Creative Sources 2012-2014: Improvisação contínua
· 19 Out 2014 · 23:21 ·
© Nuno Martins


Ao leme da editora Creative Sources o violista Ernesto Rodrigues tem sido responsável pela construção de um arquivo sonoro que já se aproxima dos trezentos volumes. Fundada no ano de 2001, e actualmente já com 285 discos editados, a editora tem hoje em dia um catálogo fenomenal, verdadeiramente representativo daquilo que é a improvisação no século XXI. Especialmente associada ao reducionismo, a editora não se tem limitado a uma estética única, com algumas aproximações ao free jazz e à improvisação mais abrangente, promovendo sobretudo músicas que privilegiam o detalhe e o pormenor sonoro. Pelas edições da Creative Sources têm passado músicos portugueses essenciais (como Manuel Mota, Margarida Garcia, Hernâni Faustino, Rafael Toral ou Sei Miguel), além de figuras internacionais (como Peter Evans, Radu Malfatti, Oren Marshall, Rhodri Davies, Axel Dörner, Mazen Kerbaj, Dan Warburton, Urs Leimgruber, Tetuzi Akyiama, Christian Lillinger, Jean-Luc Guionnet, entre muitos outros). Na continuação ao trabalho de revisão da obra da editora (depois de termos passado pelos períodos de 2005-2006 e 2007-2010), fazemos agora uma recapitulação ao trabalho mais recente da editora, com uma selecção de álbuns editados nos últimos três anos, todos contando com a participação do violista e mentor da editora, Ernesto Rodrigues. A improvisação continua.
 

Nie
Ernesto Rodrigues / Christine Abdelnour / Axel Dörner
Creative Sources - 2012


 
Este disco reúne o omnipresente Ernesto Rodrigues (na viola) com dois parceiros internacionais: a libanesa Christine Abdelnour (ex-Sehnaoui) no saxofone alto e o alemão Axel Dörner no trompete. Ao longo de três temas – estranhamente designados de “oft”, “of” e “fto” – o trio trabalha uma massa sonora tranquila, subtil, com as ideias bem entrelaçadas, num contínuo processo de encontro e desencontro. É particularmente interessante o trabalho no último tema, com sopros e cordas que, sem desenharem notas nem sons tradicionais (o ar a passar pelo metal, o dedilhar nas chaves, o arco quase imperceptível), vão desenhando sons abstractos que se vão articulando num curioso modo de comunicação.
 

Fabula
Axel Dörner / Ernesto Rodrigues / Abdul Moimême / Ricardo Guerreiro
Creative Sources - 2012
 

 
Mantendo dois elementos do disco anterior, Axel Dörner no trompete e Ernesto Rodrigues na viola, este disco junta dois outros músicos portugueses ao processo de construção musical: Abdul Moimême (na guitarra eléctrica preparada) e Ricardo Guerreiro (no laptop/computador). Aqui temos um som mais abrasivo (ainda que de forma controlada), com o trompete de Dörner em óbvio destaque desde o começo. Além, do trompete e da viola (sempre muito presente), vai ganhando destaque a contribuição de Abdul Moimême, com os seus sons metálicos. Do computador de Guerreiro saem novas camadas de sons, de forma discreta.
 

 

