Creative Sources 2007-2010: Improvisação em torrente contínua
· 18 Out 2010 · 22:00 ·

Fundada em 2001, a label lusa Creative Sources já editou até ao momento quase duzentos discos. Movimentando-se no panorama pouco mediático das músicas improvisadas, a editora liderada por Ernesto Rodrigues tem realizado um notável trabalho que, apesar de escondido do mainstream, se revela importantíssimo. Se poderemos dizer que a Clean Feed é uma das melhores editoras de jazz do mundo, neste momento a Creative Sources será sem sombra de dúvida um dos epicentros globais da música improvisada. Especialmente associada à estética reducionista, também conhecida por “near silence†ou “lowercaseâ€, a editora afirmou-se líder nessa corrente, mas não se limita a uma estética única, explorando outros universos sonoros, sempre privilegiando o detalhe e o pormenor sonoro. O patrão da editora, Ernesto, continua a alimentar na qualidade de violista uma intensa actividade musical, contribuindo para o crescimento do catálogo de forma permanente, participando em boa parte dos discos do catálogo. Funcionando como complemento actualizado a um primeiro artigo-síntese, os discos agora analisados são apenas uma amostra do fervor criativo de uma editora que não pára de surpreender pela originalidade, qualidade e consistência.


Gust Burns / Ernesto Rodrigues / Vic Rawlings / David Hirvonen
Refrain
Creative Sources
2007

Gravado ao vivo no Seattle Improvised Music Festival, este disco consiste numa faixa única de 26 minutos. O disco começa numa turbulenta nuvem de texturas electrónicas, amalgamadas com uma mistura de sons estranhos que, imagina-se, resultam da manipulação subversiva dos vários instrumento. Mais para a frente conseguimos perceber um som mais claro (e típico) dos instrumentos dos instrumentos mais “convencionaisâ€: entra a guitarra (Hirvonen), o piano (Burns), a viola (Rodrigues), em intervenções esparsas, sempre a manter uma certa distância. Uma cautelosa contenção marca cada momento, com o quarteto a revelar uma incrível minúcia. Chegados ao minuto dezanove entra silêncio, de forma quase brusca, que surpreende pelo peso. Ainda atordoados, chega depois um feixe electrónico, ao que se vão somando notas (claríssimas, a contrastar com tudo o resto), o brilho saído do piano, aqui a ganhar destaque, apesar das intervenções sempre pausadas, deixando os outros instrumentos conscientemente remetidos para a sombra. Estranhamente, o disco termina num momento em que a tensão se encontrava ainda em crescendo, deixando água na boa, ficando a pecar pela curta duração.



 

Nikolaus Gerszewski 
Ordinary Music Vol. 3 (For String Trio & Double Bass)
Creative Sources
2008

O alemão Nikolaus Gerszewski vem desenvolvendo um sistema de notação musical próprio, que combina uma série de indicações escritas com sinais visuais - para os curiosos, o “score†desta peça Ordinary Music Vol. 3 (For String Trio & Double Bass) encontra-se disponível aqui. Este quarteto de cordas liderado por Gerszewski (violin), é constituído por Ernesto Rodrigues (na viola), Guilherme Rodrigues (filho de Ernesto, colaborador habitual dos seus diversos projectos, no violoncelo) e Hernâni Faustino (do trio do japonês Nobuyasu Furuya e do excelente RED Trio, no contrabaixo). Incrivelmente, a música deste disco foi gravada ao vivo num concerto no Goethe Institut em Lisboa, em Fevereiro de 2008, e o grupo não realizou qualquer ensaio prévio. Parece mentira, dada a união dos instrumentos, dada a musicalidade que resulta com aparente naturalidade. Após um início porventura canónico, marcado pelas cornucópias das cordas com arco (violino, viola, violoncelo, contrabaixo), numa improvável “acessibilidadeâ€, os instrumentos embarcam numa toada lenta, paisagística. De seguida entram numa espécie de turbulência, implicando-se em choques e confrontos, para pouco depois o grupo regressar à união. Mantendo-se sempre numa permanente comunicação, este regresso à linearidade realça de novo a musicalidade da cordas. Para o final os instrumentos deixam-se abafar, até se chegar a uma espécie de zumbido, contrastando com a massa sonora cheia percorre quase todo o disco. Impecavelmente unido, com alguns desvios menos óbvios, este é uma surpresa de um catálogo marcado pela coerência.

