Música soul nascida na Alemanha: Verdadeiras sessões com alma
· 17 Set 2007 · 08:00 ·
© André Gomes

A velha retórica filosófica poderá definir a alma como algo imaterial, inexistente para além de uma auto-consciência de valores éticos e morais erguidos por religiões impregnadas por paradigmas de orientação espiritual. E se enquanto vivos acreditamos que temos uma alma capaz de despoletar emoções e competente para distinguir o bem do mal, já haverá dúvidas sobre que caminho toma a mesma depois da morte. As religiões não se poupam a certezas. As doutrinas de cada uma assim o provam. A ciência dúvida. As filosofias especulam. No fim, o homem acreditará no que quiser, apesar das religiões serem as que melhor conseguem “materializar” o ser e a sua essência num “pacote” único.

O homem saberá melhor que ninguém a necessidade de exteriorizar emoções. A angústia tem e sempre teve um aperto singular na expressão da alma. No caso da música soul, e em especifico o embrião que foi o gospel, a manifestação religiosa tomou as rédias de uma expressividade individual que mais tarde se foi politizando. Da raiva, do amor, da necessidade de liberdade até a uma afirmação racial de princípios próprios, a música, que começou por ser entoada em campos de trabalho e depois generalizada em encontros religiosos, tornou-se no veículo por excelência de verbalização de revoltas individuais, de denúncias de opressão.

É historicamente inegável que muita da música contemporânea tenha nascido num caldeirão afro-americano onde o confronto descarado entre a angústia e uma alegre liberdade espiritual tenha sido o principal motor para a erecção de paradigmas fundamentais que ainda hoje subsistem na nesta cultura multiracial. Da interpretação da bíblia às primeiras entoações religiosas em vozearia black gospel music, das praise songs aos acordes blue note que inspiraram os blues, do ragtime do final do século XIX ao jazz, da miscelânea rhythm and blues às primeiras harmonias rock, do funk ao hip-hop, a matriz sonora afro-americana cresceu e evoluiu para além do bundo que dominava as choças da escravatura para um conjunto de linguagens suburbanas – hoje completamente refinadas.

A alma tomou forma como música bem para além das velhas teorias filosóficas. Ela tornou-se viva, consciente e material através de acordes instrumentais e vocalizações. Aliás é na voz que a alma se expressa. É a voz que formaliza o conceito soul, que constrói uma identidade estética que dá forma a emoções ora alegres ora tristes. É nela que se tornam transparentes alguns costumes seculares: a tradição religiosa e o respeito pelo núcleo familiar.

Com o evoluir das ultimas décadas, a música soul foi se caracterizado. De Sam Cooke a Ray Charles, de Little Richard a James Brown, da Stax Records – onde militaram Otis Redding ou Isaac Hayes – à concorrente Motown – onde cresceram vozes singulares como Marvin Gaye, as Supremes, os Temptations ou os Jackson 5 – a soul music cresceu e deu ao mundo alguma das mais tocantes músicas, algumas mesmo intemporais, sugerindo todas elas uma certa sensação de alívio e um prazer espiritual capaz de devolver luz às trevas.

Além de um evidente negócio para muitas corporações, há ainda alma na música soul, ainda há um coração que bate para além dos lucros. Mas mais importante, e talvez muito ignorado nos últimos anos, ainda existe uma capacidade de distanciar-se dos piores exemplos estilísticos do r&b – para não falar de uma propositada intenção das majors em confundir a música soul tradicional com a tradição mais abrangente de um r&b aberto aos mais disparatados estímulos. A música soul de cariz tradicional tem tido a sua evolução natural, a instrumentalização tornou-se mais eloquente, as electrónicas fizeram-se sentir. Mas se o termo tradicional se poderá aplicar mais a um tipo de escrita, a tradição também poderá ser posta à prova com a introdução de ideias capazes de estimular a criatividade dos seus autores, bem como entusiasmar quem aprecia um género que se estima pelo aparente conservadorismo da sua ideologia.