Monochrome bleu sans titre
IKB Ensemble
Creative Sources - 2012

 
Surgido das cinzas da Variable Geometry Orchestra (VGO), o IKB Ensemble é uma formação de grande dimensão que trabalha a improvisação sob direcção de Ernesto Rodrigues. Para este disco de estreia reuniu um grupo alargado de músicos improvisadores nacionais: Guilherme Rodrigues (violoncelo); Miguel Mira (contrabaixo); Rogério Silva (trompete); Eduardo Chagas (trombone); Bruno Parrinha (clarinete, clarinete alto); Nuno Torres (saxofone alto); Pedro Sousa (saxofones tenor e barítono); Abdul Moimême (guitarra eléctrica preparada); Carlos Santos e Ricardo Guerreiro (computador); Monsieur Trinité, Nuno Morão e José Oliveira (percussão); e Ernesto Rodrigues (harpa e piano – excepções ao instrumento habitual, a viola). Apesar da quantidade de músicos e da multiplicidade de recursos, a música gerada pelo colectivo é marcada pela moderação, sempre controlada, sem dar lugar à expansividade. Inspirado por Yves Klein, que criou a cor “International Klein Blue” (IKB), este ensemble trabalha uma música assente em fervilhantes pequenas ideias, mas sem nunca chegar a explodir.
 

Three Rushes
Ernesto Rodrigues / Katsura Yamauchi / Carlos Santos
Creative Sources - 2012



Ernesto Rodrigues utiliza aqui (novamente) a harpa, acompanhado por Katsura Yamauchi no sax alto e Carlos Santos, parceiro regular, no computador/electrónica. Os três temas que correspondem a três cenas: “Cookie's birth”, “Cookie's role” e “Cookie's departure”. A música do trio é trabalhada, como habitualmente, de forma contida, precisa. A segunda faixa (“Cookie's role”) é paradigmática do trabalho do trio: a harpa é utilizada de forma pouco convencional, apenas pontualmente se reconhece o seu som tradicional; o saxofone de Yamauchi repete obsessivamente o mesmo som, de forma repetida; e Santos fornece um leve tapete textural, em fundo.


 

Late Summer
Ernesto Rodrigues / Radu Malfatti / Ricardo Guerreiro
Creative Sources - 2013
 
 
Além de Ernesto Rodrigues (viola) e Ricardo Guerreiro (laptop), este disco conta com a presença de uma lenda viva da improvisação livre europeia - o histórico Radu Malfatti, no trombone. Neste disco duplo a homenagem ao veterano austríaco (pioneiro da improvisação, percursor do reducionismo) faz-se pela imposição absoluta do silêncio. Assim, a presença dos instrumentos passa a ser quase microscópica, ficando a música despida até ao tutano, numa contenção brutal. Este ritual de celebração do silêncio - e de Malfatti - prolonga-se durante uns exactos quarenta minutos, em cada um dos discos.
 

 

Lisboa
Cyril Bondi / D’Incise / Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Lisa Ullén
Creative Sources - 2012

 
Para este disco foram reunidos os músicos Cyril Bondi (percussão), D’Incise (electronic) e Lisa Ullén piano, além da dupla Ernesto e Guilherme Rodrigues (viola e violoncelo, pai e filho, respectivamente). Os nomes dos cinco temas que compõe o disco foram roubados aos bairros históricos de Lisboa: “Alfama”, “Bairro Alto”, “Alcântara”, “Graça” e “Lapa”. O disco foi gravado em Lisboa em 2012, por altura dos Santos Populares, o que talvez justifique o título do disco e dos respectivas faixas, mas que não se reflecte na música - Ernesto não abdica da coerência estética. O quinteto trabalha uma música focada no coletivo, soando quase como uma voz única. A união sonora é constante, raramente há desvios ao caminho comum traçado.
 

 

Seattle
Ernesto Rodrigues / Jonathan Sielaff / Vic Rawlings / Leif Sundstrom / Gust Burns / Manuel Mota
Creative Sources - 2012
 
 
Dividido em dois temas, este disco conta com duas formações diferentes, dois quartetos distintos. No primeiro tema estão reunidos Ernesto Rodrigues (viola), Jonathan Sielaff (clarinete baixo), Vic Rawlings (violoncelo, electrónica) e Leif Sundstrom (electrónica). Para o segundo tema juntam-se Ernesto Rodrigues (viola), Jonathan Sielaff (clarinete baixo), Gust Burns (piano) e o português Manuel Mota (guitarra eléctrica). Gravado no ano de 2006, no Seattle Improvised Music Festival (EUA), o álbum arranca de forma minimal, mas vai crescendo, evoluindo de forma surpreendente. Especialmente interessante é o segundo tema, com a guitarra de Mota a destacar-se, apesar da fidelidade ao registo contido, lançando pistas para outras direcções.
 