 


 

Alípio C Neto
Paura: The Construction of Fear
Creative Sources
2008

O “line up†dá ares de equipa allstar: Alípio C Neto (saxofones soprano e tenor), Dennis González (trompete), Ernesto Rodrigues (viola), Guilherme Rodrigues (cello, rádio) e Mark Sanders (bateria). E se os nomes estão em destaque, a música envereda logo ao início por caminhos algo próximos do jazz, de onde vêm os músicos que compõem este quinteto (excepção feita aos Rodrigues): Alípio é um incendiário saxofonista, líder dos projectos IMI Kollektief, Wishful Thinking e de um quarteto “novaiorquino†(três bons discos Clean Feed); González é um brilhante trompetista que desfila a história do jazz, do bop à vanguarda, com notas sempre polvilhadas de lirismo; Sanders um activo baterista da cena britânica, colaborador de Evan Parker, Derek Bailey, Lol Coxhill e Ken Vandermark (entre inúmeros outros). Com estes músicos rotinados nas estratégias de comunicação jazzística a música acaba por fluir para algumas soluções previsíveis, mas nunca deixa de ser rica em ideias, intensa. No entanto, os músicos sabem quebrar esta ideia pré-concebida, fixando universos estáticos, absorventes, longe de tudo o que lhes conhecíamos (atenção à primeira metade da segunda faixa, “Void and Voicesâ€), para depois nos voltar a surpreender com abordagens mais expansivas, assim favorecendo a expressão instrumental individual. Na sua plena diversidade e riqueza de ideias, este será, sem dúvida, um dos melhores registos da história da Creative Sources.



 

Rhodri Davies / Ernesto Rodrigues / Stéphane Rives / Guilherme Rodrigues / Carlos Santos
Twrf Neus Ciglau
Creative Sources
2009

Com este disco voltamos à “clássica†estética CS, com um registo de improvisação controlada, num constante jogo de energia e contenção. Esta gravação tem o bónus de contar com dois extraordinários convidados internacionais: o inglês Rhodri Davies (na harpa e electrónicas, frequentemente considerado um dos líderes da improvisação “near silenceâ€, ou pelo menos da cena londrina) e o francês Stéphane Rives (saxofone soprano). A estes junta-se a habitual dupla Rodrigues (Ernesto na viola, Guilherme no violoncelo) e ainda Carlos Santos (no laptop, também responsável pela imagem gráfica das capas da editora). Gravado ao vivo no festival “Música Portuguesa Hojeâ€, que aconteceu em 2008 no CCB, este intervenções instrumentais cautelosas evoluem para ambiências densas, por vezes até pantanosas, outras vezes deixam-se ficar imersas numa camada fina de ruído branco. Entre esta amplitude de atmosferas, o quinteto desenvolve uma cautelosa viagem sónica. Creative Sources vintage.



 

Ernesto Rodrigues / Neil Davidson / Guilherme Rodrigues / Hernâni Faustino
Fower
Creative Sources
2009

Fower é mais uma empreitada do duo Rodrigues, desta vez pai e filho têm a companhia do escocês Neil Davidson (na guitarra acústica, colaborador da Glasgow Improvisers Orchestra e já editou um solo na CS) e Hernâni Faustino (membro do excelente RED Trio, no contrabaixo). Quatro cordofones distintos, quatro exploradores servindo-se de instrumentos preparados. O quarteto desenvolve um som coeso, maturado, onde a aparente leveza não é mais do que incrível precisão. Ao longo de três faixas o quarteto Rodrigues²/Davidson/Faustino embrulha o som das cordas friccionadas, dedilhadas e criativamente exploradas numa massa comum, onde os elementos individuais são raros (só na última faixa, “Humeâ€, é possível distinguir o som de cada instrumento com mais detalhe – mas esta termina abruptamente nos seus curtos 5 minutos). Distinto de boa parte do catálogo CS, este disco é marcado pela união sonora, pela partilha, pela decisão bem conseguida de quatro músicos que optaram caminhar numa única direcção.



 

Ember
Aurona Arona
Creative Sources  / Ahornfelder
2010

O único disco aqui analisado que não conta com a presença de Ernesto Rodrigues é uma co-edição partilhada entre a portuguesa Creative Sources e a alemã Ahornfelder. O quarteto Ember junta Urs Leimgruber, Alexander Schubert, Oliver Schwerdt e Christian Lillinger e este é o seu segundo registo, depois de Oullh d'baham (Euphorium, 2006). O jovem baterista Lilinger tem dado nas vistas, pois não pára de exibir o seu fulgurante pulsar enérgico: além da vintena de projectos que mantém (não é exagero, confirmem o seu MySpace), acaba de editar um aplaudido Grünen (Clean Feed) e colabora com nomes grandes como Joachim Kühn ou Gunter Sommer. O saxofonista Leimgruber também tem estado em destaque, uma vez que além de fazer parte do excelente Quartet Noir acaba de editar também na Clean Feed um disco em duo com o gigante Evan Parker, Twine. Alexander Schubert (electrónica) e Oliver Schwerdt (piano, percussão e orgão) esforçam-se por estar à altura dos parceiros de projecto. O resultado é uma improvisação com aproximações à estética “free jazzâ€, com uma adicional componente electrónica. Apesar de momentos de contenção sonora (faixas 2, 3 e 5), este Aurona Arona afirma-se globalmente afastado da reverência ao silêncio que marca boa parte do catálogo CS. Apesar da diferença, este disco deverá contudo ser saudado como lufada de ar fresco, por acrescentar cores vivas à label lusa. E que mesmo assim não destoa do pantone geral da editora. É por estas e por outras que, mesmo que poucos saibam, esta é uma das melhores editoras especializadas do mundo.

Nuno Catarino
nunocatarino@gmail.com

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