel ArsénioMesmo que a flexibilidade musical dos Subtle promova os seus instrumentais a alvos preferenciais de quem remistura, não é menos verdade que a complexidade labiríntica da poesia de Doseone só muito dificilmente se conjuga bem com a malvadez fragmentária de um obreiro qualquer. A partir daí, aplaude-se o perspicaz conceito que leva o generoso mini-álbum Yell & Ice a recriar os temas incluídos no segundo longa-duração For Hero, For Fool sem banalizar ou violar as premissas sobre as quais o último se fez monumento de imaginação - antes reaproveitando-as para a inauguração de felizes coincidências provocadas pela inclusão em jogo (mesmo assim, dominado pelos Subtle) de membros dos Wolf Parade, TV on the Radio, The Notwist, Why? – reactivando, com este último, a célula cLOUDDEAD da anticon., se bem que apenas temporariamente. O conceito praticado abrange também o personagem Hour Hero Yes, identificado pelo rosto às listas sem boca nem nariz, que mais não é do que uma criação a cargo de Doseone que, muito provavelmente, procurará nela um elo adicional que una em transversalidade a trilogia que começou em A New White, continua em For Hero, For Fool, acumula complementos em lançamentos paralelos como Whishingbone e Yell & Ice e que conhecerá a sua conclusão num futuro terceiro disco.
A partir de certa altura, torna-se óbvio que contribui para a integridade de Yell & Ice o facto da sua elaboração ter sido confiada a músicos que mantêm alguma espécie de ligação afectiva com os Subtle. Sem tornarem esta iniciativa numa aparatosa acção de caridade, os participantes externos tiveram a atenção de auxiliar uns Subtle que têm sofrido demasiados azares ultimamente – surgem à cabeça um acidente em digressão que deixou um dos seus membros tetraplégico e um furto em Barcelona que encarregou às mãos do alheio vário equipamento, dinheiro e inestimáveis demos da banda. Para seu bem, Yell & Ice não se transformou num lacrimoso conto de fadas TVI e bem pode empinar o nariz se assim o entender, tal é o brilho autónomo dos disfarces que descobriu para os seus iniciais modelos de futurismo cromático colorido. Sente-se a subida que sofre a parada quando o já de si premente ritmo do original “Nomanisisland” passa a ser autêntico murro no estômago quando conhece a medonha companhia da autoritária presença que domina “Not”. Companhias desencontradas eram mesmo as vozes de Doseone (o mais fulminante) e de Tunde Adebimpe (o Tv on the Radio que é determinante entidade em segundo plano) que, no golpe de destino registado em “Deathful”, orientam a receita de tudo o que basta a Yell & Ice para se manter apontado ao infinito estelar: um compassado embate entre formas tomadas a recantos mais estranhos do rock e hip-hop, tornado mais magnifico por efeito da presença de duas ou mais vozes endeusadas (perto das que possamos imaginar aos Vigias do universo Marvel). “Deathful” é página arrancada a uma banda-desenhada que a esquizofrenia formou no mais lúcido dia do seu calendário.
Yell & Ice é, afinal, disco de hip-hop pronto a deixar a interrogação e espanto escancarados no rosto de quem possa achar que a vanguarda do género se encontra nos Da Weasel. É sobretudo um exemplo a seguir, atendendo a que consegue ser um compêndio a abarrotar de ideias sem que isso o force a soterrar a essência da fonte original. A bem da verdade, importaria também referir que um critério mais simplório não observaria com muitos bons olhos todas as ocasiões em que Yell & Ice se deslumbra com os seus recursos e os eleva ao cubo, produzindo todas aquelas batidas de envergadura industrial que muito soam ao choque ritmado de dois planetas. Sobra como justificação para isso a certeza de que, inversamente, Doseone e a realidade mundana representam dois planetas bem distantes. Yell & Ice conspira e consente isso mesmo, convidando a que todos se mantenham em órbita.
migarsenio@yahoo.com
ÚLTIMOS DISCOS


ÚLTIMAS