 

Berlin
Chris Heenan / Ernesto Rodrigues / Alexander Frangenheim / Ofer Bymel
Creative Sources - 2013
 
 
Gravado em Berlim, no ano de 2010, este disco reúne um quarteto über-internacional: o americano Chris Heenan (saxofone alto, clarinete contrabaixo), o alemão Alexander Frangenheim (contrabaixo), o israelita Ofer Bymel (percussão) e o português Ernesto Rodrigues (viola). O álbum tem por subtítulo “A Suite In Six Parts”, com os músicos a apresentarem uma peça repartida em seis momentos/blocos. Ao segundo tema ouvem-se picos de intensidade, com os instrumentos em choque; ao terceiro ouve-se o grupo unido num quase-drone; o quarto tema fecha em turbulência; ao quinto tema as cordas entram num animado diálogo/confronto. Este quarteto não repete ideias, trabalha diferentes ambientes, sempre de forma original.
 

 

All About Mimi
Ernesto Rodrigues / Ricardo Guerreiro / Christian Wolfarth
Creative Sources - 2013
 
 
Num dos bairros históricos da cidade de Lisboa, onde foi gravado este disco, há uma prostituta de uma certa idade chamada Mimi. Não sabemos se o título evoca esta senhora ou se se refere à homónima cantora dos Hugo Largo, Mimi Goese. Talvez evoque uma outra Mimi, menos sumptuosa, mais delicada e subtil, tendo em conta a quietude da música. Com Ernesto Rodrigues viola, Ricardo Guerreiro na electrónica (laptop) e o suíço Christian Wolfarth na percussão, ao longo destas quatro faixas ouvimos alguma da música mais contida e concentrada de todos estes volumes – a quietude da metade inicial deste disco só terá rival no álbum gravado em trio com Radu Malfatti, Late Summer. Em destaque neste disco está o laptop de Ricardo Guerreiro, que tem um papel determinante na direcção da música do trio, particularmente na segunda metade do disco, roubando o protagonismo ao silêncio.
 

 

Asteres Planetai
Ernesto Rodrigues / Nuno Torres / Mike Bullock
Creative Sources - 2013
 
 
Os astrónomos gregos utilizavam a expressão “asteres planetai” - “estrelas errantes” - para classificar os objetos que aparentemente se movem no céu. Ao longo das três faixas deste disco o trio constituído por Ernesto Rodrigues (viola), Nuno Torres (sax alto) e Mike Bullock (sintetizador modular) desenvolve uma música que parece viajar na atmosfera sideral. Não é um voo tumultuoso, é um trajecto planante em piloto automático, sem surpresas, sem grandes desvios de rota ou obstáculos de maior. De uma forma geral o trio revela estar muito focado e coeso. Os pontuais momentos de maior intensidade partem do sintetizador de Bullock. Rodrigues, Torres e Bullock podem não ser estrelas, mas vão-se movendo, ainda que de forma tranquila. 
 

 

Alba
Ernesto Rodrigues / Louis Laurain / Guilherme Rodrigues / Ricardo Guerreiro
Creative Sources - 2013
 
 
O trompetista francês Louis Laurain é o principal ponto de destaque de um quarteto que reúne colaboradores regulares, que se conhecem muito bem, de muitas gravações e muitas actuações. Ao lado de Laurain estão Ernesto (na viola), Guilherme (no violoncelo) e Ricardo Guerreiro (no computador). Mais uma vez apontando a um registo de extrema sobriedade, com o trompetista a integrar-se facilmente no alinhamento sonoro do grupo, as contribuições de cada elemento são precisas. O laptop de Guerreiro volta a destacar-se entre o quarteto, com uma prestação sólida.
 

