© Teresa Ribeiro |
Em seis anos de actividade editorial a Creative Sources Recordings afirmou-se no plano internacional como uma das mais relevantes etiquetas especializadas nas novas tendências de improvisação. Com mais de oitenta discos editados até ao presente momento, a editora fundada e dirigida por Ernesto Rodrigues vem documentando de forma surpreendentemente activa as movimentações nas músicas improvisadas neste início de século XXI, tendo-se focalizado principalmente em redor da estética reducionista (mas não só). Para além de ter registado trabalhos dos mais importantes exploradores nacionais (Margarida Garcia, Rafael Toral, Sei Miguel), fazem parte do catálogo da editora nomes de referência como Tetuzi Akiyama, Günter Müller, Oren Marshall, Rhodri Davies, Axel Dörner, Mazen Kerbaj, Dan Warburton, entre vários outros. No entanto, a maior fatia de contributo criativo para o catálogo da editora vem do seu próprio líder, Ernesto. Participante em quinze álbuns, o violinista explora em cada situação diferentes instrumentações, registos e colaboradores, apresentando em cada disco um trabalho fresco, ímpar, irrepetível. Estudioso do compositor Emmanuel Nunes, Rodrigues advoga que a composição está presente no seu trabalho, mesmo que seja trabalhada em tempo real e não seja evidente. Sobre este facto, afirmou numa entrevista ao Bodyspace: “Mesmo quando se improvisa, há uma gestão/estruturação de materiais contínua em tempo real e a minha formação passa sem dúvida pela absorção de inúmeros conceitos e métodos que intrinsecamente se ligam à sua fortíssima personalidade musical e humana.” A exploração textural e sónica que Ernesto Rodrigues faz da viola (ou, ocasionalmente, violino) é apenas uma extensão do seu trabalho musical, que tem na interacção talvez a parcela mais importante. Estes sete registos aqui referenciados documentam a fase mais recente da produção de Ernesto Rodrigues (2005/2006) e são uma mostra irrefutável de dinâmica e fulgor criativo.
Ernesto Rodrigues / Michael Thieke / Guilherme Rodrigues / Carlos Santos Kreis |
O mais fiel colaborador de Ernesto é o seu filho Guilherme. Habitualmente dedicado ao violoncelo, neste disco - como em alguns outros contextos específicos - Guilherme Rodrigues aproveita para explorar também o pocket trumpet (o instrumento de outro dos nomes maiores da vanguarda nacional, Sei Miguel). Para além da companhia do filho, neste Kreis Ernesto Rodrigues (violino e viola) faz-se acompanhar do alemão Michael Thieke (clarinetes) e ainda de Carlos Santos – que habitualmente trata do design das capas da Creative Sources - na electrónica (laptop). A abordagem textural que o quarteto desenvolve apresenta quase sempre formas minimais, mas a música chega a insinuar-se também em formas ruidosas que chegam a ser prolongadas por vários segundos. Este círculo (tradução da palavra alemã kreis) é composto por sete temas que se dividem em vários graus, desde o 0º ao 360º. A música desde quarteto nunca chega a ser cíclica, mas funciona num círculo que se encerra na cumplicidade entre os intervenientes.
Ernesto Rodrigues / Toshihiro Koike / Guilherme Rodrigues Sen |
Ao trigésimo terceiro título do catálogo Creative Sources a dupla Rodrigues (Ernesto e Guilherme) junta-se ao japonês Toshihiro Koike. O trombone de Koike adiciona novas tonalidades às habituais explorações criativas da dupla de cordas (Guilherme aqui utiliza também o pocket trumpet), concretizando um espaço sonoro mais preenchido do que é habitual. As duas peças que caracterizam este Sen (“First Line” + “Second Line”) são também mais prolongadas no tempo, com cerca de vinte e três minutos cada uma – duas sessões de improvisação em que o tempo não é limitado para impedir a busca de novos sons, nem demasiado extenso para se cair em redundâncias.
