DISCOS
J Dilla
Ruff Draft
· 19 Jul 2007 · 08:00 ·
J Dilla
Ruff Draft
2007
Stones Throw / Flur


Sítios oficiais:
- J Dilla
- Stones Throw
- Flur
J Dilla
Ruff Draft
2007
Stones Throw / Flur


Sítios oficiais:
- J Dilla
- Stones Throw
- Flur
Falecido produtor predilecto dos produtores revisitado em obra de puro hip-hop que, é ao mesmo tempo, manifesto de auto-suficiência e superante vontade criativa.
O recheio da obra que J Dilla (ou Jay Dee) acumulou em vida mede-se também pelo tipo de homenagens que lhe foram dedicadas após o seu falecimento em Fevereiro do ano passado, por agravamento de uma doença sanguínea rara. Embora consensuais e espalhados por toda a indústria hip-hop, os tributos prestados nunca chegaram à escala do folclore mediático que se sentiu em tempos aos telediscos celestiais e tréguas simbólicas efectuados em memória de Notorious BIG e 2 Pac. Quando cessou a sua vida, o legado e importância de J Dilla emergiu através da revisão exaustiva das suas beat tapes e do seu trabalho imensurável como produtor, muito mais do que por meio de um rosto icónico estampado a branco numa longa t-shirt preta. Injustamente, J Dilla conquistou o seu lugar no Olimpo do hip-hop apenas quando a sua carreira conheceu um término forçoso.

Assim foi talvez por capricho dos reveses de uma indústria que adopta espíritos infinitamente criativos sem saber muito vezes como os comercializar ou criar as condições mais favoráveis para materializar o número de discos a que se comprometem os artistas contratualmente. Serve isto para esclarecer que não terá sido o mais estável momento aquele em que a grande label MCA, prestes a ser aglutinada pela Geffen e a arrastar consigo Common e os Roots, escolheu para garantir em catálogo dois discos completos de J Dilla - muito provavelmente encantada pelo rendimento do prodígio de Detroit enquanto produtor (em regime solitário e nos colectivos Ummah e Soulquarians, ao lado de ases do hip-hop como Q-Tip e ?uestlove). A suspeita que sobra desse período intransitivo revela-se como faca de dois gumes: a instabilidade da MCA pode bem ter sabotado os álbuns que haveriam de afirmar J Dilla além da esfera esclarecida do hip-hop, mas, se assim não tivesse sido, poderíamos apenas especular acerca da direcção que assumiria o labor de JD caso se se consumasse a ascensão global para a qual parecia talhado.

Felizmente, ainda existe uma herança bem palpável dessa produtividade mantida à margem do que a indústria dita viciosamente como material de topo (encenando novelas de rivalidade e folhetins cheios de boatos). Antes de marcos no reino do hip-hop independente, como foi o caso dos póstumos Donuts e The Shining, existiu um Ruff Draft subterraneamente determinante aquando do seu lançamento em 2003 e historicamente significante (e revitalizante) agora que é reeditado em 2007, ano 0 da linha cronológica dividida pelo anúncio de Nas que, no seu mais recente disco, declarou o hip-hop como um género morto.

Enquanto ponto inicial do back to basics a que se viu quase obrigado J Dilla, Ruff Draft, reeditado pela Stones Throw após limitadíssima edição em 12 polegadas lançado apenas na Alemanha, é também documento da perícia ninja que leva um produtor a desenvencilhar-se à sua maneira DIY, terapia para a frustração de um criativo que se vê emaranhado num limbo editorial, e renúncia à luxúria tecnológica própria dos discos amanhados sob uma pressão ansiosa de êxitos. Os inspirados exercícios incluídos em Ruff Draft representam, à sua maneira, êxitos que mantiveram as suas características mais ásperas e um núcleo cru que só torna mais conciso o lançamento originalmente pensado como um EP. Leva isso a que nada pareça fingido num diamante bruto concebido a pensar nos real niggas only, que valorizam o calor do som directamente extraído à cassete e a potencialidade orgânica do que soa como se tivesse sido executado ao vivo. Ruff Draft orgulha-se de ser perceptivelmente inacabado na colagem quase artesanal dos samples que inundam “Reckless Driving” ou na guitarra funk que serve à maratona sexual de “Crushin’ (Yeeeeaah!)” (estranhamente clean no refrão que omite o u ao fuck all night).

Porém, nem tudo são trunfos no baralho J Dilla. Embora procure a glorificação das suas aptidões eximias enquanto produtor ofuscar algumas das suas fragilidades, a verdade é que J Dilla não convence muito em termos de MCing (a postura quero lá saber assumida na voz não justifica a redundância temática e o registo algo monótono). Subversivamente, apontar-se-ia esse como o principal motivo para a inclusão do siamês segundo disco de instrumentais que acompanha esta edição luxuosa. Mas não é por aí que rui o castelo. Isto porque, sem nunca ter sido planeado como um trabalho para impressionar as massas, Ruff Draft sobrevive sólido como aço enquanto cápsula de alguns dos mais imperantes ensinamentos que tem vindo a esquecer o hip-hop mais anémico. A franqueza de um apaixonado pela sua vocação prevaleceu a uma indústria logísticamente adversa. Atraindo a sorte que faltou depois a J Dilla na mais fatal hora da sua vida, Ruff Draft confirma com distinção que existem realmente males que vêm por bem.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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