 

Paris
Axel Dörner / Ernesto Rodrigues / Abdul Moimême / Ricardo Guerreiro
Creative Sources - 2013
 
 
“La Révolution des Oreilles” é o título da faixa única - de quarenta minutos - que enche este disco. Ao lado de Ernesto Rodrigues (viola), estão dois músicos nacionais: António Chaparreiro na guitarra eléctrica e José Oliveira na percussão. Gravado em Paris, no ano de 2002, desvia-se um pouco da discrição habitual, com cada um dos instrumentos a ter mais espaço e protagonismo. A guitarra de Chaparreiro lança faíscas, as percussões de Oliveira enchem o espaço e a viola de Ernesto, com a maleabilidade do costume (no arco ou no pizzicato), adapta-se e unifica o som do colectivo. Esta improvisação, mais livre e liberta, soa afastada do trabalho mais recente de Rodrigues, o que se justifica pela época em que o material foi gravado (no ano de 2002).
 

 

Trees
Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Gianna De Toni / Christophe Berthet / Raphaël Ortis 
Creative Sources - 2013
 
 
A dupla Rodrigues – o pai Ernesto na viola, o filho Guilherme no violoncelo – encontra-se neste Trees com três parceiros internacionais: os suíços Christophe Berthet (saxofone soprano) e Raphaël Ortis (baixo eléctrico e objectos) e a italiana Gianna De Toni (contrabaixo). Os cinco temas que constituem o disco debruçam-se sobre árvores: “Ancient Trees”; “Whistling Trees”; “Lonely Trees”; “Moonlit Trees”; “Tree of Life”. Apesar da aparente imobilidade, a música aqui está viva e flui, embora sem grandes sobressaltos. Trabalhando numa metódica e rigorosa construção sonora, este quinteto transnacional não se deixa ficar, como no livro de Mário Ventura, à sombra das árvores mortas.
 


Early reflections
Ernesto Rodrigues / Bertrand Gauguet / Ricardo Guerreiro
Creative Sources - 2014



O francês Bertrand Gauguet (no sax alto) é o joker deste trio, onde se juntam os habituais Ernesto Rodrigues (na viola) e Ricardo Guerreiro (no computador). O disco conta apenas com dois temas, com cerca de meia hora cada um: o primeiro foi gravado em estúdio, no dia 14 de Julho de 2013; o segundo foi gravado ao vivo no Panteão Nacional, nesse mesmo dia. A primeira faixa assenta num zumbido quase permanente, sobre o qual são semeados apontamentos delicados. Na segunda faixa o processo é semelhante, com o saxofone de Gauguet em maior evidência, evoluindo para momentos de grande saturação sonora (o que é bem-vindo). Das duas faixas, uma chama-se “Wood”, a outra chama-se “Stone”. Falta o papel? Não, está óptimo assim.
 

 

Anthropométrie sans titre 
IKB Ensemble
Creative Sources - 2014

 
Para o segundo registo do Ensemble IKB Ernesto Rodrigues (desta vez em violino barítono) volta a fazer-se acompanhar por uma grandiosa “big band”. Além de Guilherme Rodrigues, Miguel Mira, Bruno Parrinha, Nuno Torres, Carlos Santos e José Oliveira, que já tinham gravação do primeiro disco, juntam-se outros músicos de primeira linha da cena improvisada nacional. Neste disco tocam ainda: Yaw Tembe (trompete), Gil Gonçalves (tuba), Maria Radich (voz), Armando Pereira (acordeão), António Chaparreiro (guitarra eléctrica) e Rodrigo Pinheiro (piano). A estratégia adoptada para este disco é a mesma do primeiro registo, com os músicos a mostrarem uma incrível concentração, sussurrando ideias sem desfazer o novelo geral, numa impecável união colectiva. Entretanto acaba de sair mais um disco do IKB Ensemble, o seu terceiro, que tem por título Rhinocerus. A improvisação não pára.
Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

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