Barry Weisblat / Alfredo Costa Monteiro / Ernesto Rodrigues Diafon |
Este Diafon é um raro documento em que Ernesto Rodrigues surge sem a companhia do filho Guillherme - nesta gravação Ernesto utiliza, para além do habitual violino, pick-ups e objectos. A acompanhá-lo estão o americano Barry Weisblat (electrónica) e Alfredo Costa Monteiro, improvisador português radicado em Barcelona, em gira-discos. Nestes cerca de trinta e cinco minutos (faixa única) de improvisação o trio esboça uma sonoridade visceralmente rugosa, por vezes quase como que aparentada a formas de noise, com uma intensidade pouco comum. A predominância das electrónicas é bem patente e este álbum afasta-se completamente da profundidade acústica da maioria dos registos anteriores e das marcas sonoras que habitualmente associamos à música de Ernesto Rodrigues.
Ernesto Rodrigues / Guilherme Rodrigues / Oren Marshall / Carlos Santos / José Oliveira Kinetics
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Para este Kinetics, registo em quinteto, Ernesto Rodrigues (violino, viola) convidou o inglês Oren Marshall (tuba), congregando também a trupe de colaboradores habituais: Guilherme Rodrigues (violoncelo, pocket trumpet), Carlos Santos (electrónica) e José Oliveira (percussão). Às intervenções electrónicas do laptop de Santos, as respostas texturais da percussão de Oliveira e da dupla Rodrigues acabam por funcionar em dissonância. A tuba de Marshall, improvisador inglês que colaborou com Derek Bailey, acrescenta maior densidade ao som do grupo, uma malha de estímulos diversos onde se assinalam várias marcas de individualidade.
Wade Matthews / Ernesto Rodrigues / Bechir Saadé / Guilherme Rodrigues |
Nas liner notes deste disco o americano Wade Matthews, residente em Madrid, problematiza a questão da associação de cores à música. E interroga-se porque motivo o laranja é pouco referenciado nos meios musicais (salvando a notória excepção de “Orange Was the Colour of Her Dress, Then Blue Silk” de Charles Mingus). A cor de laranja é então o motivo que juntou a dupla Rodrigues (Ernesto na viola, Guilherme no violoncelo) ao americano Matthews (clarinete baixo, flauta e electrónicas) e ao libanês Bechir Saadé (clarinete baixo) numa sessão de improvisação em Lisboa. Este é mais um registo em que a expansividade de cada instrumentista acaba por ficar reservada, em favor de uma toada plena de quietude. Há certamente momentos em que as difusões individuais são incontornáveis, mas de modo geral a unidade colectiva acaba por prevalecer.
Ernesto Rodrigues / Sharif Sehnaoui / Christine Sehnaoui / Guilherme Rodrigues |
É um assunto de família, mas não só. O título, evocativo da cançoneta de Sly & The Family Stone, não é enganador: aqui reúnem-se dois duos que partilham apelidos. Por um lado estão os habituais Rodrigues (o sénior na viola; o júnior no violoncelo e pocket trumpet), do outro lado estão os Sehnaoui (Sharif na guitarra eléctrica; Christine no saxofone alto). Do encontro destas duas duplas nasce uma experimentação sónica mais preenchida, o que também será resultado da instrumentação utilizada. Nas três faixas que fazem o álbum (55 minutos) há matéria sonora áspera, a improvisação electro-acústica segue a tradição, mas a habitual abordagem ao silêncio anda longe – atenção à envolvência multidimensional que se verifica durante o terceiro tema (“Over turn”). Após muito diálogo a discussão sonora termina numa feliz reconciliação. O assunto de família acabou resolvido a bem.
Ernesto Rodrigues / Mathieu Werchowski / Guilherme Rodrigues |
Para o final voltamos a uma formação mais concisa: Ernesto Rodrigues na viola, Guilherme Rodrigues ao violoncelo e o convidado Mathieu Werchowski no violino. Este trio de cordofones clássicos constrói na invulgar abordagem à instrumentação uma experimentação constante, assente num jogo de interacção e entendimento. Pela abordagem rara, pela sucessão de encadeamentos, a primeira parte da faixa número 2 (“Light”) chega até a relembrar o free jazz - Leroy Jenkins, Billy Bang. Despido de conceptualizações, este é um documento onde a técnica está mais presente que nunca, explorada e extremada na improvisação (unicamente) acústica. Caso fosse necessário ainda mais algum testemunho, esta mais recente edição Creative Sources seria um excelente exemplo representativo de um enorme trabalho e uma grande mostra de criatividade.
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