Apesar de nos últimos anos a soul andar perdida num labirinto criado pelo r&b brejeiro de Hollywood e por vezes ser refém de uma determinada imagem criada pela MTV, ainda surgem nomes fora do típico circuito – femininos, no caso que este artigo apresenta – interessantes o suficiente que, sem estarem presos ao eterno filão da Motown, da Stax ou Fame, criam com os mesmos sentimentos que moveram Gladys Knight, Aretha Franklin ou Carla Thomas e, numa aparente comunidade virtual, comungam interesses com vozes contemporâneas como Jill Scott, Erykah Badu, India.Arie, Meshell Ndegeocello.

Ayo e Joy Denalane são jovens e nasceram na Alemanha. Ambas vêm o mundo à sua maneira. São duas formas de interpretação. Dois tipos de formalidade soul em que ambas prestam homenagem aos clássicos e simultaneamente abrem a porta para um abrangência estilística que enriquece o cânone da soul no mundo. Eis os mais interessantes registos soul dos últimos tempos.

Ayo Joyful
2006
Universe

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http://ayomusic.artistes.universalmusic.fr


Nascida na Alemanha, criada por pai nigeriano e mãe romena, Joy Olasunmibo Ogunmakin apresentou-se ao mundo em 2006 como Ayo. Joyful é o primeiro resumo de um percurso que também passou por Paris. E não sendo um perfeito exemplo sonoro que tenha captado a música do mundo é um facto incontornável que a música de Joyful transborda algumas das mais belas influências da soul clássica norte-americana sem nunca negar as raízes da sua autora. Não influi, nem se deixa contaminar pelas referências mais óbvias da soul, folk ou do reggae. Também não é a típica soul que a América nos tem habituado. É apenas a música que a sua autora queria que fosse: a vocalização dos seus desejos, dos seus medos, dos seus amores. E escreve por respeito ao legado familiar e pela deferência a Deus. Tudo vai acontecendo de forma normal e até inocente. Evoluindo espontaneamente por entre acordes de guitarra em tom folk e precursões elementares com o cheiro da terra africana nos pés. Joyful soa falsamente rústico. Revela uma invulgar eloquência na composição. É solarengo, quente, húmido. É afectuoso sem incomodar com abraços complacentes mas obsequioso na forma como envia a sua mensagem à alma humana.

Joy Denalane Born & Raised
2007
NESOLA RECORDS

+info
http://www.joydenalane.com
http://www.nesola.de

Sentido ainda um certo complexo pela forma como cresceu na cidade de Berlim, como foi educada por pais de origem sul-africana e como a soul a influenciou como pessoa, ao segundo disco Joy Denalane revela-se finalmente ao mundo. Depois de Mamani de 2002, Born & Raised confirma as ideias e propósitos que levaram Denalane a decidir-se pela música a tempo inteiro: a necessidade de comunicar, de explorar a luz da verdade, de rogar a Deus e agradecer pela pessoa que em se tornou.
Produzido em Filadélfia, a soul de Born & Raised é na maioria das vezes genuína e séria. O hip-hop estabelece a cadência e a inspiração no gospel domina a acção sem embaçar desnecessáriamente o pretendido. A voz denota uma certeza profissional e profícua na comunicação com outros espíritos. Este segundo registo da alemã não será radicalmente diferente dos propósitos neo soul que trouxeram ao mundo discos como Who Is Jill Scott? Words and Sounds Vol. 1 de Jill Scott, Mama's Gun de Erykah Badu ou My Life de Mary J. Blige (do qual é fã assumida).
A colaboração com Lupe Fiasco ou Raekwon não é uma inocente mais-valia que mostre um distanciamento da neo soul tipificada na América. Born & Raised ganha quando pensa e fala por si ou se deixa contagiar pela escola soul de 60; quando se inspira na vida de Joy Denalane e se torna um registo algures entre o biográfico e a observação do quotidiano. Mas também perde um pouco do que poderia ter sido quando se distrai em alguns maneirismos r&b. Nada que a simpatia que derrama não faça esquecer num ápice.
Rafael Santos
r_b_santos_world@hotmail.com

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